Contexto histórico
Nascido no Rio de
janeiro em 13 de agosto de 1811, Gonçalves de Magalhães viveu a infância e
começou sua formação intelectual no período de permanência de D. João VI no
Brasil, de 1808 a 1821, e dos acontecimentos posteriores, durante o primeiro
império, a regência, até a maioridade. Considerando-se ainda a revolução
romântica que se processava na Europa, em substituição ao estilo clássico,
temos apontados dois antecedentes fundamentais que apoiam e explicam as
atitudes e o significado, sobretudo reformador, da obra que, a partir de
1832-1836, ele realizaria entre nós, a ponto de ser distinguido como reformador
da literatura brasileira. À sua formação neoclássica, junta-se um intenso
sentimento patriótico, o desejo de reconhecer tradições e valores brasileiros,
de renovar a nossa cultura, particularmente a nossa literatura, no que é
inspirado, a partir de dado momento, pela reforma romântica das literaturas
europeias, notadamente francesa, italiana e portuguesa, com as quais entra em
contato direto a partir de 1833.
A presença da
corte portuguesa no Rio de Janeiro condicionou fatores e condições
indispensáveis à reforma romântica da literatura brasileira, iniciada por
atitudes críticas e objetivos, conscientemente expressos, de Gonçalves de
Magalhães, quando, em 1836, fundou a Niteroi
– Revista Brasiliense e publica em Paris os Suspiros Poéticos e Saudades. Limitaremos de 1808 a 1836, em
correspondência com a nossa história política, econômica e social, o momento
historicamente considerado mais importante da evolução literária no Brasil: a
transição das condições coloniais de nossa vida literária para a sua expressão
autonômica, em busca da definição de sua própria nacionalidade, e, ao mesmo
tempo, a transição do neoclassicismo arcádico para o romantismo. Só a partir de
1808 é que somos favorecidos com condições indispensáveis à atividade literária
que de fato pudesse exprimir o complexo da nacionalidade em formação.
Destacam-se, assim, os atos econômicos, políticos e culturais do governo
português no Rio de Janeiro; a abertura dos portos do Brasil ao livre
intercâmbio com as nações amigas, a elevação do Brasil à categoria de Reino
unido a Portugal e Algarves, incremento da agricultura, da indústria e do
comércio, criação de museu, arquivo, biblioteca pública, imprensa, periódicos,
publicação de livros e possibilidade do comércio do livro, reformas do ensino,
com instalações de escolas de nível superior, estímulo das atividades
artísticas, música, pintura, arquitetura, início de verdadeira atividade dramática.
Tudo resulta na elevação da condição e da dignidade de ser brasileiro, na
revelação imediata da consciência de nossas possibilidades, sobretudo num
intenso ardor patriótico ou nacionalista refletido em todos os setores da vida
do país, quando não expresso por um antilusitanismo que explicaria em parte o
indianismo romântico e em parte a repulsa que manifestamos pela contribuição
portuguesa em nossa vida literária, quando a substituímos, ostensivamente, por
influência de outras literaturas, notadamente a francesa, e lutamos pela
definição de um estilo literário brasileiro.
Favorece-nos então
o advento do romantismo, indo ao encontro do estilo clássico, essencialmente
universalizante e sobretudo desfigurado, incaracterístico, se considerado
dentre das limitações estreitas e pobres de nossa vida literária até princípios
do século XIX. Essencialmente nacionalista, o romantismo, voltado para uma
temática que, se por um lado exprimia o individualismo e a sentimentalidade do
homem da primeira metade do século XIX, propício à confidência, aos anseios
indefinidos, à exaltação da sensibilidade, por outro lado buscava inspiração
menos pessoal na exaltação de tradições e valores históricos nacionais, nas
sugestões da paisagem social e da natureza de cada país. Nada mais favorável,
portanto, à expansão do ardor patriótico de uma jovem nação, ao entusiasmo
nacionalista de seus filhos, quando intensamente eles viviam aquelas
consequências das reformas políticas, econômicas, culturais e sociais de D.
