Introdução da obra “Mitologia Grega” de Junito de Souza Brandão.
Quando da gestão do Dr. Roberto Piragibe da Fonseca, em 1960,
como Diretor da então Faculdade de Filosofia da PUC-RJ, conseguimos, após muita
insistência, introduzir no Currículo de Letras a Cadeira de Mitologia Grega e Latina, que continua,
até hoje, em plena vitalidade, e até mesmo com número excessivo de alunos...
Ignoro se existe outra Universidade, no Brasil, que mantenha regular e
curricularmente o Mito como
disciplina, ao menos eletiva. Se não existe, é de todo lamentável, porquanto
não se pode, a meu ver, estudar com profundidade a Literatura Greco-Latina e
seu kosmos, seu “universo”
multifacetado, sem um sério embasamento mítico, pois que o mito, nesse caso, se
apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos coerente,
explicar o mundo e o homem. Opondo-se ao logos,
“como a fantasia à razão, como a palavra que narra à que demonstra”, logos e mytos são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente
fundamentais da vida e do espírito. O “logos”, sendo um raciocínio, procura
convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar. O “logos” é
verdadeiro, se é correto e conforme à lógica; é falso se dissimula alguma burla
secreta (um “sofisma”)(1). O mito, porém, não possui outro fim senão a si
próprio. Acredita-se nesse ou não, à vontade, por um ato de fé, se o mesmo parece
“belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-lhe crédito. Assim é
que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no pensamento
humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas as suas
criações. E talvez seja este o caráter mais evidente do mito grego: verificamos
que ele está presente em todas as atividades do espírito. Não existe domínio
algum do helenismo, tanto a plástica como a literatura, que não tenha recorrido
constantemente a ele. “Para um grego, um mito não conhece limites. Insinua-se
por toda parte (...). Reserva de pensamento, o mito acabou por viver uma vida
própria, a meio caminho entre a razão e a fé... Até os filósofos, quando o
raciocínio atingiu o seu limite, recorreram a ele como a um modo de
conhecimento capaz de comunicar o incognoscível”(2).
De outro lado, sendo uma fala
(3), um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é como que metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da primeira. Não
sendo um objeto, um conceito, uma ideia, o mito é um modo de significação, uma
forma, um symbolon, acrescentaríamos.
Donde não se pode defini-lo simplesmente pelo objeto de sua mensagem, mas pela
maneira como a profere. “Metade da linguagem”, não é apenas a “literatura”, no
caso em pauta a greco-latina, que não se pode explicar sem o mito, mas
igualmente inúmeros fatos da língua. Se não mais é possível falar do “rapto de
Helena” por Alexandre ou Páris, a não ser buscando fundo no mitologema quem era
a “antiga deusa da vegetação” Helena e o significado de rapto, ainda mais que
perpetrado por um príncipe outrora “exposto”; se não mais se poderia analisar a
“Esfinge inquiridora” do Édipo Rei de
Sófocles, a não ser partindo-se de sua morfologia primitiva de Íncubo, de demônio opressor erótico, e
de alma penada; se não mais teria sentido expor os Doze Trabalhos de Héracles, impostos ao herói pela protetora dos “amores
legítimos”, Hera, se não visse neles, entre muitos conteúdos, um longo rito
iniciático, coroado pela apoteose, como semelhantemente aconteceu com Psiqué –
assim também muitos fatos da língua ficariam reduzidos a meras palavras, se não
se buscasse esclarecê-los através do mito e da religião. Como explicar, por
exemplo, em latim, contemplari, “olhar
atentamente para” e considerare, “examinar
com cuidado e respeito”, desvinculados do sentido profundamente religioso de templum, “templo”, e sidus, “constelação”? Uma coisa é
templum, templo, local , onde se aninham as estátuas dos deuses; outra, bem
mais rica e nobre, é templum, espaço
quadrado delimitado pelo áugure no céu e no chão, espaço em cujo interior o
sacerdote tomava e interpretava os presságios. Donde contemplari, “contemplar”, é observar atentamente se os pássaros
voam da esquerda para a direita (bom presságio) ou da direita para a esquerda
(mau presságio). Sidus, -eris é
constelação, donde considerare, “considerar”
é examinar atenta e respeitosamente os astros e sondar-lhes as disposições”.
Cícero já emprega a expressão sidera natalicia
(De Diu., 2,43,91), “astros que
presidem nascimentos” e determinam as sequências da vida dos que nascem sob sua
tutela.
Pois bem, foi dentro desses cânones, que não são novos,
buscando no mito o que ele tem de “permanente” em todas as culturas, que
procuramos elaborar três volumes sobre Mitologia
Grega. Não desprezamos os significantes de nenhum mito, mas investigamos
com afinco e persistência o sentido de seu conteúdo. Partindo de um suporte
meramente expositivo, mas podando-lhe com cuidado o romanesco, e escolhendo com
mais cautela ainda a ou as variantes mais antigas e “autênticas”, tentamos ir
bastante além, esmiuçando-lhe o simbolismo e, quanto possível, as significações
psicológicas.
Após Freud, Jung, Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, Mircea
Eliade, e isto para citar apenas alguns dos grandes pioneiros e seus
seguidores, o mito enveredou por caminhos bem mais legítimos e genuínos: deixou
de ser uma simples história da carochinha ou uma ficção, “coisa inacreditável,
sem realidade”, para, como acentua Byington no Prefácio, “através do conceito
de arquétipo, abrir para a Psicologia a possibilidade de perceber diferentes
caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva”.
