domingo, 2 de março de 2014

Junito de Souza Brandão – Mitologia Grega

Introdução da obra “Mitologia Grega” de Junito de Souza Brandão.

Quando da gestão do Dr. Roberto Piragibe da Fonseca, em 1960, como Diretor da então Faculdade de Filosofia da PUC-RJ, conseguimos, após muita insistência, introduzir no Currículo de Letras a Cadeira de Mitologia Grega e Latina, que continua, até hoje, em plena vitalidade, e até mesmo com número excessivo de alunos... Ignoro se existe outra Universidade, no Brasil, que mantenha regular e curricularmente o Mito como disciplina, ao menos eletiva. Se não existe, é de todo lamentável, porquanto não se pode, a meu ver, estudar com profundidade a Literatura Greco-Latina e seu kosmos, seu “universo” multifacetado, sem um sério embasamento mítico, pois que o mito, nesse caso, se apresenta como um sistema, que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Opondo-se ao logos, “como a fantasia à razão, como a palavra que narra à que demonstra”, logos e mytos são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida e do espírito. O “logos”, sendo um raciocínio, procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar. O “logos” é verdadeiro, se é correto e conforme à lógica; é falso se dissimula alguma burla secreta (um “sofisma”)(1). O mito, porém, não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nesse ou não, à vontade, por um ato de fé, se o mesmo parece “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-lhe crédito. Assim é que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas as suas criações. E talvez seja este o caráter mais evidente do mito grego: verificamos que ele está presente em todas as atividades do espírito. Não existe domínio algum do helenismo, tanto a plástica como a literatura, que não tenha recorrido constantemente a ele. “Para um grego, um mito não conhece limites. Insinua-se por toda parte (...). Reserva de pensamento, o mito acabou por viver uma vida própria, a meio caminho entre a razão e a fé... Até os filósofos, quando o raciocínio atingiu o seu limite, recorreram a ele como a um modo de conhecimento capaz de comunicar o incognoscível”(2).
De outro lado, sendo uma fala (3), um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é como que metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da primeira. Não sendo um objeto, um conceito, uma ideia, o mito é um modo de significação, uma forma, um symbolon, acrescentaríamos. Donde não se pode defini-lo simplesmente pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere. “Metade da linguagem”, não é apenas a “literatura”, no caso em pauta a greco-latina, que não se pode explicar sem o mito, mas igualmente inúmeros fatos da língua. Se não mais é possível falar do “rapto de Helena” por Alexandre ou Páris, a não ser buscando fundo no mitologema quem era a “antiga deusa da vegetação” Helena e o significado de rapto, ainda mais que perpetrado por um príncipe outrora “exposto”; se não mais se poderia analisar a “Esfinge inquiridora” do Édipo Rei de Sófocles, a não ser partindo-se de sua morfologia primitiva de Íncubo, de demônio opressor erótico, e de alma penada; se não mais teria sentido expor os Doze Trabalhos de Héracles, impostos ao herói pela protetora dos “amores legítimos”, Hera, se não visse neles, entre muitos conteúdos, um longo rito iniciático, coroado pela apoteose, como semelhantemente aconteceu com Psiqué – assim também muitos fatos da língua ficariam reduzidos a meras palavras, se não se buscasse esclarecê-los através do mito e da religião. Como explicar, por exemplo, em latim, contemplari, “olhar atentamente para” e considerare, “examinar com cuidado e respeito”, desvinculados do sentido profundamente religioso de templum, “templo”, e sidus, “constelação”? Uma coisa é templum, templo, local , onde se aninham as estátuas dos deuses; outra, bem mais rica e nobre, é templum, espaço quadrado delimitado pelo áugure no céu e no chão, espaço em cujo interior o sacerdote tomava e interpretava os presságios. Donde contemplari, “contemplar”, é observar atentamente se os pássaros voam da esquerda para a direita (bom presságio) ou da direita para a esquerda (mau presságio). Sidus, -eris é constelação, donde considerare, “considerar” é examinar atenta e respeitosamente os astros e sondar-lhes as disposições”. Cícero já emprega a expressão sidera natalicia (De Diu., 2,43,91), “astros que presidem nascimentos” e determinam as sequências da vida dos que nascem sob sua tutela.
Pois bem, foi dentro desses cânones, que não são novos, buscando no mito o que ele tem de “permanente” em todas as culturas, que procuramos elaborar três volumes sobre Mitologia Grega. Não desprezamos os significantes de nenhum mito, mas investigamos com afinco e persistência o sentido de seu conteúdo. Partindo de um suporte meramente expositivo, mas podando-lhe com cuidado o romanesco, e escolhendo com mais cautela ainda a ou as variantes mais antigas e “autênticas”, tentamos ir bastante além, esmiuçando-lhe o simbolismo e, quanto possível, as significações psicológicas.