João VI no Brasil. Fazia-se necessário, contudo, a consciência crítica dessa
reforma romântica a ser definida em nossa vida literária. Neste caso, - desde
as sugestões de estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garrett, até a
contribuição de brasileiros que estiveram na Europa, pré-românticos como José
Bonifácio de Andrada e Silva e Domingos Borges de Barros, figuras já
reconhecidamente românticas como J. M. Pereira da Silva, Adolfo Vernhagen,
Justiniano José da Rocha, - se destaca a figura de Gonçalves de Magalhães,
formação neoclássica logo dominada pelo nacionalismo, pela efervescência
renovadora que nasce entre nós com a presença de D. João VI, e, sobretudo, pela
reforma romântica europeia com a qual, como vimos, ele entra em contato direto,
a partir de 1833. E de 1833/1836 até 1846, ano da publicação da primeira grande
obra romântica brasileira – os Primeiros
Contos de Gonçalves Dias, estendendo-se até 1856, quando José de Alencar
critica seu poema épico A Confederação
dos Tamoios, motivando uma polêmica célebre, é certo que o papel de
Gonçalves de Magalhães é realmente o de reformador e renovador de nossa vida
literária, sob a inspiração e o pensamento crítico romântico, dominado por
exaltado sentimento patriótico.
Estudo Crítico
Para uma abordagem
sumária da obra de Gonçalves de Magalhães, no sentido de comprovar a
interpretação e a valorização que lhe atribuímos, vejamo-la por ordem
cronológica de publicação e ao mesmo tempo dentro de um critério de agrupamento
genético, buscando, sobretudo, o pensamento crítico do autor, sua temática
principal e preferida e a importância histórico-literária de suas realizações.
Cultivou a poesia lírica, épica, dramática (teatro em verso), a ficção, o
ensaio crítico e histórico, além dos estudos ou ensaios filosóficos que realizou.
Como poeta lírico, deixou-nos a parte mais extensa de sua obra, compreendendo,
de acordo com a edição das Obras
Completas, os seguintes volumes: Poesias
Avulsas, Suspiros Poéticos e Saudades, Cânticos Fúnebres e Urânia, sendo
que seu livro de estreia – Poesias –
datado de 1832, se acha em grande parte reproduzido nas Poesias Avulsas, uma vez que foi submetido à revisão e seleção do
autor. Como épico, publicou A
Confederação dos Tamoios; como teatrólogo, além de traduções, deixou duas
peças originais conhecidas – Antônio José
ou o Poeta e a Inquisição e Olgiato; reuniu nos Opúsculos Históricos e Literários várias páginas em prosa, entre as
quais destacamos o ensaio “Discurso Sobre a História da Literatura no Brasil”;
escreveu uma pequena novela – Amância - , e deixou publicados finalmente, três
volumes de filosofia – Comentários e
Pensamentos, Fatos do Espírito Humano e A
Alma e o Cérebro (estudos de psicologia e fisiologia), aspectos de sua obra
que aqui não nos interessa diretamente [conforme o texto de José Aderaldo
Castello].
Considerando,
portanto, como livro de estreia de Gonçalves de Magalhães o volume Poesias, de 1832, no prefácio que o
acompanha, encontramos o ponto de partida de suas ideias sobre poesia e dos objetivos
de sua obra. Dando como menosprezada a atividade poética, procura enobrecê-la e
reconhecer-lhe como finalidade a exaltação patriótica e a elevação das virtudes
humanas, apontando-a como uma parte da filosofia moral. No momento crítico que
então vivia a nacionalidade, dominada por lutas, ódios e ambições, nada mais
oportuno e necessário a todo bom patriota, do que dirigir seu canto contra os
vícios e o crime, reconhecer a bondade do coração humano e estimular nos seus
patrícios a ambição da glória, para ilustração da “cara Pátria”. A temática que
desenvolveria nas composições das Poesias,
reproduzidas parcialmente ao lado de outras esparsas, escritas desde a
mocidade, no volume das Obras Completas –
Poesias Avulsas enquadra-se rigorosamente nestes seus propósitos. Reúnem-se
aqui odes sáficas e pindáricas, cantatas, églogas, nênias, elegias, sonetos,
epicédios, liras, epístolas, sátiras, epigramas, elogio dramático, apólogo,
além do poemeto “As Noites Melancólicas” em que se fazem reflexões sobre o homem,
seu sentimento de amizade, a miséria de sua condição e a morte. As próprias
formas poéticas preferidas indicam o predomínio dos elementos de formação
neoclássica do poeta, mas já de mistura com atitudes reconhecidamente
românticas, sobretudo entrevistas no sentimento religioso, na preocupação
moralizante, na exaltação patriótica e na exacerbação com que ele lamenta a
dor, reconhece o mistério impenetrável do homem e da vida e apela para a morte.
