segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Basílio da Gama – Situação histórica – Estudo Crítico


Baseado em texto de Mário Camarinha da Silva

Situação Histórica

     Vivendo na segunda metade do século XVIII, Basílio da Gama é contemporâneo de três acontecimentos que transformaram o mundo ocidental: a Revolução Americana, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial. Esta Age of Reason dos filósofos racionalistas ingleses, que é a Crítica da Razão de Kant, foi também a época do riso Candide apenas em aparência que Voltaire (como Basílio educado pelos jesuítas) atacou a ordem de coisas herdada do século anterior.
     “A Liberdade parece ser o espírito do nosso século”, disse Diderot, um dos iniciadores da Enciclopédia Francesa, repositório de ideias revolucionárias. Nela colaboraram Voltaire e Rousseau, este um anti-Voltaire que acreditava no bom selvagem, que queria educar o homem pela volta à Natureza e advogava na sua teoria do Contrato Social o sistema representativo como base para o Estado organizado.
     A Constituição Americana adotou esse sistema. E logo depois da Queda da Bastilha (no mesmo ano da Inconfidência Mineira), a Declaração dos Direitos do Homem, feita pela Assembleia Nacional Francesa, dava universalidade à ideia da igualdade pregada na Declaração da Independência Americana em 1776. Ideias e teorias sociais, classificações e sistemas científicos, invenções e aperfeiçoamentos técnicos, eis o quadro dessa época em que a Revolução Francesa entronaria a deusa Razão. A Marselhesa, canto heroico da Revolução, é contemporânea de minuetos de Mozart e Bocherini; o liberalismo econômico de Adam Smith, que retira o comércio da tutela do Estado, é desse tempo; também Pombal, o homem de ferro que expulsa os jesuítas de Portugal e trama a extinção da Companhia de Jesus.   
     Essa é uma época de contrastes e dela Sebastião José de Carvalho é figura representativa. Inicialmente diplomata em Londres e Viena, é um daqueles iluministas que, em pleno esplendor do reinado de D. João V (tempo do ouro e dos diamantes das Minas Gerais), souberam interessar o monarca e a nobreza no que ia além dos Pirineus: o rei sempre hesitou entre a renovação e a tradição: ao mesmo tempo em que chamava a Portugal os oratorianos, cujos métodos revolucionariam a pedagogia formal dos jesuítas, fazia-se em Roma membro da Arcádia, academia muito ligada aos jesuítas, chegando a dotá-la com sede permanente no Monte Janículo.
     Elevado Pombal a ministro todo poderoso de D. José I, esforça-se por fazer a adaptação do iluminismo ao absolutismo, criando o despotismo esclarecido em Portugal. É férrea a sua determinação. Tem contra si os nobres, tradicionalistas por natureza: reforma-lhes a educação, criando o Colégio dos Nobres; tem contra si a tradição pedagógica dos jesuítas: expulsa-os e restaura a Universidade de Coimbra com estrangeiros ilustrados, dotando-a de laboratórios e recursos científicos. Funda companhias de comércio. Dedica sua atenção aos problemas brasileiros. Atrai iluministas. Persegue e encarcera ou desterra quem não concorde com suas ideias. Frequenta com o rei a Arcádia Lusitana, fundada por Antônio Dinis e outros poetas em 1757.
     Os árcades queriam submeter a poesia ao império da razão, segundo os moldes estéticos do racionalismo francês. Faziam predominar o critério da utilidade, que já Horácio fazia alternar com o do prazer estético. O racionalista Verney afirmava, na Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar Para Ser Útil à República e à Igreja que “a Poesia não é coisa necessária na República: é faculdade arbitrária e de divertimento”. Em resposta, Francisco José Freire, “Cândido Lusitano” na Arcádia, escreveu uma Arte Poética em 1748 (com segunda edição em 1759) em que, à maneira italiana de Muratori e Metastasio, dois ídolos de então, une na poesia o útil ao agradável. Para ele o que mais agrada são os elementos que surpreendem e maravilham o leitor. A imaginação, a inspiração, o “furor poético” do autor deve, no entanto, submeter-se à razão.  A beleza torna-se assim fruto do artesanato, elemento racional da forma que “não é outra coisa senão a brevidade ou clareza, a energia, a utilidade e outras circunstâncias”; paralelamente, a doçura dá à obra poética “as qualidades que podem mover os aspectos de nosso ânimo”. Ao afirmar, porém, que “a beleza poética está fundada na verdade e compõe-se de perfeições reais, não de desconcertos ou ilusões aéreas”, recai na tradição aristotélica da poesia como mimesis, que Verney sintetizara, a bem dizer, da seguinte forma: “Um conceito que não é justo, nem fundado sobre a natureza das coisas, não pode ser belo: porque o fundamento de todo conceito engenhoso é a verdade; nem se deve estimar algum quando não se reconheça nele vestígio de bom juízo. E como os antigos observam muito isto, por isso neles se observa certa maneira natural de escrever e certa simplicidade nobre, que os faz tanto admiráveis”.
     Ao tempo de Basílio da Gama, pois, mantinha-se a imitação dos antigos (inclusive dos renascentistas), com um maior equilíbrio entre a razão e o sentimento, entre a realidade e a fantasia, a informação e a invenção. Quando cai Pombal, com a Viradeira que se dá ao subir ao trono a filha de D. José I, em 1777, já a Arcádia Lusitana se havia dissolvido. E com D. Maria I voltaram os nobres, muitos deles egressos das superlotadas prisões pombalinas. O antigo ministro conhece, então, o ostracismo, a sátira dos inimigos e a deserção dos amigos. Basílio é, apesar de atacado também, dos poucos que lhe permanecem fiéis. Abrem-se os salões. O Duque de Lafões, o novo mecenas das letras, funda a Academia Real das Ciências de Lisboa, a que ainda pertenceria como membro correspondente o poeta do Uraguai. Mas é Domingos Caldas Barbosa, que Gomes Freire desterrara como soldado para a Colônia do Sacramento, quem brilha. Com a Viola de Lereno tornara-se o poeta favorito da nova corte e agora, em casa do Conde de Pombeiro, seu protetor, funda a Nova Arcádia, tão atacada por Bocage, Nicolau Tolentino e José Agostinho de Macedo, que dela fizeram parte. Quem já não o fez foi Basílio da Gama: os tempos eram outros.

