segunda-feira, 7 de março de 2016

Texto do escritor Inglês de Sousa


Trecho extraído de “O Coronel Sangrado” em “Cenas da Vida do Amazonas” do escritor Inglês de Sousa
(S. Paulo, 1882)
     Miguel, que viveu cinco anos na cidade de Belém com a sociedade mais culta do Pará, tinha todos os exteriores do homem civilizado, mas ainda conservava muito do antigo pescador do Paranamery. A vida da cidade conseguira modificar-lhe o caráter, e abrandar-lhe o gênio, mas não o curou radicalmente.
     O rapaz, diferentemente de outros tempos, almejava agora a paz e a tranquilidade e queria esquecer as injúrias outrora recebidas, mas isto não era mais que uma vitória ganha pela cabeça sobre o coração. Homem ilustrado hoje, ele abjurava as mesquinhas ideias de outras eras, mas, mau grado seu, o coração ainda sentia o espinho de um ressentimento vago, que Miguel não ousava confessar a si mesmo. O que dissera ao Coronel Sangrado, o que fizera ver em Óbidos era o que queria sentir, mas não era o que verdadeiramente sentia.
     Pensando que teria de encontrar-se sem falta com o seu antigo inimigo, lembrava-se das antigas inimizades, e reabria-se-lhe a ferida que a vaidade espezinhada tinha feito. Mas o rapaz prometia dentro em si colocar-se superior a isto.
     No meio deste turbilhão de ideias, uma ideia aparecia-lhe de vez em quando límpida e clara, mas amargurada e terna ao mesmo tempo.
     O moço pensava na afilhada do Tenente Ribeiro, na mulher do Alferes Moreira, na sua companheira de infância. E o seu pensamento podia resumir-se em um nome: Rita!
     Rita!
     Todo o passado desenrolava-se diante de Miguel, com as dores e as raras alegrias. O acre sofrer do amor próprio espezinhado, da vaidade amesquinhada, do orgulho ofendido, o desejo rebelde de vingança, todas as tristes recordações de um passado amargurado. As esperanças mortas, os projetos dourados desaparecidos ao menor sopro da adversidade, os desenganos todos lhe reviviam n’alma, como se tudo fosse agora!
     Por aquela que recordava agora quase a medo teria feito em outro tempo as maiores loucuras. Pelo desprezo com que ela o tratara mais do que por outra qualquer razão, abandonara a mãe, o sítio, a terra natal, e fora viver entre estranhos, do suor do seu rosto.
     E o rapaz perguntava a si mesmo se seria hoje capaz do que fizera pela filha do Tenente. Hesitava em responder.
     Durante os quatro anos passados no Pará, por mais que fizesse Miguel, não conseguiu banir da mente a ideia de Rita. Em toda parte por onde andava aquele nome lhe estava presente à lembrança. Não o esquecera nunca durante todo aquele tempo de afanoso lidar.
     E não era isto que o rapaz havia projetado.
     A ideia que o levara à capital do Pará fora uma ideia de vingança. Completamente ludibriado pelo Tenente Ribeiro, enganado nas suas mais caras afeições, Miguel julgou que aquilo era devido ao seu estado, de então, de criança ignorante, desamparada e pobre. Quando seu orgulho imenso debatia-se em convulsões tremendas pela derrota, considerada vergonhosa, encontrara um amigo que o aconselhara e dirigira. Dos vagos projetos do primeiro momento saiu então uma resolução firme e pensada. Foi por isso que Miguel fugiu para Belém no vapor “Ligeiro”.
     Projetava ganhar pelo trabalho e pela ilustração forças bastantes para realizar a vingança. Era a sua ideia dominante no meio da árdua tarefa de caixeiro.
     Mas pouco a pouco, com o viver da capital, foram-se-lhe modificando as ideias, à medida que se ia ilustrando mais o seu espírito.
     No Pará, Miguel fora empregado na casa de um excelente homem que o tratou como filho. O rapaz teve, pois, tempo de instruir-se lendo alguma coisa.
     O resultado desta instrução e da convivência com o patrão e os seus amigos, foi a resolução que o vimos tomar e que tanto desapontamento causou ao Coronel Sangrado, e em geral à gente de Óbidos. E isto porque, em vista de seu antigo proceder, não se podia esperar outra coisa.
     O rapaz tomara, muito antes de voltar a Óbidos, e logo ao projetar essa volta, a resolução de esquecer tudo o que se passara com a família Ribeiro.
     Queria esquecer as injúrias recebidas. Era isto efeito do poderoso impulso da civilização, que lhe alargara a órbita estreita das ideias. Mas, já dissemos que se a civilização lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre os seus sentimentos. 