Sem propriamente
se renovar, Magalhães amplia as suas considerações sobre a poesia e a temática
que cultiva, ao publicar, em 1836, os Suspiros
Poéticos e Saudades, obra que pretende sob as sugestões recebidas
diretamente do romantismo europeu, inaugurar neste sentido, a reforma da
literatura brasileira. Agora, já se apresenta livre da disciplina formal e de
certas peculiaridades do estilo neoclássico, confessando que escreveu a sua
nova obra segundo as impressões dos lugares que conheceu, cidades tradicionais,
monumentos históricos, sugestões do passado, impressões da natureza associada
ao sentimento de Deus, reflexões sobre o destino de sua pátria, sobre as
paixões humanas e o efêmero da vida. Reafirma, dentro de um ideal religioso, a
finalidade moralizante da poesia, capaz de ser instrumento de elevação e dignificação
da pessoa humana, condena o estilo mitológico e proclama a liberdade formal da
criação poética. O prefácio “Lede”, ao volume citado, vale assim, para nós,
como uma espécie de manifesto romântico, ampliado pela introdução que escreve
ao estudo da nossa literatura, no “Discurso Sobre a História da Literatura no
Brasil”, que ficou apenas nos quatro primeiros capítulos publicados na Niterói – Revista Brasiliense, que ele
fundou e editou em Paris, também em 1836. Motivado por vibrante propósito patriótico,
procura aí realizar uma exaltação do Brasil, indicar os caminhos próprios de
nossa vida literária, criticando a influência do espírito clássico em nosso
passado literário, dado o seu caráter desnacionalizado e desnacionalizador,
apontando a inspiração religiosa, ressaltando a necessidade de afirmar a nossa
nacionalidade literária. Nos prefácios da Poesias
Avulsas, e dos Cânticos Fúnebres –
revivescência da “poesia dos túmulos”, de princípios do romantismo – publicados
ambos em 1884, repisa nos mesmos pontos básicos acima salientados. Só Urânia, de 1862, não apresenta as
preocupações indicadas, voltado que é para uma tentativa infeliz e prosaica de
exaltação lírica da mulher amada, retomando, sem inspiração, sem força
comunicativa, o culto da divinização da mulher da poesia camoniana e a sugestão
lírica de Gonzaga.
Nada de novo na
temática desenvolvida nas últimas obras indicadas, se aproximadas das ideias já
expostas, ideias que sem dúvida presidiram a elaboração delas. São temas e
motivos românticos, subordinados a reflexões sugeridas pelo espiritualismo
filosófico que Gonçalves de Magalhães aprendeu com Frei Francisco de Monte
Alverne e nos cursos que frequentou em Paris ou no conhecimento de Jouffroy e
Victor Cousin. Às reflexões sobre Deus e a natureza se ajustam as considerações
sobre o poeta e a poesia, o sentido divino de sua inspiração e o objetivo
moralizador de sua obra; canta a infância, a mocidade e a velhice, assim como
se julga infeliz e sofredor; glorifica o passado histórico ou exprime saudade
da pátria distante, exalta a amizade, a justiça, a liberdade, e decanta a
Pátria. Ou então, ainda revivendo a já ultrapassada “poesia dos túmulos”, dos
albores do romantismo, pondera a condição efêmera do homem, exacerba-se, numa
lamentação fúnebre, e aspira a morte como uma libertação.