Estudo Crítico

     Em 1769, sob suspeita de jesuitismo, e já com compromisso firmado de partir para Angola, exilado, Basílio da Gama encontra o seu destino: aproxima-se de Pombal. No Epitalâmio, que escreve para a filha do Marquês, pede-lhe que o livre do degredo, esperando tocar o coração do pai com o canto da filha; chega, a propósito da nubente, a cantar a grandeza de Sebastião José de Carvalho e seus irmãos; porém, faz mais que apelar para o amor de pai e para a vaidade do homem, adula o ódio do ministro pelos jesuítas: pinta-os alegoricamente como a Soberba, a Ambição, a Inveja, a Ignorância e a Hipocrisia, monstros horrendos. Ao fazê-lo relacionava a grandeza pombalina com a guerra aos missionários junto aos guaranis. Foi esquecida a pena do degredo. A partir de 1769 seus poemas são preitos de gratidão. A Pombal começou a agradecer com O Uraguai.
     O Uraguai é um canto de louvor à política pombalina, com a detração de seus inimigos e a dedicatória ao Ministro Mendonça Furtado, irmão de Pombal e antigo chefe da Comissão demarcadora dos limites setentrionais entre o Brasil e a América espanhola, segundo havia fixado o Tratado de Madrid. No Sul funcionara outra Comissão chefiada pelo Governador Gomes Freire de Andrada, que Basílio da Gama transformou no Herói do seu poema.
     Publicado 20 anos antes da Revolução e 18 depois do primeiro volume da Enciclopédia, O Uraguai é obra em que as inovações correm parelhas com as normas tradicionais, o que a torna bem representativa daquele momento.
     A literatura, arte da linguagem com que o indivíduo significa o mundo, via-se no dilema entre a imitação daquele “mundo criado” e a criação de “novos mundos imaginários”, entre a beleza revelada pelos antigos e a beleza novamente descoberta pelo próprio indivíduo, entre a arte clássica, sem surpresas, e a arte atormentada dos que buscavam seus caminhos. Daí o dilema entre a natureza racional e a natureza sentimental, que rege a arte de Basílio da Gama no Uraguai. Neste, a Razão do poeta esconde sentimentos que nem ele próprio confessa.
     Há desde logo uma manifesta ambiguidade do poeta quanto ao assunto. O Uraguai narra a expedição do Governador do Rio de Janeiro às missões jesuíticas espanholas da banda oriental do Rio Uruguai, cujos índios haviam se rebelado contra a entrega dos seus Sete Povos (São Borja, Santo Ângelo, São João, São Lourenço, São Luís, São Miguel, São Nicolau) em troca da colônia portuguesa do Sacramento, praça militar que os portugueses haviam fundado em 1680 na margem cisplatina, em frente a Buenos Aires.
     Essa troca fora determinada pelo Tratado de Madrid, que corrigia os limites fixados anteriormente em Tordesilhas, de acordo com a situação que apresentavam em 1750. Reconhecia-se assim a soberania espanhola sobre as Filipinas e a de Portugal sobre vastas áreas amazônicas e mato-grossenses de que haviam se apossado os brasileiros; mas a colônia seria permutada pelas missões uruguaias: desta maneira, Don José de Carvajal y Lancaster, principal negociador do tratado, pretendia ocupar uma praça forte (tanta mais incômoda quanto quebrava com seus contrabandistas cariocas o monopólio comercial da coroa espanhola) em troca de um território cujos habitantes teriam a mesma sorte de seus antepassados nas reduções de Guaíra, arruinadas pelos bandeirantes predadores e escravagistas.
     Não escapavam tais objetivos ao paulista Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V e grande defensor do Tratado, que encontrou séria oposição, assim que foi dado a conhecer. Mas a visão do estadista brasileiro ia além, porque naquela troca via garantida por lei a expansão de seus conterrâneos. Morto D. João V no mesmo ano do Tratado, desapareceu de cena Gusmão. Porém Pombal, que sobe com D. José I, leva tão a sério o Tratado de Limites que nomeia o próprio irmão para cuidar da sua execução nas terras inóspitas da Amazônia, e não cessa de corresponder-se com Gomes Freire, a quem instrui minuciosamente sobre a permuta de terras.
     Gomes Freire não aceitava entregar a Colônia que seu antecessor, Manuel Lobo, tinha fundado. A Colônia resistira heroicamente aos castelhanos com ajuda dos índios das missões; duas vezes haviam tomado pelas armas e os portugueses reconquistaram diplomaticamente. Aí está o dilema do herói. A entrega não podia estar em seu coração, como não estava no do poeta, que adotou o nome de seus descendentes maternos, gente ligada ao passado da colônia. Gomes Freire insistia com o Marquês de Valdelírios, chefe da Comissão espanhola, que se intensificassem os trabalhos de demarcação. Ao saber que os missioneiros ligados ao líder guarani Sepé se haviam oposto às demarcações, assume atitude enérgica e força o General Andonaegue, Governador de Buenos Aires (contrário à entrega das Missões), a formar exército que as invadiria. Por isso, Gomes Freire se põe à frente do exército auxiliar português que iria encontrar-se com o espanhol no rio Jacuí e aí se enfurece ao saber que seu aliado retrocedera. Por isso, Gomes Freire assina com os caciques que se lhe opunham. Nesse pacto, os caciques deram-lhe o direito de ocupação das terras em que avançara.
     Mais preocupado com a incorporação do Continente rio-grandense do que com glória militar, este protótipo de grão-senhor oitocentista, cantado por poetas cariocas ao partir para a campanha sulina, acompanhado nesta por seus músicos de câmara, protelou durante sete anos a entrega da Colônia. Morreu do coração no Rio de Janeiro, ao saber que sua Colônia foi tomada e arrasada pelos castelhanos de Buenos Aires, devido ao Tratado de Madrid e rompimento entre as nações ibéricas, quando em 1762 tomaram parte na Guerra dos Sete Anos.
     Basílio da Gama, havendo-se proposto cantar uma expedição militar de um general ilustre, deu-nos apenas a figura do Herói cívico, administrador, civilizador. Na verdade a Guerra Guaranítica foi operação que não interessou a Gomes Freire.
     Esse acontecimento histórico, no entanto, projetara a sombra do Herói na juventude guanabarina do poeta, além de guerreiros, índios e jesuítas. Portanto, o tema central foge ao assunto e aparece ao leitor como uma representação da eterna luta da civilização contra a barbárie, num mundo em que tanto quanto Gomes Freire, importam os bons selvagens que o poeta imagina vivendo numa natureza amena, quase idílica, mas presas da superstição e do fanatismo que lhes incutiam os bons padres espanhóis. À visão do poeta árcade, exposta em termos clássicos, sobrepõe-se o racionalismo do iluminista português da era de Pombal, característico até nos preconceitos.
     Mas que mundo é esse em que se movem as personagens do Uraguai? Inicialmente é o mundo civilizado, com seu Herói racionalista e os seus guerreiros plasticamente dispostos nas ocasiões festivas como na ordem de batalha; ao contato da civilização até os supostos “bárbaros” podem conter os seus impulsos e apresentar razões e contra-razões ao Herói, mas quando a ela se opõem pela força, levados pelos instintos, não há bravura que lhes substitua, na desordem em que se movem, a razão perdida.
     Liberado momentaneamente pela derrota frente à civilização que avança, o índio missioneiro volta à natureza, e ao contato acolhedor desta se revigora e retempera para a ação em que tem como aliados os elementos naturais: é o bom selvagem movendo-se no seu habitat natural. Acompanhando-o em seu retorno desse mundo natural ao mundo missioneiro, eis que aí vemos por toda parte a sombra da autoridade teocrática, que paga a bravura com a prisão e o assassínio; que priva do livre arbítrio a viuvez desprotegida; que assegura o triunfo do rapazola néscio e presumido; que não se enternece nem ante as mais comoventes e desesperadas demonstrações de amor conjugal e fraterno; que se compraz na vingança na hora em que lhe resistem ou se vê vencida.
     Quando o Herói entra em contato com esse Estado teocrático, sente-se conturbado: esse é um mundo de decadência e ruínas, que não justifica os pecados que mancham a alegoria da grandeza que se atribui à própria Companhia que nele impera. À sombra generosa do Herói, porém, reintegram-se no mundo dos índios do Uraguai os valores humanos, acarretando a vitória formal da civilização e a restauração real.
