A partir de texto de Luiz Santa Cruz
Contexto histórico
O “amorável
fim-de-século” e a mão menos decantada “belle époque”, o crepúsculo do
século XIX e a aurora do século XX, apesar de suas supostas virtudes de
bem-estar e a “indiferença burguesa”, não conseguiria fugir da sucessão de
acontecimentos bélicos que pontua a história do Ocidente.
Como quase todos
os interregnos pacifistas o “Mil e Novecentos", apesar do lirismo de seus
poetas, prosadores e mesmo filósofos, apenas cozinhava, nos porões da História,
a futura Primeira Grande Guerra Mundial, nas duas décadas que antecederiam o
ano trágico de 1914.
Em 1870,
impondo-se vitoriosamente nos campos de Sédan, a Alemanha surgia como potência
militar de primeira ordem, reclamando a sua participação na hegemonia da Europa
e do mundo Ocidental. Fez despertar a antiga cultura germânica para a ação de
um povo que até então se dedicava mais para as coisas da contemplação.
15 de novembro de 1889 – É proclamada a República no Brasil.
O Reinado de D. Pedro II durou de 1840 a 1889 e conseguiu do
lado do Atlântico, na América do Sul, uma unidade territorial que tinha sido um
sonho de Simon Bolivar do lado do Pacífico. Uma certa forma de guerra civil que
tinha sido um espantalho do trono, rondava ainda a nascente democracia
constitucional brasileira.
Fevereiro de 1891 – promulgada a primeira Constituição
Republicana.
1892 a 1894 – O país é dividido por duas facções: operações
militares no sul e navais na baía da Guanabara, apesar do pulso do “Marechal de
Ferro”, Floriano Peixoto, ou até mesmo pela tentativa de prorrogação do seu mandato.
1894 – O Partido Republicano Paulista alia-se ao Partido
Republicano Mineiro e elege Prudente de Morais à Presidência da República.
Inaugura-se uma série de governos civis, numa República surgida de um
pronunciamento militar, no Campo de Santana.
1898 – Outro paulista, na mesma “aliança café-com-leite”
entre São Paulo e Minas Gerais, dirige-se ao Palácio do Catete e inicia o
saneamento financeiro da República. É o presidente Campos Salles.
1902 – Pela terceira vez consecutiva, um paulista, Rodrigues
Alves, assume a Presidência. Em seu governo, o médico Miguel Couto inicia o
saneamento da Capital Federal e o engenheiro Paulo de Frontin começa uma série
de grandes obras públicas.
1906 – Afonso Pena vem de Minas Gerais para interromper a
série de presidentes paulistas. Graças à ação de seu ministro da Viação
(transportes), Miguel Calmon, construiu em quatro anos mais estradas de ferro
do que em meio século. É chamada de toda uma nova era de “bandeirismo”. Nessa
linha, a Missão Rondon atingiu o mais longínquo interior do território
brasileiro, nos rincões da Amazônia, demarcando as fronteiras, até então
existentes apenas em tratados internacionais, graças ao trabalho diplomático do
Barão do Rio Branco.
1908 – Ocorreu a Grande Exposição do Rio de Janeiro, atraindo
governantes e visitantes ilustres da Europa e de quase toda a América. Logo
após a República inicia seu primeiro grande ciclo de imigração e colonização,
trazendo europeus e asiáticos para seus campos de produção e para as fábricas
de sua nascente indústria.
1909 – Com o apoio de Afonso Pena, Rui Barbosa lança os
primeiros alicerces de sua campanha civilista, focada na consciência
democrática nacional, como candidato à Presidência da República. Porém, Hermes
da Fonseca venceu. Afonso Pena teria morrido de infarto do miocárdio em 1909, a
partir da apresentação dessa candidatura.
1909 – Nilo Peçanha, vice-presidente da República, assume o
governo no lugar de Afonso Pena. Nomeia o magistrado Carolino de Leoni Ramos,
pai de Raul de Leoni, como Chefe de Polícia do Distrito Federal.
1910 – Nova revolta da esquadra na baía da Guanabara.
1912 – Motins em Pernambuco e na Bahia.
1913 – “Guerra do Cariri”.
1914 – Restaurada a aliança “café-com-leite”. Wenceslau Brás
assume a Presidência.
1912 a 1913 – Período da Guerra Balcânica, entre a Áustria e
a Sérvia, seguindo-se os primeiros conflitos do norte da África, com a
consequente tensão entre a Alemanha e a França.
1914 – Atentado contra o arquiduque da Áustria, Francisco
Fernando e sua esposa, em Sarajevo, imputado capciosamente à Sérvia. Foi o
rastilho de pólvora que estenderia o conflito a toda a Europa e, a seguir,
Estados Unidos e Brasil. Custou ao Ocidente a primeira conflagração universal e
o pesado ônus de 10 milhões de mortos.