Após Freud, Jung, Neumann, Melanie Klein, Erich Fromm, Mircea Eliade, e isto para citar apenas alguns dos grandes pioneiros e seus seguidores, o mito enveredou por caminhos bem mais legítimos e genuínos: deixou de ser uma simples história da carochinha ou uma ficção, “coisa inacreditável, sem realidade”, para, como acentua Byington no Prefácio, “através do conceito de arquétipo, abrir para a Psicologia a possibilidade de perceber diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva”.
Se, a princípio, o estudo do mito nos interessou como um auxiliar poderoso e indispensável para uma melhor compreensão das línguas grega e latina e sobretudo de suas respectivas literaturas, a partir de 1982, quando começamos a trabalhar em dupla, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com o Psiquiatra e Analista Carlos Byington, é que percebemos com mais clareza o peso do mito, esse inesgotável repositório de símbolos, que realizam “a interação do Consciente com o Inconsciente Coletivo”. É exatamente esse “tipo de mito” que procuramos transmitir não só a nossos alunos de Departamentos vários da PUC-RJ, e em cursos anuais em nossa Cidade, mas particularmente a Universitários, Professores, Psicólogos, Psicanalistas, Psiquiatras e Analistas de São Paulo e da Unicamp, com muitos dos quais, e prazerosamente, vimos trabalhando, há quatro anos.
Na elaboração de Mitologia Grega, Volume I, após os sete primeiros capítulos, em que focalizamos mito e obra de arte, definição de mito e religião, estudo da religião pré-helênica, chegada à Hélade dos gregos indo-europeus e visão panorâmica dos poemas e deuses homéricos, tivemos que fazer uma séria e difícil opção. Por onde começar? Poderia ser por qualquer mito, já que este, além de não se enquadrar no tempo, é totalmente ilógico. Mas, como Hesíodo, poeta do século VIII a.C., portanto, cronologicamente, o segundo depois de Homero, nos legou, conforme se comenta no Capítulo VIII, duas obras preciosas com vistas à mitologia grega, Teogonia e Trabalhos e Dias, resolvemos,  por dois motivos, iniciar por ele. Primeiro, porque o poeta de Ascra colocou certa ordenação, ao menos genealógica, no confuso mito grego; segundo, porque, inteligentemente, fez coincidir o Caos, “massa confusa e informe”, que dá início à cosmoteofania, isto é, ao aparecimento do mundo e dos deuses, com o caos social da Idade de Ferro, em que vivia seu século. Nesse caso, o homem percorreu o caminho inverso ao dos deuses: da Idade de Ouro degradou-se até a Idade de Ferro... Temos, por conseguinte, dois caos. Partindo do primeiro, o poeta há de fazer com que do Caos, das trevas, se chegue a Zeus, à luz e sonha com a extinção do segundo: quem sabe se o homem, apoiado em Zeus, símbolo da dike, da justiça, não há de emergir do caos social para a luz? Da Idade de Ferro não há de retornar à Idade de Ouro?
Nossa Mitologia Grega, portanto, abrange três grandes momentos do mito helênico: o Volume I, após os sete primeiros capítulos de que já se falou linhas atrás, irá do Caos até as lutas de Zeus pelo poder; o Volume II, mais denso, partirá de Zeus, já como deus cosmocrata e “pai dos deuses e dos homens”, e se fechará no mito de Eros e Psiqué; o Volume III será consagrado ao Mito dos Heróis.
Na feitura de Mitologia Grega usamos algumas obras altamente especializadas no assunto, todas, por sinal, indicadas na Bibliografia Geral. Gostaríamos, todavia, de destacar o nosso manuseio constante, para interpretação da parte simbólica, do Diccionario de Símbolos, de J.E.Cirlot, do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, e de Le Symbolisme dans la Mythologie Grecque, de Paul Diel. No que se refere à interpretação psicológica, nossos guias principais foram Sigmund Freud, C.G. Jung, Erich Neumann e Gaston Bachelard.
Mitologia Grega deve muito a muita gente. Não apenas às pessoas que tanto me incentivaram e até reclamaram de meu natural festina lente, como a estimada amiga Rose Marie Muraro, que prefaciará o segundo colume; o jovem psicólogo José Raimundo de Jesus Gomes; colegas e alunos do Rio e de São Paulo, mas também àqueles que gentilmente me ajudaram manu laboriosa, como as Profas. Miriam Sutter Medeiros, Lea Bentes Cardoso e o universitário Fred Marcos Tallman, que se encarregaram da parte datilográfica; Silvia Elizabeth von Blücher, Augusto Ângelo Zanatta, Valderes Barboza e o já consagrado prof. Synval Beltrão Jr., aos quais fico devendo o penoso trabalho de organização dos índices do primeiro volume.
Esperamos, por fim, que os três volumes de Mitologia Grega cumpram as duas finalidades únicas que tivemos em mira ao redigi-los: cooperar para que as humanidades clássicas voltem urgentemente ao lugar que lhes compete e servir não só aos que lidam com a ciência da psique, mas também a quantos acreditam na perenidade do mito, que não é grego nem latino, mas um farol que ilumina todas as culturas.

Rio de Janeiro, 26 de abril de 1985.
Junito de Souza Brandão

Notas:
1 – sophismos – sofisma, aqui no caso, é um expediente enganoso e enganador.
2 – Grimal, Pierre. La Mythologie Grecque. Paris, PUF, 1952, p. 8sqq.
3 – Barthes, Roland. Mythologies. Paris, Éditions du Seuil, 1972, p. 137sqq.