     Apesar da intenção panfletária e de intentar ser o mais factual possível, o Uraguai  se salva graças ao sentimento artístico de Basílio da Gama, que faz funcionar as notas como válvulas de escape da matéria mais obviamente prosaica e contrabalança as estereotipias do Herói de do Vilão com as personagens de seus índios, especialmente Sepé, Cacambo, Lindoia e Caititu. Na realidade os seres que inventa este poeta de parca imaginação superam no poema os que existiram historicamente.
     Na figura de Sepé sintetiza-se com clareza essa luta entre a realidade histórica e a fantasia, que está na gênese de toda arte; rigorosamente histórica na hora da morte, a arte ganha em seguida foros do caudilho folclórico com que a sonha o habitante dos pampas. No céu, de tocha na mão, já não será a primeira aparição de São Sepé, estrela e guia de gaúchos? É que o poeta, eliminando racionalmente da sua imitação dos clássicos os deuses maravilhosos, sentiu, não obstante, o que de transcendente havia na figura do herói americano e, em sonhos, o transfigurou. Neste poema do avanço da civilização sobre as terras dos bárbaros, Sepé é um símbolo cristão: derrotado, subiu aos céus. Nele fala o sentimento desde o início, quando interrompe a troca de razões entre o General  e Cacambo, com aquela promessa de devolver as setas que lhe dava o primeiro; o próprio leitor é afetado pela bravata que depois, na hora da ação, vê não ser bravata; até nisso é Sepé homem do Rio Grande. E, ante as razões imperialistas do General, perfeitas para a época, são mais vibrantes os sentimentos do índio (Cacambo) que discursa em defesa da terra natal.
     De Sepé o poeta teve boa informação. De Cacambo soube algo mais que o nome. De Pindó só o nome, dos demais bárbaros idealizou a figura com a lembrança dos índios que conheceu quando vira o Herói regressar ao Rio de Janeiro, havia dez anos. Surgindo no poema com categoria de “homem natural”, “bárbaro”, “rude americano”, alguns desses índios não passam de mera representação da ideia que o autor formava, por exemplo, de um bravo (Tatu-Guaçu), uma feiticeira (Tanajura), um jovem gabola (Baldetta).
     Assim aparecem também Sepé e Cacambo, mas enquanto um se transfigura, surgindo ao outro em sonhos, este se humaniza por completo. Cacambo, efetivamente, não é apenas o “homem natural”, servindo-se em seu habitat dos “elementos naturais”; é antes o indivíduo Cacambo, que transforma em aliados o pátrio rio e o vento, que faz fogo roçando paus no mato e vai visitar ao fundo do rio a areia, que o passo estende e na quarta aurora vê de longe a doce pátria e os conhecidos montes; é aquele que, tornando não esperado e vitorioso à presença do Vilão, encontra não a esposa amada, mas a morte: diante dele nos sentimos como na presença de um homem, exatamente aquele que melhor conhecemos no poema, e não ante um mero arquétipo do bom selvagem.
     Não tão bem caracterizada em seu mundo, muito mais clássico, é a senhoril Lindoia que só conhecemos quando, desvairada com a notícia da morte do marido, busca por todos os meios a morte e já morta voltamos a encontrar num bosque de amenidade bucólica. No entanto, desde sua patética apresentação, cativando o afeto do poeta, a esposa de Cacambo não cessa de crescer na imaginação do leitor. Vulto de mulher apenas entrevisto, é personagem de assombrosa vivência. Antes mesmo de sua morte, não sensacional ao modo de Cleópatra, Dido ou Moema, nem trágica como a de Inês de Castro, começamos a sentir o seu sofrimento. De todas essas heroínas mortas por amor, só a ela a morte, antes, lhe roubara o amado. Por isso, pressentimos tão infeliz. Com os poucos traços dela comentados à maneira de contraponto pela adjetivação e outros processos de tom elegíaco, Basílio da Gama, no auge de sua virtuosidade técnica incontestada, nos sugere – mais que descreve – o triste destino da infausta indiana: dentro de nós, leitores, os sentimentos ficam assim em liberdade para completar à nossa maneira a mulher que foi Lindoia, essa que depois de morta não foi rainha nem teve mais túmulo que a floresta, mas que há mais de duzentos anos continua viva na imaginação do brasileiro letrado.
     Tão comovente é essa criatura que a sua condição humana passa para o irmão, que inquieto a vai buscar no bosque fatal. Até então inteiramente enquadrado como chefe guerreiro, nada o distinguira dos demais caciques que batalharam em Caibaté ou tomaram parte no desfile por ocasião do casamento de Lindoia. Ao vê-lo entrar no bosque não podemos pois suspeitar que para sempre viverá conosco naquelas hesitações que o transformam em homem, quando busca a irmã com a vista e teme encontrá-la, quando três vezes dobra as pontas do arco e três vezes vacila entre a ira e o temor para afinal fazer voar a aguda seta e deixar cravados no tronco vizinho a boca e os dentes da verde serpente (o objeto da figura é que é inovação do poeta) sem tocar o peito da Lindoia (efeito semelhante ao que celebrizou Guilherme Tell): porém ela, coitada, já estava morta (eis a novidade surpreendente). Não admira que comovidos sintamos nos braços desse pobre irmão o peso do corpo inanimado que leva pelo bosque.
     Não sendo da natureza do poema épico caracterizar a fundo as personagens, como conseguiria o poeta tanto nos impressionar com essas criaturas? A resposta requer o estudo dos recursos estilísticos do poeta. E quem o empreenda não pode deixar de considerar inicialmente a posição do poeta em relação ao gênero do poema: Basílio era poeta menor, de fôlego breve, pouca imaginação e curtas intenções. Resolver a ambiguidade de sua economia de meios com o tradicional esbanjamento das epopeias foi o seu triunfo.  E só conseguiu devido à inexcedível maestria com que dominou a língua portuguesa, magnífico veículo expressivo em sua pena. Concisão, clareza, expressividade, variedade e eufonia, eis o resultado qualitativo da segurança com que distribui a massa linguística do poema, segundo o hábil emprego dos recursos de estilo que lhe permitem repetir, eliminar, transpor, intercalar ou alternar termos, segundo as necessidades.
                                                               XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX
     Utilizando-se no Uraguai do decassílabo, verso tradicional da épica nas línguas neolatinas, Basílio acumulou nele efeitos simultâneos, de som, cor e imagem intimamente ligados ao significado. Some-se ainda o efeito suspensivo do acavalgamento, provocador de emoção ou surpresa, e compreender-se-á porque tantas vezes se tem dito que são brilhantes e sonoros os decassílabos de Basílio. Contudo o poeta não chega a perder de vista a unicidade de propósito, elemento fundamental no seu poema: raramente deixa esse propósito de se manifestar por cima dos efeitos estilísticos que o acentuam, comentam ou acompanham. Escapa assim, quase sempre, ao obscurantismo formal em que se afundaram os poetas barrocos ao tentar reproduzir simultaneamente a multiplicidade dos reflexos oriundos de uma só causa.
     Sua clareza é, pois, fruto da ânsia de adequação. Manifesta-se pela exclusão do que não seja ideia, a palavra, a construção, a figuração exatas em tudo o que for possível. Essa eliminação de termos reforça obviamente a concisão. Raramente, porém, essa concisão e essa clareza obscurecem o sentido; a elipse, por exemplo, que é o recurso de economia expressiva de que mais se serve, poucas vezes o faz. Já os processos de expressividade por transposição ou repetição enfáticas, se ás vezes chegam a reforçar a clareza, outras vezes prejudicam-na; embora seja de notar que tais processos em muitas ocasiões não visam senão efeitos sônicos, de variedade e eufonia.
     Este extraordinário jogo de recursos dá aos versos do Uraguai riqueza acústico-significativa, com o ressoar das vogais repetidas ou a aliteração das consoantes nos trechos mais altamente expressivos; dá-lhes aquele brilho reverberante que corresponde ao aparato bélico nos desfiles e ações militares; ou torna-os suaves e doloridos nos momentos de maior calma e saudade; mostrando-os trêfegos e maliciosos, ou peçonhentos e raivosos, em outras ocasiões.

