A partir de texto de Francisco de Assis Barbosa
Contexto histórico
Nos dez anos, ou
um pouco mais, em que exerceu a sua atividade de escritor e jornalista, viveu
António de Alcântara Machado o período preparatório da Revolução (ou Golpe
segundo alguns) de 1930, a fase inicial da sua implantação e o chamado
movimento constitucionalista, desde a Revolução Paulista de 1932 (também
chamada de Guerra Paulista, ou de Revolução Constitucionalista) até a
elaboração da primeira Constituição da República Nova (1934).
Escritor
modernista típico, embora não tivesse participado da famosa Semana de Arte
Moderna, formou depois com os “rapazes” do grupo paulista, tornando-se uma das
suas figuras mais representativas. A presença desses “rapazes” aproxima-os, de
certo modo, dos “tenentes” dos dois 5 de julho, em 1922 e 1924. Aqueles queriam
reformar a literatura; os outros a política. Os jovens escritores paulistas
investiram assim contra uma literatura apegada aos padrões estilísticos
estritamente lusitanos. Os tenentes pegavam em armas contra as oligarquias
estaduais e as eleições feitas a bico de pena. Os rapazes gritavam: Abaixo a Revista da Língua Portuguesa. Os tenentes
respondiam: “Salvemos o Brasil com o voto secreto”.
O principal
objetivo dos modernistas era destruir o convencionalismo literário, desmoralizar
a inteligência empalhada, acabar com os medalhões da cultura. Ora, a cidadela a
vencer estava precisamente na mão dos puristas gramaticais – proprietários da
língua – que, de palmatória em punho, no alto da primeira página dos jornais do
Rio e de São Paulo, exerciam a ditadura policial da literatura. Nessa fase, em
que Olavo Bilac perpetrara o soneto em louvor da língua portuguesa, como que
esterilizou por completo a inteligência brasileira. Nunca houve tanta gente que
pretendesse ensinar a escrever corretamente o português. Apareceram dezenas de
livros sobre a “arte de escrever”. Superabundavam os gramáticos. Escritores
mesmo de verdade, quase nenhum. Talvez seja essa a razão porque, no excelente
livro de Manuel Rodrigues Lapa, Estilística
da Língua Portuguesa, predominem as citações de filólogos e gramáticos
brasileiros a respeito de nugas do idioma, com a ausência quase que total de
exemplos do estilo de escritores brasileiros. O sapato de ferro do
convencionalismo gramatical impedia a literatura brasileira de caminhar para a frente.
Tudo emperrava
diante da gramática. Até o Código Civil! O Código Civil atravessou cinco
governos, catorze anos de discussão em torno de questões de português. Do
convite de Epitácio Pessoa, então ministro da Justiça, a Clóvis Bevilacqua, que
é de janeiro de 1899, ainda no governo de Campos Salles, à chegada do projeto
votado pela Câmara dos Deputados ao Senado, isto em 1902, quando Rui Barbosa
escreveu o célebre parecer, até a sanção da lei pelo Presidente Venceslau Brás,
em 1916, somariam, ao todo, dezessete anos. Apenas três anos para a elaboração
do projeto pelo Poder Executivo, discussão e votação na Câmara. Catorze anos,
para o debate dos erros de gramática, com uma caudalosa bibliografia, inclusive
a longa e áspera polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro!
Tais bizantinices
talvez expliquem certas blagues do
modernismo – a do verso de Manuel Bandeira: “Abaixo a Revista da Língua Portguêsaê” e a do livro de Sérgio Buarque de
Holanda, intitulado (ficou só no título) Rui
Barbosa nunca existiu...
Era uma tática
guerreira, essa dos modernistas, de agredir todos os tabus, já que o movimento
se propunha a modificar, fosse por que preço fosse, a mentalidade vigente em
matéria de cultura, “descoelhonetizando” ao mesmo tempo – o neologismo pertence
também a Sérgio Buarque de Holanda – a literatura brasileira.
Depois da morte de
Machado de Assis, Coelho Neto tornara-se o escritor de maior prestígio no
Brasil. Homem de inegável talento, legítimo profissional das letras, e por isso
mesmo digno de todo o respeito, fora, no entanto, marcado pela mesma maldição
que fizera a desgraça do Rei Midas. A pompa verbal e o brilho estilístico eram
o seu ouro, transfigurando um honesto e duro labor em pura literatice.
Observa-se ainda que todos os seus livros eram impressos e editados em
Portugal, seguindo, portanto, a tradição lusófila retomada por Machado de
Assis, estabelecidas as diferenças que separam os dois escritores.
Creio que foi
pensando em Coelho Neto – o mais típico representante do convencionalismo
literário – que António de Alcântara Machado escreveu essa página divertida
sobre o estilo do tempo, falando do presente (1927) como se já fosse coisa
morta, e definitivamente enterrada: “O literato nunca chamava a coisa pelo
nome. Nunca. Arranjava sempre um meio de se exprimir indiretamente. Com
circunlóquios, imagens poéticas, figuras de retórica, metalepses, metáforas e
outras bobagens complicadíssimas. Abusando. Ninguém morria: partia para os paramos
ignotos. Mulher não era mulher. Qual o quê. Era flor, passarinho, anjo da
guarda, doçura da vida, bálsamo de bondade, fada e diabo. Mulher é que não.