A mesma
preocupação renovadora ou reformadora, do ponto de vista crítico e de difusão
de uma temática e de processos expressivos novos, pode ser reconhecida na
poesia épica e no teatro de Gonçalves Magalhães. Entre os seus propósitos
literários, Magalhães sempre manifestou, desde a mocidade, o desejo de escrever
um poema épico nacional. E em pleno domínio do romantismo, quando o gênero,
próprio da tradição clássica, já havia sido praticamente abandonado, ele
publicou primeiro em edição imperial, em 1856, sob o patrocínio de D. Pedro II,
depois em edição comum, em 1857, o poema A
Confederação dos Tamoios. O desejo de glorificar o passado histórico
nacional , o sentimento antilusitano que inspirou o poeta e o fundamento
neoclássico de sua formação, justificam, literariamente, a elaboração um tanto
extemporânea desta obra. Tanto assim que, apesar de certas afirmações críticas
pressupondo atitudes renovadoras, Magalhães se apresenta diretamente filiado na
tradição épica nacional esboçada na era colonial de nossa literatura, em que
avultam Frei José de Santa Rita Durão e José Basílio da Gama. Do primeiro,
muito preso ao modelo camoniano, além da sugestão indianista e do sentimento
cristão ou religioso, retomou as intenções patrióticas de realizar uma epopeia
nacional; no segundo, à parte também a sugestão indianista, observou o abandono
das principais características de estilo e de estrutura externa impostas pela
épica tradicional, desde a linguagem mitológica até o uso da oitava rima,
substituída esta pelo verso decassílabo branco de estrofação livre.
Contudo, nota-se
no poema em apreço talvez uma maior tendência para a observância dos moldes
tradicionais do que a introdução de novidades. Compõe-se A Confederação dos Tamoios de dez cantos, escritos em versos
decassílabos predominantemente brancos, às vezes rimados, em estrofação livre;
abandona o maravilhoso pagão, substituindo-o, porém, pelas sugestões do
fetichismo indígena, o que já se nota no Uruguai
de Basílio da Gama; e apresenta a divisão em partes, conforme agora o
modelo quinhentista. Sua ação central gira em torno das lutas dos tamoios
confederados, que em certo momento se aliam aos franceses, contra os
portugueses colonizadores, em meados do século XVI, com um cenário que se
estende do litoral paulista ao Rio de Janeiro. Preenchem as páginas do poema de
Magalhães vários fatos, ocorrências, figuras históricas de portugueses, índios
e jesuítas – Brás Cubas, João Ramalho, Tibiriçá, Caiubi, Cunhambeba,
Jagoanharo, Aimbere, Iguaçu, Parabaçu, Pindobuçu, Anchieta, Nóbrega – nos
limites do século XVI, além de referências a fatos e pessoas posteriores, numa
antevisão panorâmica que chega até a Maioridade; de páginas descritivas da
paisagem brasileira; e de outras repletas de intenso sentimento religioso
entrevisto sobretudo na figura de Anchieta. Pode-se dizer que a Confederação dos Tamoios, de acordo com
as impressões de Frei Francisco de Monte Alverne, é um poema intensamente
patriótico, religioso e moralizante, o que está bem de acordo com o espírito e
os propósitos do autor. Mas é uma obra medíocre como de resto toda a produção
literária de Magalhães, consistindo seu valor no sentimento e nas intenções
reformadoras e estimuladoras do escritor. Evidentemente não pode ser apreciado
como um poema épico nacional. Apresenta, porém, uma grande vibração patriótica,
o sentimento antilusitano que então nos dominava, na preocupação de
reconhecermos as raízes autóctones de tradições e valores nacionais. Daí a
defesa histórica do índio, tido como o mais legítimo elemento da nossa
formação, contra as injustiças e o menosprezo do elemento colonizador
adventício. Mas não chega a realizar uma valorização histórica do indígena, de
maneira convincente, nem tampouco a explorar poeticamente as sugestões deixadas
pelo seu antepassado remoto e pelas lutas com os portugueses nos momentos
iniciais da conquista da terra. Talvez o que haja de mais notável neste poema,
sem com isto pretender por em segundo plano as observações já feitas, seja o
fato de ele haver motivado as famosas críticas de José de Alencar, no Diário do Rio de Janeiro, ocasionando
uma polêmica da qual participaram Manuel de Araújo Porto-Alegre, D. Pedro II,
Frei Francisco de Monte Alverne, além de outros, importantíssima para o estudo
e a exata compreensão da tendência indianista do romantismo no Brasil.