Fonte bibliográfica: Basílio da Gama – O Uraguai. Mário Camarinha da Silva. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, 3ª edição. Rio de Janeiro, 1976.

 


segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Dados biográficos do escritor Simões Lopes Neto


1865 – 9 de março: nasce em Pelotas, Rio Grande do Sul, João Simões Lopes Neto, filho de Catão Bonifácio Simões Lopes e Teresa de Freitas Lopes. Descende de estancieiros, sendo seu avô paterno João Simões Lopes, Visconde da Graça.

1878 – Com 13 anos, após ter passado a infância na campanha, embarca para o Rio, matriculando-se no Colégio Abílio. Ingressa depois na Faculdade de Medicina.

1882 – No 3º ano abandona o curso de medicina por motivo de saúde e regressa à cidade natal, onde se fixa.

1892 – Casa-se com D. Francisca Meireles Simões Lopes. Não teve filhos.

1894 – Sua primeira peça teatral, a revista “O Boato”, escrita em parceria com Mouta-Rara (José Gomes Mendes), é apresentada no Teatro 7 de Abril e repetida várias vezes. Segue-se uma série de pequenas peças.

1895 – Entra para a redação do “Diário Popular”, jornal local.

1896 – Lançamento, em colaboração, da opereta “Os Bacharéis”, levada à cena 30 vezes em vida do autor. Ingresso na redação de “A Opinião Pública”, à qual voltaria no ano de sua morte.

1910 – “Cancioneiro Guasca”, coletânea de poesias populares, Pelotas, Echenique & Cia. Editores.

1913 – “Lendas do Sul”, Pelotas, Echenique & Cia. Editores.

1914 – 2 de março: Assume a direção do “Correio Mercantil”, nela permanecendo até 17 de novembro do ano seguinte. Nesse jornal são publicados os “Casos de Romualdo”, histórias de um mentiroso reunidas em volume póstumo (1952). É desse ano (1914) a exemplar reação do escritor à notícia de que determinado grupo racial do Rio Grande do Sul pretendia eleger representante próprio à Câmara Federal. Simões Lopes sente a extrema gravidade do fato e o denuncia com veemência, em nome dos melhores princípios do nacionalismo brasileiro.

1916 – 14 de junho: morre o escritor em sua cidade natal, com 51 anos, depois de ter sido oficial da Guarda Nacional, teatrólogo, jornalista, funcionário estadual e federal, industrialista e comerciante.

Referência bibliográfica:
“Simões Lopes Neto – Contos e Lendas”, por Moysés Vellinho. 2ª edição. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1960.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Um texto de Basílio da Gama



Trecho inicial de “O Uraguai”

At specus, et Caci detecta apparuit ingens Regia, et umbrosae penitus patuere cavernae”.
Virgílius. Aeneida. Lib. VIII

AO ILUSTRÍSSIMO E EXCELENTÍSSIMO SENHOR CONDE DE OEIRAS

SONETO

Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo,
E em cima a estátua de um Herói perfeito,
Mas não lhe lavres nome em campo estreito,
Que o seu nome enche a terra e o mar profundo.

Mostra no jaspe, artífice facundo,
Em muda história tanto ilustre feito,
Paz, Justiça, Abundância e firme peito,
Isto nos basta a nós e ao nosso mundo.

Mas porque pode em século futuro,
Peregrino, que o mar de nós afasta,
Duvidar quem anima o jaspe duro,

Mostra-lhe mais Lisboa rica e vasta,
E o Comércio, e em lugar remoto e escuro,
Chorando a Hipocrisia. Isto lhe basta.
                                                             Do Autor.
saevis... periclis / Servati facimus.” Virgilius. Aen. VIII.

CANTO PRIMEIRO

Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pastos de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilheria.     / 5
MUSA, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!