1916 – Nilo Peçanha, governador do Estado do Rio de Janeiro,
é chamado para substituir Lauro Muller no Ministério das Relações Exteriores,
demissionário por ser neutralista e o Brasil deveria declarar guerra à Alemanha,
após o torpedeamento, em águas brasileiras, de navios brasileiros, pela esquadra
germânica.
1917 – A Revolução Soviética vem abalar mais os alicerces do
mundo Ocidental, do que qualquer outra sublevação de povos, de modo que alguns até
disseram que a Revolução Francesa “não passava de uma revolução romântica”.
1918 – Num vagão de estrada de ferro, nos bosques de
Compiégne, foi assinado o armistício entre as nações aliadas e a Alemanha,
aparentemente vencida, assinalando-se apenas outro interregno ilusório da
crônica beligerante do mundo ocidental.
1918 – Epitácio Pessoa, o primeiro presidente civil do Norte/Nordeste,
assume o poder, nomeando um civil, Pandiá Calógeras, para a pasta da Guerra,
construindo-se quartéis por todo o país, o que não impediu o descontentamento
militar e nem o evento dos 18 do Forte de Copacabana.
1920 – Adolph Hitler reforma o Partido Nacional Socialista alemão,
denunciando a “paz cartaginesa” de Versalhes e iniciando sua aventura totalitária.
11 a 18 de fevereiro de 1922 – Semana de Arte Moderna em São
Paulo.
7 de setembro de 1922 – Inaugura-se no Rio de Janeiro a
Grande Exposição Internacional, comemorativa do Centenário da Independência do
Brasil.
1922 – O mineiro Artur Bernardes, com a terceira restauração
da “aliança café-com-leite”, assume a Presidência da República. Há
descontentamento militar e popular, tentativa de pacificação do Rio Grande do
Sul (1923), a Revolução Paulista (1924) e a Coluna Prestes (1925-27).
20 de outubro de 1922 – A partir do ponto de partida do Manifesto
Futurista, de Marinetti, à primeira vista inconsequente, surge movimento
literário lançado em 1919, “os camisas pretas de Benito Mussolini, com seus “fácios
de combate”. Foram chamados por Vitório Emanuel ao poder, na Itália unificada,
lançando-se outra aventura totalitária, que acabaria por comprometer a paz
europeia num aliança ítalo-germânica.
1926 – Artur Bernardes reforma a Constituição, fortalecendo o
poder central. Nesse ano, morre em Itaipava, Estado do Rio, Raul de Leoni.
Estudo Crítico da obra de Raul de Leoni
Todos esses
acontecimentos históricos não influíram na poesia, mas sim na prosa de Raul de
Leoni.
Como poeta, ele
parece ser alguém alheio aos acontecimentos de seu tempo, onde pode ser visto
mais o poeta da “belle époque”. Já como prosador foi um dos mais
participantes da literatura brasileira nos movimentos dessa época.
Em 1919 lançou a
primeira obra poética “Ode a um poeta morto”.
Em 1922, lança sua
obra poética fundamental e clássica “Luz Mediterrânea”, que praticamente é
considerado seu único livro de poemas.
Luiz Santa Cruz,
nos anos sessenta do século XX, dizia que a crítica ainda não tinha tomado
conhecimento ao grande prosador e também quanto a sua obra poética. Em “Luz
Mediterrânea” há unanimidade da crítica em elogios. Já em “Ode a um poeta morto”
é colocada pelos diferentes críticos em diferentes escolas. Alguns o consideram
parnasiano, outros como simbolista, ainda outros como neoparnasiano e outros em
grupo independente.
Contudo, todos
consideram haver apuro e bom gosto literário quase impecável, entre o antigo e
o moderno, o que lhe assegura duração ilimitada. Entre prosa e poesia há quem o
considere um filósofo, ou pensador. Há ainda que o considere como um pensador
cristão de linha florentina que se permite certas liberdades de pensamento. Já
na obra poética há quem o veja apenas como “poeta” e basta.
A viagem que ele
fez à Europa aos 18 anos lhe marcou profundamente. Houve um descobrimento
poético da Europa e da sua luminosidade mediterrânea que abriria os olhos e
aguçaria a percepção de Raul de Leoni, para a tomada de consciência do fenômeno
poético e como realidade transcendente das coisas e como forma de conhecimento
delas e do mundo.
O seu primeiro
poema “Ode a um poeta morto”, dedicado à memória de Olavo Bilac, não deve ser
considerado apenas como a história do itinerário poético e parnasiano de Bilac.
É, acima de tudo, a primeira grande tentativa de Raul de Leoni para a formulação
da sua própria Arte Poética.
Não era apenas
Bilac, mas sobretudo o próprio Leoni quem captava a “mais realidade das coisas”,
cuja revelação pela palavra é o grande ofício do poeta e da poesia.