Se, a princípio, o estudo do mito nos interessou como um
auxiliar poderoso e indispensável para uma melhor compreensão das línguas grega
e latina e sobretudo de suas respectivas literaturas, a partir de 1982, quando
começamos a trabalhar em dupla, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com o
Psiquiatra e Analista Carlos Byington, é que percebemos com mais clareza o peso
do mito, esse inesgotável repositório de símbolos, que realizam “a interação do
Consciente com o Inconsciente Coletivo”. É exatamente esse “tipo de mito” que
procuramos transmitir não só a nossos alunos de Departamentos vários da PUC-RJ,
e em cursos anuais em nossa Cidade, mas particularmente a Universitários, Professores,
Psicólogos, Psicanalistas, Psiquiatras e Analistas de São Paulo e da Unicamp,
com muitos dos quais, e prazerosamente, vimos trabalhando, há quatro anos.
Na elaboração de Mitologia Grega, Volume I, após os sete
primeiros capítulos, em que focalizamos mito e obra de arte, definição de mito
e religião, estudo da religião pré-helênica, chegada à Hélade dos gregos indo-europeus
e visão panorâmica dos poemas e deuses homéricos, tivemos que fazer uma séria e
difícil opção. Por onde começar? Poderia ser por qualquer mito, já que este,
além de não se enquadrar no tempo, é totalmente ilógico. Mas, como Hesíodo,
poeta do século VIII a.C., portanto, cronologicamente, o segundo depois de Homero,
nos legou, conforme se comenta no Capítulo VIII, duas obras preciosas com
vistas à mitologia grega, Teogonia e Trabalhos e Dias, resolvemos, por dois motivos, iniciar por ele. Primeiro,
porque o poeta de Ascra colocou certa ordenação, ao menos genealógica, no
confuso mito grego; segundo, porque, inteligentemente, fez coincidir o Caos, “massa confusa e informe”, que dá
início à cosmoteofania, isto é, ao
aparecimento do mundo e dos deuses, com o caos
social da Idade de Ferro, em que
vivia seu século. Nesse caso, o homem percorreu o caminho inverso ao dos
deuses: da Idade de Ouro degradou-se
até a Idade de Ferro... Temos, por
conseguinte, dois caos. Partindo do
primeiro, o poeta há de fazer com que do Caos,
das trevas, se chegue a Zeus, à luz e
sonha com a extinção do segundo: quem sabe se o homem, apoiado em Zeus, símbolo
da dike, da justiça, não há de
emergir do caos social para a luz? Da Idade
de Ferro não há de retornar à Idade
de Ouro?
Nossa Mitologia Grega,
portanto, abrange três grandes momentos do mito helênico: o Volume I, após os
sete primeiros capítulos de que já se falou linhas atrás, irá do Caos até as lutas de Zeus pelo poder; o
Volume II, mais denso, partirá de Zeus, já como deus cosmocrata e “pai dos
deuses e dos homens”, e se fechará no mito de Eros e Psiqué; o Volume III será consagrado ao Mito dos Heróis.
Na feitura de Mitologia
Grega usamos algumas obras altamente especializadas no assunto, todas, por
sinal, indicadas na Bibliografia Geral. Gostaríamos, todavia, de destacar o
nosso manuseio constante, para interpretação da parte simbólica, do Diccionario de Símbolos, de J.E.Cirlot,
do Dictionnaire des Symboles, de Jean
Chevalier e Alain Gheerbrant, e de Le
Symbolisme dans la Mythologie Grecque, de Paul Diel. No que se refere à
interpretação psicológica, nossos guias principais foram Sigmund Freud, C.G.
Jung, Erich Neumann e Gaston Bachelard.
Mitologia Grega deve muito a muita gente. Não apenas
às pessoas que tanto me incentivaram e até reclamaram de meu natural festina lente, como a estimada amiga
Rose Marie Muraro, que prefaciará o segundo colume; o jovem psicólogo José
Raimundo de Jesus Gomes; colegas e alunos do Rio e de São Paulo, mas também
àqueles que gentilmente me ajudaram manu
laboriosa, como as Profas. Miriam Sutter Medeiros, Lea Bentes Cardoso e o
universitário Fred Marcos Tallman, que se encarregaram da parte datilográfica;
Silvia Elizabeth von Blücher, Augusto Ângelo Zanatta, Valderes Barboza e o já
consagrado prof. Synval Beltrão Jr., aos quais fico devendo o penoso trabalho
de organização dos índices do primeiro volume.
Esperamos, por fim, que os três volumes de Mitologia Grega
cumpram as duas finalidades únicas que tivemos em mira ao redigi-los: cooperar
para que as humanidades clássicas voltem urgentemente ao lugar que lhes compete
e servir não só aos que lidam com a ciência da psique, mas também a quantos
acreditam na perenidade do mito, que
não é grego nem latino, mas um farol que ilumina todas as culturas.
Rio de Janeiro, 26 de abril de 1985.
Junito de Souza Brandão
Notas:
1 – sophismos –
sofisma, aqui no caso, é um expediente enganoso e enganador.
2 – Grimal, Pierre. La Mythologie Grecque. Paris, PUF, 1952,
p. 8sqq.
3 – Barthes,
Roland. Mythologies. Paris, Éditions du Seuil, 1972, p. 137sqq.