Explicações de Mário Camarinha da Silva
I.1-5: ABERTURA DO POEMA
I.1 – A Abertura ecoa a Gerusalemme Liberata, IX, 87 e 93, indica Sérgio Buarque de Holanda.
2 – Hipérbato antecipando fumam (aqui intransitivo, com dois adjuntos no verso 1 ao sujeito lagos. Notar a concordância de tépidos e impuros, qualidades do sangue atribuído aos lagos.
3 – Ondeiam: está ondeam no texto, como área (I, 90) e atea (III, 103).
4 – Inda mantém-se ainda na pronúncia, devido à sinérese.
5 – Leia-se: “o/rou/co/som/da i/RA/ da ar/ti/lhe/RI/a”, com sinérese na 5ª sílaba e crase na 7ª. Devido a “rouco som”, Sérgio Buarque de Holanda aproxima o verso da Gerusalemme Liberata, IV, 3; mas a expressão já estava em La Araucana, V, 8, e ocorre também no Caramuru, IV, 29: é lugar comum da tradição clássica.
I.6 – INVOCAÇÃO
I.6 – MUSA, em caixa alta, como recurso gráfico para realçar a ênfase.
I. 6-9 – PROPOSIÇÃO

Referência bibliográfica:
Basílio da Gama – O Uraguai. Por Mário Camarinha da Silva. Coleção Nossos Clássicos. Publicado sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1976.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Dados biográficos do Escritor Basílio da Gama


1741 – 8 de abril – Nasce em São José do Rio das Mortes (depois chamada Tiradentes), Minas Gerais, José Basílio, filho de Manuel da Costa Vilas Boas, capitão-mor do Novo Descobrimento, e de uma neta de Leonel da Gama Belles, oficial que lutou na Colônia, e de quem o poeta adota o nome.

1757 – Órfão de pai, Basílio ingressa no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro.

1759 – 3 de novembro – Já em fase de noviço entre os jesuítas, Basílio vê o Colégio ser fechado por Gomes Freire, vencedor da guerra contra as missões no Uruguai, na época em que o Marquês de Pombal se volta contra os jesuítas.  

1760 – Basílio não consta na lista dos expulsos do Colégio. Em janeiro o bispo havia ordenado aos noviços que se arrependessem dos votos religiosos feitos; Basílio resistiu a isso até o mês de março. Partiu para Roma para buscar apoio entre seus pares. A respeito do que fez lá e foi registrado nos arquivos da Companhia, pouco foi publicado. Seu poema Brasiliensis Aurifodinae levou-o à Arcádia Romana, pelo poeta Michel Giuseppe Morei.

1765 – Possivelmente já em Portugal, canta o 3º lustro do Governo.

1767 – fevereiro: No Rio, impressiona-o o lançamento da “Nau Serpente”, sobre a qual escreve poema.

1768 – 30 de junho – embarca, no Rio, para Coimbra. Em Lisboa, foi preso por acusação de apoiar os jesuítas. Liberta-se prometendo ir para Angola.

1769 – Para evitar o degredo, escreve “Epitalâmio” à filha de Pombal, louva o Ministro e ataca os jesuítas. Com isso, sobrevém-lhe a glória. Ele estrutura e publica um poema em que trabalhava desde Roma chamado “O Uraguai”.

1770 – Envia O Uraguai ao poeta italiano Metastasio, de quem depois se torna tradutor.

1771 – requer e obtém carta de fidalguia do governo português.

1774 – é nomeado oficial administrativo e secretário de Pombal.

1775 – É dos poetas brasileiros que cantam a estátua do rei de Portugal.

1776 – dedica ao Conde da Redinha (filho de Pombal) o poema “Os Campos Elísios”.

1777 – Morre o Rei, cai Pombal, Basílio é atacado. Ele defende o ex-ministro, satiriza os adversários, canta a aclamação de Dona Maria como rainha.

1780-86 – convive, imperturbável, com seus detratores (como Kaulen).

1788 – anônimo, escreve “Lenitivo da Saudade” em homenagem à morte de Dom José, príncipe do Brasil.

1790 – por estar longe do “Brasil, sua pátria”, pede que lhe seja permitido à Ordem de Santiago, em Lisboa, chamando-a de “Pátria comum”.

1791- canta a lealdade do africano Quitúbia, herói de seu povo.

1795 – 31 de julho – morre em Lisboa, já elelto para a Academia Real.


Fonte bibliográfica:
 “Basílio da Gama – O Uraguai”, por Mário Camarinha da Silva; 3ª  edição; da coleção “Nossos Clássicos”, publicados sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa, Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1976.