Conforme Luiz
Santa Cruz, Raul de Leoni é o poeta brasileiro que mais se aparenta a Paul
Valéry, numa poesia da inteligibilidade, em oposição aos poetas da linha da
intuição e da vontade, onde preferem a Arte Poética, o artesanato da contenção
verbal, preferindo o sentimento universal ao particular.
Ao atribuir a
Olavo Bilac o ofício de “semeador de harmonia e de beleza”, graças a suas
viagens poéticas, identificando-se quase todas as experiências de poesia
anteriores, de toda a história da poesia universal, o tema central da “Ode a um
poeta morto”. Raul de Leoni diz sobre ele:
Tua alma foi um cântico diverso,
Cheio da eterna música das coisas...
Essa função do
poeta, de captar “a música” ou a “mais realidade das coisas”, Raul de Leoni,
daí por diante, vai tentar aprofundar sempre mais em sua Arte Poética, amadurecendo
progressivamente.
E já não é apenas
Bilac que, a seguir, em verso mais adiante, da mesma Ode, vai dizer que “Toda a
emoção, que anda nas coisas, fala” na mesma poesia. Nem seria apenas missão de
Bilac, mas de todo poeta por vocação que:
Faz da vida uma obra prima
De sensibilidade e de bom gosto.
O poeta a respeito
do qual seria injusto julgar apenas pelo pessimismo filosófico que transparece
em tanto de seus poemas, com uma “atitude fim de século, de serenidade
epicurista e dúvida amável”. É preciso reconhecer também que foi, quanto à Arte
Poética, um dos nossos poetas mais revolucionários de todos os tempos. Bilac foi
o primeiro poeta brasileiro a conduzir, sozinho, a poesia brasileira a
participar na grande revolução poética da idade moderna, aquela graça que
tomaria conhecimento de si mesma, como modalidade de conhecimento emocional e
afetivo e como experiência emocional e afetiva dos seres e das coisas.
A “Ode a um poeta morto” foi ainda
influenciada demais pelas conotações da Arte Poética parnasiana. A ela
sobreviria o poema “Pórtico”, abrindo na primeira edição, organizada pelo
poeta, o livro da “Luz Mediterrânea”. A sua Arte Poética aí começa a se
desvencilhar das influências do Parnaso brasileiro.
Clarifica-se a sua
consciência da “mais realidade poética da vida”, pelo conhecimento emocional e
afetivo das coisas:
Há no meu ser crepúsculos e auroras.
E passa a conceber
no poema “Pórtico” sua experiência de poesia como uma cidade cheia de luz mediterrânea,
que lhe deslumbrou os olhos adolescentes, em sua viagem à Europa. A sua cidade
da poesia:
Fica na dobra azul de um golfo pensativo.
........................................................
Cidade de harmonias deliciosas
Em que, sorrindo à ronda dos destinos,
Os homens são humanos e divinos
E as mulheres são frescas como as rosas...
Os poemas que
compõem a segunda parte de seu livro “Luz Mediterrânea”, que ele deu o título
de “História de uma alma”, conta a história de sua percepção da poesia como
vivência e experiência:
Eu era uma alma fácil e macia,
Claro e sereno espelho matinal
Que a paisagem das coisas refletia
Com a lucidez cantante do cristal.
No terceiro
soneto, “Confusão”, essa experiência poética “vivencializável” aparece
enriquecida pela tomada de consciência da solidariedade entre o poeta e as
demais criaturas humanas, para além da “mais realidade poética das coisas”:
Parece que estão, assim,
Todas as almas do Mundo,
Lutando dentro de mim...
No soneto “Artista”,
essa consciência poética avança mais alguns passos em sua lenta maturação de
pensamento:
Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.
Enfim, o poeta da “Luz
Mediterrânea” tomava consciência dos íntimos recônditos do seu ser, dos abismo
profundos do inconsciente de poesia, onde são armazenadas as vivências
poéticas. Cabe ao poeta discernir a autenticidade dessas vivências de poesia,
armazenadas no inconsciente que não pode ser confundida com instintos, como no
dizer de Novalis: “possuímos um eu mais profundo e inesgotável do que o das
paixões e da razão pura”.
Assim, a poesia de
Raul de Leoni, por sua mensagem profunda da Arte Poética da modernidade, deve
ser ao mesmo tempo vidência e vivência. Rainer-Maria Rilke disse: “Para
escrever um único verso é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e
muitas coisas. Pois os versos não são apenas sentimentos, como há quem o
acredite (e haverá sempre bastante sentimento neles), mas são experiências”.
É na obra de
prosador de Raul de Leoni que se capta melhor sua evolução como pensador. Lamenta-se
que seus textos esparsos por antigos jornais e revistas não tenham sido
compilados. Ele foi um profundo ensaísta das circunstâncias, precursor do
ensaio jornalístico moderno.
Fonte bibliográfica:
Raul de Leoni – textos escolhidos. Por Luiz Santa Cruz.
Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e
Jorge Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.