Mas não é tanto a
poesia épica que amplia o significado da posição de Magalhães no início da
reforma romântica no Brasil, conforme já ficou entrevisto através de sua
produção lírica e de seu pensamento crítico. Tal relevo é dado ainda pelos seus
propósitos de criar um teatro de legítima expressão nacional, contando, no
caso, com a colaboração do grande ator da época, João Caetano, verdadeiramente
o primeiro organizador de uma companhia de teatro que pode ser considerada como
brasileira. Antes de Gonçalves de Magalhães, de João Caetano, Porto-Alegre e
Martins Pena, a rigor não podemos falar em teatro nacional, compreendendo-se
nesta expressão, o autor, a obra, o ator ou companhia, o edifício adequado à
representação e o público realmente interessado. E dentro do setor exclusivo da
história, não se poderia falar, até à altura da reforma de Magalhães e João
Caetano, o que interessava ao nosso público eram o dramas febricitantes, o que viciava
a imaginação e a sensibilidade. Escritores
como Souza e Silva, Lemos Magalhães, Antonio José de Araujo, Pinheiro Guimarães
Junior, Odorico Mendes e mesmo Gonçalves de Magalhães limitavam-se a traduzir
Byron, Arnaud, Delavigne, Ducis; são adaptações de peças de Shakespeare, por
exemplo Otelo ou o Mouro de Veneza. Sentiu
desde cedo, nos seus propósitos de reformador da literatura Brasileira, a
necessidade de estimular a criação de peças nacionais; de assunto e de
interesse nacionais, para de fato conseguirmos a organização de um teatro que
correspondesse à nossa realidade. Mais uma vez, como logo mais os veremos, vale
aqui a sua intenção, o seu esforço pioneiro, o caminho que abre, com Manuel de
Araujo Porto-Alegre, e João Caetano para a verdadeira cena nacional, com
Martins Pena e outros românticos como José de Alencar e Joaquim Manuel de
Macedo.
A primeira peça de
Gonçalves de Magalhães é a tragédia Antonio
José ou o Poeta e a Inquisição, datada de 1838, quando, em 13 de março foi
pela primeira vez representada no Teatro da Praça da Constituição pela
Companhia de João Caetano, que acabava de ser organizada. Nos moldes do teatro
clássico, compõe-se a peça de Gonçalves de Magalhães, por ele considerada uma
tragédia de assunto nacional, de cinco atos escritos em verso, metro
decassílabo, com assunto tomado à história, isto é, aos últimos momentos da
vida do teatrólogo Antônio José da Silva, o Judeu, quando, em 1739, submetido a
segundo processo, foi queimado vivo em Lisboa, por ordem da Inquisição.
Naturalmente – e esta é a única explicação realizável – a peça é pelo autor
considerada de assunto nacional pelo fato daquele malgrado comediógrafo, hoje
considerado um autêntico escritor português, haver nascido no Brasil. Mas, na
época romântica, sobretudo nesses momentos iniciais em que se situa a ação
renovadora de Magalhães, não se levava ainda em consideração um rígido critério
de nacionalidade literária e o que prevalecia era o propósito patriótico de
ressaltar valores e tradições, descobrir uma passado literário eu possibilitasse
historicamente a valorização de nossa
vida intelectual e artística.