sábado, 1 de julho de 2017

Escritor Matias Aires – contexto histórico e estudo crítico


Contexto histórico

     Matias Aires é um homem do século XVIII e um homem que teve contatos com o mundo europeu, donde a necessidade de sua localização histórica dever fazer-se, preliminarmente, em função da Europa. Produzindo obra de pensamento, torna-se óbvio que a situação histórica em que se envolverá acarreta uma apresentação da própria história do pensamento humano no século XVIII.
     Século rico de movimentos ideológicos e intelectuais, o século do Iluminismo e do Rococó tem a seu favor constituir uma etapa decisiva da evolução do pensamento ocidental. O século XVIII parece, à primeira vista, uma época de prazeres. As telas de Fragonard, continuando Watteau, apresentam-nos uma sociedade saciada e fútil, à procura de prazeres imediatos, de luxo e amor fácil; porém o século era, na sua estrutura básica, apesar do minueto que se dançava nos ricos salões de Luís XIV, uma época que, no setor do pensamento humano, representava o ápice de um longo processo intelectual para a consolidação definitiva de uma ideologia sustentada há séculos, com inúmeros esforços, pela classe burguesa.
     Para o entendimento deste processo ideológico, é necessária a recapitulação das lutas burguesas, obrigando-nos mesmo a um recuo aos tempos medievais, pois é na disciplinada e estática sociedade feudal que surgiu, revolucionário, no Mercado e na Cidade, “o burguês”, cujo padrão de vida era oposto aos ideais de vida do Castelo, pois exigia preliminarmente liberdade, dada a função de fazer ressurgir o comércio e ter lucros, e tinha de destruir o entrave da vida feudal, então caracterizada por uma economia local e de subsistência.
     Foi o “movimento burguês” que corroeu a sociedade feudal. Para isso lhe foi necessário criar uma filosofia social sua. No longínquo século XII, já surgia uma chamada burguesia legista, que recuperava o Direito Romano, na forma bizantina, dando a arma ideológica para o esforço dos reis que tentavam erguer-se num novo poder centralizador.
     É no século XVI que se consolida o processo, e podemos observar pela primeira vez uma vitória burguesa com a formação de vários estados fortes na Europa: Portugal de D. Manuel, Espanha de Felipe II, a França de Francisco I e Henrique IV e a Inglaterra dos Tudor, representam o esfacelamento completo do sistema feudal (Não foram sem lutas os últimos anos: os Tudor entraram no poder por meio da sangrenta guerra das Duas Rosas, vencendo e ganhando a Coroa numa típica guerra feudal terminada em 1485; na França, o habilidoso Luís XI vencera, em guerra interna, a Carlos o Temerário, o último dos Grandes Senhores, então Duque de Borgonha, e na Espanha os reis católicos, de Castela e Aragão, Fernando e Isabel, realizavam a última Cruzada contra os mouros, vencendo Granada em 1492).
     Porém, os monarcas do Absolutismo não terminavam uma sociedade: sobrepunham a ela novos costumes, deixando prevalecer privilégios da nobreza antiga, que agora adaptada, transformara-se numa “nobreza de robe”, isto é, servidora imediata do rei que a substituía, com novos privilégios, à antiga classe agrária-feudal.
     A burguesia tinha, assim, uma vitória no estado centralizado e um entrave na nova classe surgida, que então, dado o incremento da política Mercantilista, criadora de Monopólios, tornara-se a manobradora desta nova economia, intimamente ligada com a alta burguesia mais ou menos enobrecida. Os exemplos são tirados em Portugal de D. João III, e na Espanha de Carlos V, preocupados com Monopólios nas Índias e Américas, e a política francesa desde Sully até Colbert.
     O século XVII torna-se um século pessimista. As duas correntes clássicas de pensamento – burguesa e nobre – sentiam-se numa luta final pela sobrevivência. O estado absoluto, arma de dois gumes, atirara definitivamente uma contra a outra, ora se valendo do Mercantilismo, ora das doutrinas fisiocráticas que viam a riqueza apenas nas dádivas do solo. Além disso, a política mercantilista e monopolizadora do Estado, intervindo na economia, cerceava a liberdade da iniciativa privada, ideal máximo do burguês.
     Na Inglaterra, a luta entre a nobreza e a burguesia tem as suas ideias formuladas mais claramente. A nobreza, querendo agora o estado forte, e a burguesia o estado liberal. Hobbes e Locke serão os dois porta-vozes das ideias em que se digladiaram, no século XVIII, nobreza e burguesia. Hobbes dava, em defesa do absolutismo Stuart, dentro de princípios novos e na crença do Contrato Social, os alicerces da teoria materialista do absolutismo, que iria somar-se às ideias do Direito Divino espalhadas por Bossuet na França. Já Locke, partindo da mesma premissa do Contrato Social, porém interessado em dar lastro teórico à revolução de 1688, que derrubara definitivamente o absolutismo inglês, ao destronar o último Stuart, esboçava toda a teoria do liberalismo. Na própria Inglaterra, também surgirá o economista Adam Smith que apresentaria as normas clássicas da Economia burguesa, justificando a Livre-Concorrência e a Lei da Oferta e da Procura.
     A necessidade mais premente desta liberdade burguesa é o Liberalismo que surgirá vigoroso no século XVIII, liberalismo que admite inclusive o soberano absoluto, desde que o mesmo se sirva do absolutismo para criar o mundo burguês. Isto explica o fenômeno conhecido como o “Despotismo Esclarecido”, lembrando-se que os déspotas foram admirados e eram admiradores dos principais pensadores revolucionários do liberalismo: Catarina II manteria correspondência com Diderot e Voltaire, e este é amigo do Imperador Frederico II.
     É este o ambiente que Matias Aires encontrará na Europa e mesmo em Portugal, ,então governado pelo Marquês de Pombal, aplicando a forma lusitana do Despotismo Esclarecido (sem o que talvez não fosse nem mesmo possível a publicação de um livro como as Reflexões). E na França encontra o Liberalismo revolucionário em fermentação e, ante esse quadro, uma nobreza que, convicta da decadência, vive a vida com a rapidez e a futilidade rococó dos famosos quadros de Fragonard.
     Matias Aires, como os homens de sua geração, se apresenta ante um mundo convulso cheio de novas ideologias – ante o utopismo que se representará mais tarde principalmente com Jean Jacques Rousseau, ante a crença dos burgueses enciclopedistas, como d’Alambert, Voltaire, Diderot, mas também ante um  ranço pessimista que sobrevém do século XVII, onde a nobreza descrente começava a sentir o desencanto do mundo, como o Duque de La Rochefoucauld, que na opinião quase unânime dos críticos é o que mais refletirá na obra de Matias Aires, cujas Reflexões aparecem em 1752.
     Da terra em que nasceu, o ambiente histórico é o da Colônia rica, onde o ouro existia. Sobre a escravidão distribuída entre as fazendas e as minas erguia-se uma sociedade de funcionários e de senhores de terras, pessoas ligadas à burguesia por laços de sangue, mas, dentro do padrão de vida da colônia escravocrata-latifundiária, mais privilegiadas talvez que qualquer nobreza europeia. Filho de funcionários de São Paulo, Matias Aires será – como fora La Rochefoucauld, embora nosso autor seja um burguês – uma mentalidade expressiva de um sentimento de nobreza descrente e entediado, como seriam todos os pensadores setecentistas que não viviam o sonho entusiasmado dos ideais liberais. 

Estudo Crítico

I – Sentido da obra
     No século XVIII o mundo intelectual se dividia em duas correntes: uma, esperançosa e liberal; outra pessimista, descrente, ao ver que desde o século XVI, onde a humanidade renascentista pusera toda a sua fé no futuro dos homens, nada de realmente novo se positivara. Assim, publicado em 1752, o livro de Matias Aires atendia ao interesse de muitos leitores, e por isto foi um livro de sucesso. Desde o século XVI eram comuns os livros, a maioria despretensiosos, que procuravam, sem os embaraços de obra positivamente filosófica, a utilidade e a verdade do homem sobre a terra; por exemplo, em 1654, publicava-se na França um sugestivo trabalho intitulado “Como adquirir a Paz no Matrimônio”, tipo de obra comum, e além destes livros de “experiência”, publicavam-se esmeradas lições de etiqueta e os livros tidos como práticos e conselheiros, tais como os que continham regras de medicina domiciliar. Entre estes livros de moral (em geral, a partir do século XVII, pessimistas, com ranço de profunda ironia, fazendo a ligação entre Molière e Voltaire) se enquadrará a obra de Matias Aires.
     O homem mau foi constante nos filósofos do pessimismo no século XVII. Hobbes vira no homem anterior ao “contrato social” o “homo homini lupus”, enquanto Locke admitira, para conclusões antagônicas, o mesmo egoísmo e a mesma maldade no “homem natural”. Mentalidades clássicas, eles procuravam a versão do homem natural em autores da antiguidade, e Tucídides, que Hobbes estimava e traduzira, fornecera o material fonte para tal conceito.
     No século XVII, é permanente a alusão ao homem guiado pela falta de princípios: “os vícios entram na formação das virtudes como os venenos entram na composição dos remédios”, explicaria La Rochefoucauld, e Madame Sevigné, La Bruyère, e outros, nos deixaram claro que acreditavam na maldade inata do “Homem Natural”, premissa que se tornou o lugar comum até que a pena de Jean Jacques Rousseau o viria defender, mas já na segunda metade do século XVIII.
     Do princípio do homem mau saía a vontade de desmascará-lo,  apresentando-o como ligado a um vício; Matias o tem preso à vaidade.
     É difícil examinar se Matias Aires queria realmente, por convicção da impossibilidade de se corrigir o que restava de vicioso no do “Homem Natural” antigo, apresentar-nos uma extensa filosofia da Vaidade, formando assim, como já apontou um crítico, de um aspecto parcial uma filosofia do todo. Mas há também quem tenha lembrado que a crítica social às vezes formulada usava, por ironia, a impressão da crença num aspecto parcial, aparentemente desprezível, para o ridículo do Todo. Lembramos que este processo era velho. Já Erasmo utilizara-o no seu Elogio da Loucura, no século XVI.
     Seria Matias Aires um convicto da vaidade, tal como – diz um outro crítico atual [anos 1960] – Marx crerá na Economia e Freud na libido, no século XIX? Ou Matias Aires, como humanista, que indiscutivelmente era, lançara mão da Vaidade na sua obra, como Erasmo da Loucura? Ou, podemos pensar ainda, sua Vaidade servia para uma renovação do Eclesiastes, formulando, numa apresentação ao gosto do século em que vivia, a lembrança de uma “Verdade Eterna”?
     Com qualquer intenção, surgia novamente o tema da vaidade estigmatizando o homem imperfeito; usava-se Matias Aires para apresentar sua descrença, seu ceticismo no homem, seu pessimismo enfim. Este pessimismo é que provocou lembrarem-se seus críticos de estar sua obra, do ponto de vista da temática, mais ligada ao século XVII do que ao XVIII. Estava o autor como à “cavaleiro entre os dois séculos”. Isto melhor explica de como o livro, com a temática pessimista oriunda do século anterior, era simultaneamente um livro atual, obtendo assim o êxito de várias edições. O tema, afinal, não era totalmente explorado. O livro realmente só veio a cair no esquecimento no século XIX: pois a definitiva vitória liberal e o individualismo que se seguiu, a crença absoluta na missão e na perfeição do homem que surgiria no século do romantismo, tornaram o livro repentinamente antiquado.