Fonte bibliográfica: Inglês de Sousa - textos escolhidos. Por Bella Josef. Coleção Nossos Clássicos. Sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963. 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Dados biográficos do escritor Inglês de Sousa


1853 – 28 de dezembro. Nasce em Óbidos, província do Pará, Herculano Marcos Inglês de Sousa, filho do Desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa e de D. Henriqueta Amália de Góis Brito Inglês. Origina-se de uma das mais antigas famílias paraenses.
1864 – É matriculado no colégio de Sotero dos Reis no Maranhão, para completar os primeiros estudos iniciados no Pará.
1867 – É internado em casa de ensino secundário no Rio: Colégio Perseverança.
Consta que, nesse local, o diretor do colégio confiscou-lhe suas próprias “Obras Completas”, com um romance, “Filipe de Monfort”; um drama, “A Justiça de Deus”; um poema heroico-cômico, “Os Lopíadas”, alusivo aos paraguaios; e um caderno de poesias líricas e heroicas.
1870 – Faz os preparatórios no Recife e matricula-se na Faculdade de Direito. Passa as férias com a família. Jamais voltou à Amazônia.
1875 – No quarto ano da Faculdade, escreve “O Cacaulista”, publicado em Santos (1876).
1876 – Cursa a Faculdade de Direito de São Paulo, onde recebe o grau. Publica “Cenas da Vida do Amazonas: História de um Pescador” (São Paulo).
1877 – Publica “O Coronel Sangrado” (Santos).
1878 – Casa-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisneta de José Bonifácio. Faz jornalismo e política. Ingressa no Partido Liberal e funda o “Diário de Santos” e a “Tribuna Liberal” e com o Dr. Antônio Carlos a “Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras”. Foi secretário da Relação de São Paulo; deputado à Assembleia Provincial, elabora o projeto de criação da Escola Normal.
1881 – Funda a “Ilustração Paulista”. É nomeado presidente de Sergipe (Lei Saraiva).
1882 – É eleito presidente do Espírito Santo. Volta a Santos. Fracassa a candidatura à Assembleia Geral.
1883 – Advoga em Santos, após abandonar a política a conselho médico.
1890 – Muda-se para São Paulo, onde funda o Banco de Melhoramentos de São Paulo.
1891 – Publica “O Missionário” (escrito em 1888).
1892 – Transfere-se para o Rio de Janeiro.
1894 – É convidado para professor da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro.  
1896 – Participa da Fundação da Academia Brasileira de Letras, de cujo projeto de Estatutos foi o redator.
1898 – Publica “Títulos ao Portador no Direito Brasileiro”.
1899 – Sai publicada a 2ª edição de “O Missionário”, revista pelo autor.
1902 – É nomeado diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais.
1908 – Presidente do Instituto da Ordem dos Advogados e do 2º Congresso Jurídico Brasileiro.
1916 – Representa o Brasil no Congresso Financeiro Pan-americano em Buenos Aires no qual é escolhido Presidente da Comissão para unificação da legislação sobre letras de câmbio.
1918 – 6 de setembro: morre no Rio de Janeiro. Foi sepultado no cemitério de São João Batista com um “dos maiores acompanhamentos de que há memória”, segundo registrou “O País” no dia seguinte.

Fonte bibliográfica: Inglês de Sousa - textos escolhidos. Por Bella Josef. Coleção Nossos Clássicos. Publicados sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963.