Assim como em “Criaturas da Noite”, “O Terço” dos anos 1970
tem em seu repertório outras músicas cujas letras têm um simbolismo semelhante,
embora de autores variados.
Como em “Criaturas da Noite” há um jogo de contrastes, ou
também de complementaridades, entre luz e sombra.
Em “Luz de Velas”, de autoria de Cesar das Mercês, há um
contraponto entre o mundo externo e o mundo interno do poeta, ao mesmo tempo em
que há uma intersecção entre esses mundos. Assim começa a letra:
Quando
eu cheguei em casa
Estava tudo no escuro
Porque não tinha energia pra acender a luz.
Estava tudo no escuro
Porque não tinha energia pra acender a luz.
Então eu fiquei pensando
Nos milagres deste século
Enquanto a luz de vela iluminava o papel.
Nos milagres deste século
Enquanto a luz de vela iluminava o papel.
A noite é tão escura
quanto natural
E a luz é a projeção do que você procura entender.
E a luz é a projeção do que você procura entender.
A primeira estrofe fala de uma observação, uma constatação
simples, direta, cotidiana. Já a segunda estrofe é um desdobramento da primeira,
a partir de uma reflexão proveniente da luz de vela (o nome da música).
Dessa reflexão decorre um salto para uma visão do mundo
externo que vai além do usual: “A noite é tão escura quanto natural”. E um
salto para uma visão do mundo interno: “E a luz é a projeção do que você
procura entender”.
Como em “Criaturas da Noite” (de outro autor) há uma divisão
em três etapas que caminha do exterior para o interior da pessoa.
A constatação de que a escuridão da noite é algo natural
parece ser uma descoberta forçosamente feita a partir da falta de energia
elétrica que seria um “milagre deste século”. No entanto, paradoxalmente,
embora milagre, fez-se ausente e deixou espaço à “luz de vela”, algo
aparentemente mais primitivo, porém mais “esclarecedor”, trazendo certo insight. A escuridão da noite, quando
natural, deixa de ser amedrontadora. O escuro noturno, que comumente simboliza
o temor de energias desconhecidas do inconsciente, quando encarado de outra
forma, passa a ser fonte de energias positivas que permitem detectar um
paradoxo próprio do interior do indivíduo: enquanto a escuridão pode ser
natural, a luz pode ser algo indireto como uma “projeção” de outra coisa, ou
seja, torna-se algo intermediário. No entanto, como a luz associa-se à noção de
consciência, essa função intermediária aponta para aquilo que “se quer entender”.
Esse jogo de contrastes é a própria indicação de um insight, um “enxergar dentro” a partir
de “um novo enxergar fora”.
O pêndulo entre dentro e fora da pessoa continua:
No meu abrigo noturno
Eu procuro ler meus sonhos
Mas sei que o que eu preciso é enxergar no escuro.
Eu procuro ler meus sonhos
Mas sei que o que eu preciso é enxergar no escuro.
E me
acostumar com o espaço
Que o meu próprio corpo ocupa
E ver com a clareza independente da luz.
Que o meu próprio corpo ocupa
E ver com a clareza independente da luz.
Na quarta estrofe, o “abrigo noturno” pode ser sua casa sem
energia, mas também pode ser concomitantemente o próprio interior do poeta,
onde ele procura “ler os sonhos”. Ler os sonhos implica em entendê-los, em
compreender sua simbologia, sejam sonhos enquanto se dorme, ou sejam os sonhos
que correspondem aos anseios e expectativas. No entanto, conclui-se que “no
abrigo noturno”, embora se tente ler os sonhos, impõe-se uma necessidade, a
necessidade de “enxergar no escuro”. Ora, nesse sentido “enxergar no escuro”
parece ser mais difícil do que “ler os sonhos”, ou talvez ainda seja a
pré-condição para que essa leitura seja possível. Enxergar no escuro remete-se
a uma capacidade menos comum, a uma habilidade refinada, a uma capacidade de “vislumbrar
o inconsciente”, embora seja um vislumbre no escuro, ou seja, as sombras
continuam presentes, pois esse é um escuro que comporta no máximo uma luz de
vela.
Na estrofe seguinte o acostumar-se com o espaço que o próprio
corpo ocupa parece ser uma constatação de algo que sempre esteve presente junto
à pessoa, mas que passava despercebido. Esse acostumar-se com o espaço do corpo
também implica em uma percepção de seus próprios limites. Essa percepção pode
permitir uma nova visão, um novo alcance dos sentidos, de modo que pode-se ver “com
clareza” independentemente da luz. Aqui há um jogo de palavras entre “clareza”,
que vem de “claro”, ou seja, iluminado, e o ser capaz de ver “sem a luz”. Ora,
sabe-se que, fisicamente, sem a luz é impossível ver o que quer que seja. Portanto,
esse “ver com clareza” implica em outro tipo de visão, diferente de visão
física, constatação essa associada à percepção dos próprios limites físicos do
corpo.
Dessa percepção física, passa-se à reflexão teórica da ciência
física. O poeta compara-se a um elétron, ou seja, uma partícula associada á
noção de energia, e assim também á noção de luz (composta de fótons), mas ao
mesmo tempo da energia elétrica miraculosa do século XX que trafega por elétrons.
Vou me tocando e chocando
Feito um elétron doido
Até bater no teu peito
Querendo mesmo é repouso
Eu preciso é enxergar no escuro.
Feito um elétron doido
Até bater no teu peito
Querendo mesmo é repouso
Eu preciso é enxergar no escuro.
Mas esse elétron não é apenas uma
partícula racional e fria, mas é uma partícula cheia de energia emocional que o
faz tocar e chocar feito doido até bater “no peito”, o peito símbolo do lado
emocional da pessoa. Ao atingir esse lado emocional, o poeta quer repouso.
Parece ter sido difícil chegar a bater no peito, chegar a constatar a emoção
além da razão, a constatar que a emoção também é parte importante no
desenvolvimento interior e não só o entendimento racional. Como paralelo e
desfecho disso tudo repete-se que “Eu preciso é enxergar no escuro”, ou seja,
há necessidade de “enxergar dentro”, de se descobrir, ao perceber o que se
revela a partir de uma “luz de vela”.