II – A linguagem e o estilo

     O “clássico” da língua.
     Desde o redescobrimento de Solidônio Leite, tornou-se lugar comum incluir Matias Aires entre os “clássicos” da língua.
     Cândido Jucá (filho) com a sua autoridade de filólogo, é dos raros que, apontando o exagero de tal atitude, lhe delimitam convenientemente os méritos (A Literatura no Brasil, vol 1, t. 1, págs, 520 e 521).
     Na verdade, por mais que se estenda o conceito de “clássico”, sempre seria impróprio aplicá-lo a Matias Aires: 1º - é ele antes barroco do que neoclássico; 2º - não tem a sua obra aquelas características de genialidade, ou talento ímpar, que a tornem representativa de uma época; 3º - não é modelar a sua linguagem, enfeiam-na solecismos, é um tanto arcaizante, e nem sempre se distingue pela limpidez; os períodos são por vezes excessivamente sobrecarregados, tirando-lhe ao estilo a maciez e ductilidade apregoada por alguns.
     Sirvam de amostra, quanto à correção da linguagem, estas passagens:
     “Nisto se vê dois efeitos contrários” (fragm. 11, pág. 13 da 1ª ed.);
     “Mal pode caber na lembrança dos homens todos os grandes sucessos de que se compõe a variedade do mundo” (fragm. 26, pág. 29 da 1ª ed.);
     “A falta de Religião consiste em se não temer a Deus, a falta de costumes resulta de se não temer os homens” (fragm. 75 – 17 desta edição - , pág. 98 da 1ª ed.);
     “Se os olhos e os ouvidos se distraem, e alucinam, que outros sentidos temos nós que os haja de conter, ou os faça retratar?” (fragm. 112 – 37 desta edição – págs. 205-6 da 1ª ed.);
     “Mas de quantas ações fará menção a história, que jamais se viram? / ... / E de quantos nomes, que nunca houveram?” (fragm. 144 – 46 desta edição - , pág. 363 da 1ª ed.).
     Conforme os autores desta crítica, o vocabulário das Reflexões, é bastante parco, nada justificando a sua inclusão entre as obras básicas para a elaboração do Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa – resolução que estes autores consideram como o ponto de partida para a “ressureição” da obra de Matias Aires.
     Ainda conforme os autores, não tem Matias Aires singularidade marcante de estilo: sua linguagem é comum, bastante clara, embora às vezes algo arcaizante, aproximando-se mais da prosa seiscentista, de que conserva, por vezes, certas construções barrocas.
     Emprega sempre algumas formas já caídas em desuso à sua época: fermoso, fermosura, valeroso, desemparar, ventagem, a fantasma, o hipérbole; nas orações de voz passiva pronominal antepõe, contra o uso moderno mais geral, o sujeito ao verbo: “Uma grande pena admira-se, e respeita-se” (fragm. 18); “O vício pratica-se ocultamente” (fragm. 68).
     Sua pontuação é também antiquada, e menos coerente que a de prosadores do século anterior, como Bernardes, Francisco Manuel de Melo, Frei Antônio das Chagas, Frei Luís de Sousa.
     Revelam artifício barroco certas construções como estas: “A ciência humana o mais a que se estende, é ao conhecimento, de que nada se sabe: é saber o saber ignorar, e assim vem a ciência a fazer vaidade da ignorância” (fragm. 14); “Bem se pode dizer, que o juízo é o mesmo que entendimento, porém é um entendimento sólido; por isso pode haver entendimento sem juízo, mas não juízo sem entendimento: o ter muito entendimento às vezes prejudica, o ter muito juízo sempre é útil: o entendimento é a parte que discorre, porém pode discorrer mal: o juízo é a mesma parte que discorre, quando discorre bem: o entendimento pensa, o juízo também obra; por isso nas ações de um homem conhecemos o seu juízo, e no discurso lhe vemos o entendimento: o juízo duvida antes que resolva, o entendimento resolve primeiro que duvide; por isso este se engana pela facilidade com que decide, e aquele acerta pelo vagar com que pondera (fragm. 15). Conforme M. L. Belchior Pontes, Frei Antônio das Chagas – Um Homem e um Estilo do século XVII, cap. X.
     Uma particularidade de notar é a frequência da antecipação do complemento verbal, mais comumente sem relembrá-lo pleonasticamente. Vejam-se, de amostra, estes dois exemplos (do Prólogo): “A maior parte destas Reflexões escrevi sem ter o pensamento naquela vaidade”; “E esta promessa entro a cumprir já”. – Com pleonasmo em forma de pronome átono é bem menos frequente a antecipação, ao contrário do que acontece em autores do século XIX: “A constância da virtude não a devemos à vontade, mas ao receio”. (fragm. 21); “À mulher todos a idolatram por formosa” (58); “A virtude não a queremos de graça” (119).
     Ressalvado tudo isso, não lhe podemos negar à linguagem, entretanto, uma fluência persuasiva (o leitor há de verificá-lo), originária menos do estilo do que da sua habilidade dialética, da qual nem sempre é fácil desenredar-nos.
    Se de um lado, a linguagem e o estilo de Matias Aires nada têm de excepcional, por outro lado só é de louvar a sua redescoberta, por nos ter ela trazido, com as reedições das Reflexões, o primeiro pensador brasileiro (só de nascimento, aliás, porque todo europeu na educação e sentimento), ainda hoje “extraordinariamente atual e vivo” [década de 1960] graças à saborosa perspicácia da sua análise da alma humana, em certos aspectos imutável através dos tempos.     