É preciso
salientar o fato de Magalhães, que se propôs a realização da reforma romântica
de nossa literatura, escrever uma tragédia em que prevalecem os princípios da
poética clássica. Contudo, de acordo com o que já ficou dito a propósito de sua
obra poética, tal atitude se justifica em virtude do fundamento neoclássico e
do espírito religioso da formação do escritor. Ao prefaciar a tragédia citada,
ele declararia não seguir nem o “rigor” dos clássicos nem o “desalinho” dos românticos,
reconhecendo o direito de fazer o que entendia e o que podia. Na verdade,
manteve-se predominantemente clássico, ao mesmo tempo dominado por ideias de
Victor Cousin, a quem cita, ao prefaciar agora a sua segunda tragédia – Olgiato – representada em 1839 e escrita
nos mesmos moldes clássicos da anterior. Apresentando como ação um episódio da
história italiana, propícia, como na tragédia Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, à crítica dos abusos da
tirania e às reflexões moralistas, nela Magalhães endossa a opinião do pensador
francês, reafirmando que o fim da arte é o belo moral e a sua liberdade reside
apenas nos meios de exprimi-lo. Daí porque renega o que considera verdadeiros “horrores”
do estilo romântico, caracteres monstruosos, paixões desenfreadas, amores
licenciosos. E ainda que faça concessões ao teatro do romantismo, que diz
conhecer suficientemente, confessa preferir Alfieri e Corneille. Em todo caso,
com ambas as tragédias que hoje nos parecem desfiguradas, aqui reconhecidas
apenas pelo seu valor histórico-literário, iniciou e agitou um dos aspectos mais importantes de nossa vida literária a
partir da renovação romântica.
À parte a obra em
prosa de Gonçalves de Magalhães, cujo maior interesse, no nosso caso, reside no
já ressaltado “Discurso Sobre a História da Literatura do Brasil” e na novela Amância, fraca, inconsistente,
merecedora de referência apenas por ser uma das primeiras tentativas de autores
nacionais no gênero ficção, somos levados, finalmente, considerada a extensão e
variedade do que ele escreveu, a reafirmar os seus propósitos de definições
críticas em prefácios e ensaios, além da obra de criação propriamente dita e de
sua ação pessoal junto a escritores e artistas da época, entre 1833 e 1856, com
o intuito declarado de promover a reforma romântica e nacionalista da
literatura brasileira. É nestes termos que a sua obra, hoje quase inteiramente
indiferente à nossa sensibilidade e até mesmo à nossa curiosidade humana, deve
ser estudada e valorizada, porque sem dúvida é inegável a sua importância, o
seu significado histórico, e sua função realmente renovadora ou reformadora da literatura brasileira.
Desde que se decidiu pela carreira literária, ainda estudante do Colégio
Médico-Cirúrgico do Rio de Janeiro, que Gonçalves de Magalhães, antes de se dar
à exigência de uma legítima vocação literária e à preferência por determinada
forma de expressão, sentiu um impulso patriótico de contribuir para o
engrandecimento geral de seu país. A sua formação mais literária, neoclássica,
do que científica, enriquecida e também atenuada nas suas preocupações
formalistas pelos estudos de filosofia e pelo conhecimento do romantismo
europeu, além de estimulada pelo ardor patriótico, levou-o à realização de uma
obra variada, na poesia lírica, épica e dramática, na ficção, no ensaio críticom
nos estudos históricos e filosóficos, denotando em tudo a preocupação da
reforma ou da renovação. Literariamente considerada, é preciso repisar no fato
de que a sua obra nunca se desprendeu totalmente das influências neoclássicas
de formação básica que o escritor recebeu, mas chegou a ser inteiramente
romântica. Se apreciado principalmente como escritor romântico, a partir da
publicação dos Suspiros Poéticos e
Saudades (1836), logo verificamos que toda a indisciplina e o sentido de aventura
criadora tão peculiares desse estilo, são controlados, por um lado pela
formação religiosa de Gonçalves de Magalhães e por outra pelas reminiscências
arcádicas que nunca o abandonaram, o que nos faz lembrar, salvo o aspecto
religioso, a posição e o papel de Almeida Garrett na literatura portuguesa,
escritor de quem ele recebeu acentuadas influências. Mas vale ser romântico por
uma intenção criticamente definida, notadamente com propósitos reformadores. E
é este o caso do autor aqui apresentado.
Fonte bibliográfica:
Gonçalves de Magalhães - trechos escolhidos. Por José Aderaldo Castello. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.