     Os temas

     Partindo do leit motiv “vaidade”, aborda variados temas, com os quais vem ela mesclada, uma vez que, para ele, é a vaidade, ainda que às vezes paradoxalmente, que nos leva a uma série de paixões e vícios, e instituições:
    Ao amor próprio: “Nasceu o homem para viver em uma contínua aprovação de si mesmo. A vaidade parece-se muito com o amor próprio, se é que não é o mesmo; e se são paixões diversas, sempre é certo que ou a vaidade procede do amor próprio, ou este é efeito da vaidade” (fragm. 10 da 1ª ed.).
     A glória: “Vivemos com vaidade, e com vaidade morremos; arrancando os últimos suspiros, estamos dispondo a nossa pompa fúnebre, como se em hora tão fatal o morrer não bastasse para ocupação: nessa hora, em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo está para nos deixar, entramos a compor, e a ordenar o nosso acompanhamento e assistência funeral; e com vanglória antecipada nos pomos a antever aquela cerimônia, a que chamam as Nações últimas honras, devendo antes chamá-la vaidades últimas” (fragm. 2 da 1ª ed.).
     A sociedade: “Nada contribui tanto para a sociedade dos homens, como a mesma vaidade deles: os Impérios, e Repúblicas, não tiveram outro princípio em que mais seguramente se fundassem: na repartição da terra, não só fez ajuntar os homens os mesmos gêneros de interesses, mas também os mesmos gêneros de vaidades, e nisto se vê [sic] dois efeitos contrários; porque, sendo próprio na vaidade o separar os homens, também serve muitas vezes de os unir” (fragm. 11 da 1ª ed.). – “A vaidade sempre foi origem de nossos males; mas primeiro que a vaidade, foi o comércio comum das gentes; porque dele resulta a vaidade como contágio contraído no trato, e conversação dos homens” (fragm. 38 da 1ª ed.).
     E até a mesma virtude: “A vaidade, por ser causa de alguns males, não deixa de ser princípio de alguns bens: das virtudes meramente humanas, poucas se haviam de achar nos homens, se nos homens não houvesse vaidade” (frag. 8 da 1ª ed.).
     E assim à nobreza [nº 45 dentro da edição em que este texto se baseia], à justiça (nº 43), à tirania (nº 11), à inveja (nº 8)...
     Não deixa de causar certa estranheza, nas reflexões acerca do amor, sabê-las de um misantropo e pessimista crônico, em que não suspeitaríamos o lirismo que por elas perpassa.

Fonte bibliográfica: 
Matias Aires - textos escolhidos - Coleção Nossos Clássicos - Editora Agir - por Adriano da Gama Kury e Pedro Luiz Masi - Publicado sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa, Jorge de Sena, 1962. 


domingo, 14 de maio de 2017

Um texto do escritor Matias Aires


   Mas se é certo que a vaidade é vício, parece difícil o haver virtude que proceda dele; porém não é difícil quando ponderamos que há efeitos contrários às suas causas. Quantas dores há, que se formam do gosto, e quantos gostos, que resultam da dor! Essa infinita variedade dos objetos tem a mesma causa por origem: as diferentes produções que vemos, todas se compõem dos mesmos princípios, e se formam com os mesmos instrumentos. Algumas coisas degeneram, à proporção que se afastam do seu primeiro ser; outras se dignificam, e quase todas vão mudando de forma, à medida que vão ficando  distantes de si mesmas. As águas de uma fonte, a cada passo mudam; porque apenas deixam a brenha, ou rocha donde nascem, quando em uma parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra, diamante. Que outra coisa mais é a natureza, do que uma perpétua e singular metamorfose?

Fonte bibliográfica:
Texto da obra “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, ou Discursos Morais sobre os efeitos da Vaidade”(1752) in “Matias Aires – Trechos Escolhidos”, por Adriano da Gama Cury e Pedro Luiz Masi. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1962. 

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Dados biográficos do escritor Matias Aires


1705 – Nasce, em São Paulo, Matias Aires Ramos da Silva de Eça, filho de José Ramos da Silva, provedor da Casa da Moeda de Lisboa, e de Dona Catarina da Horta.

1716 – Segue para Lisboa, onde cursa o Colégio de Santo Antão.

1722 – Matricula-se no Curso de Leis da Universidade de Coimbra.

1728 – Viagem por Madri e depois para Baiona, onde estuda Hebraico, Ciências Físicas e Matemática.  Aí faz amizade com o Infante D. Manuel.

1729 (?) – Segue para Paris, onde se diplomou “em ambos os direitos”, numa permanência de mais de cinco anos.

1733 – Data provável de seu regresso a Portugal.

1742 – Nasce seu filho José, de suas relações com D. Helena Josefa da Silva.

1743 – Em 18 de dezembro morre seu pai, que deserdara a filha D. Teresa Margarida da Silva e Horta – autora do primeiro romance brasileiro, As Aventuras de Diófanes – por ter a mesma casado, contra a vontade paterna, com Pedro Jensen Moler van Praet. Matias Aires opõe-se com todo empenho a que a irmã, que se afastara da família, receba alguma coisa. Ela, por sua vez, o acusava por dilapidar os bens da família com sua viagem à França. Neste mesmo ano, Matias Aires adquire o palacete dos Condes de Alvar, conhecido como o Palácio das Janelas Verdes.

1744 – É nomeado Provedor da Casa da Moeda, cargo que era ocupado por seu pai.

1748 – Nasce seu segundo filho, Manuel Inácio, que, juntamente com o irmão mais velho, terão dedicação maternal de parte de Teresa Margarida, a qual, depois de asenviuvar (ou pouco antes), se reconciliara com o irmão.

1752 – Data da primeira edição de “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”. Neste ano se publica também o romance da irmã (que usa o anagrama Dorothes Engrassia Tavareda Dalmira), então com o título “Máximas de Virtude e Formosura”.

1761 – Circula a segunda edição de “Reflexões”. Matias Aires é demitido pelo Marquês de Pombal, das suas importantes funções de Provedor da Casa da Moeda.

1763 – Morre, em 10 de dezembro, de apoplexia.


Fonte bibliográfica:
Matias Aires – Reflexões sobre  vaidade dos homens” – Trechos Escolhidos. Por Adriano da Gama Kury e Pedro Luiz Masi. Coleção Nossos Clássicos . Sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1962.