Depois a mania do sinônimo difícil. A própria coisa não se reconhecia nele. Nem
mesmo a palavra. Palavra. Tudo fora da vida, do momento, do ambiente. A
preocupação de embelezar, de esconder, de colorir. Nada de pão, queijo, queijo.
Não Senhor. Escrever assim não é vantagem. Mas pão epílogo tostado dos trigais
dourados, queijo acompanhamento vacum da goiabada dulcífica, sim. E bonito.
Disfarça bem a vulgaridade das coisas. Canta nos ouvidos. E é asnático,
absolutamente asnático. Tem sobretudo essa qualidade”. E acrescentava, mais
adiante, outra observação estupendamente exata, revestida de humor: “O literato
não se contentava em exclamar: Como
cheiram as magnólias! Não. As magnólias eram capazes de se ofender com
tanta secura. E ele então acrescentava poeticamente: Flores de carne, seios de virgem. Pronto. As magnólias já não
tinham direito de se queixar”.
Página típica de
escritor plenamente identificado com o movimento modernista. Falar contra a sintaxe lusa – no plano literário –
correspondia a falar contra as eleições
feitas a bico de pena – no plano político.
Estudo Crítico
A segunda geração,
que se seguiu à dos modernistas de São Paulo, na década de 1960 começou a
proceder à revisão de valores da escola moderna e a traçar de modo sistemático
a história literária do movimento (conforme texto de Francisco de Assis Barbosa
escrito na década de 1960). Decorridos em torno de quarenta anos da Semana de
Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, passou a haver certa
perspectiva para avaliar o movimento. Dos artigos e ensaios que apareceram nessa
ocasião, assinados por escritores nascidos depois da Semana, ou pouco antes, o
mais importante é o de Mário da Silva Brito, intitulado História do Modernismo Brasileiro, de que se tinha apenas o primeiro
volume quando foi escrito o texto de Barbosa. O primeiro volume, “Antecedentes
da Semana de Arte Moderna (1958) foi considerado um trabalho de fôlego e sério.
Nele aparecem a exposição de Anita Malfatti (1917) como o primeiro sinal da
arte nova no Brasil, ponto de vista que foi também defendido por Manuel
Bandeira em sua História das Literaturas,
na parte referente ao Brasil. O artigo de Monteiro Lobato, negando de modo
absoluto os méritos da pintora, mais talvez do que a própria exposição,
levantaria a polêmica entre “acadêmicos” e “modernistas”, criando-se assim o
clima propício à convocação da Semana. A tudo isso Mário da Silva Brito chama
com propriedade “estopim do modernismo”.
Outro crítico dos
anos 1960, José Aderaldo Castelo, lembra que muito antes já se havia iniciado o
processo de renovação do pensamento brasileiro. “A data de 1902”, diz ele, “é a
que nos parece, historicamente, o marco mais expressivo das manifestações
iniciais ou precursoras desse movimento de revisão e renovação geral da cultura
brasileira. Trata-se do ano da publicação de três obras de relevo – a História da Literatura Brasileira, 2ª
edição, de Sílvio Romero, Os Sertões, de
Euclides da Cunha, e o romance Canaã, de
Graça Aranha, além da divulgação do verso libertado simbolista de Mário
Pederneiras”.[1]
Segundo Barbosa,
como se vê, a matéria continua a flutuar em terreno polêmico. Daí ele prefere
olhar o modernismo brasileiro como um movimento característico do pós-guerra. Certamente,
antes e depois da Guerra de 1914-1918 houve sinais de insatisfação, a par de
impulsos renovadores na vida intelectual brasileira. Nada, porém, que pudesse
ser enquadrado na categoria de movimento, como o que eclodiu em São Paulo, sob
a liderança dos dois Andrades, Mário e Oswald, interessando não apenas
escritores, como também os músicos (Heitor Villa Lobos), pintores (Di
Cavalcanti) e escultores (Victor Brecheret). Em todos eles, pelo menos no
início, é patente a influência dos grupos de vanguarda que irromperam, especialmente
na França e na Itália, em meio à convulsão social e política gerada pelas
causas ou pelos efeitos da hecatombe – cubismo, dadaísmo, futurismo e tantos
outros ismos –, sem deixar de considerar as novas manifestações de arte, como o
cinema, principalmente depois do aparecimento de Charles Chaplin.
Em 1926, o
Congresso de Regionalistas do Nordeste, que iniciou o movimento regionalista e tradicionalista
do Recife, com Gilberto Freyre à frente, continuaria de certo modo a Semana de
Arte Moderna. Mas é evidente que o processo de renovação da cultura brasileira
não parou aí, nem poderia ter parado, prosseguindo no seu caminho, em ritmo
acelerado depois da Revolução de 1930, quando começa a se esboçar uma
consciência universitária, e continuou assim até os anos 1960 em que Francisco
de Assis Barbosa escreveu a crítica sobre a qual embasamos este texto, conforme
suas próprias palavras. Dizia ele então que havia ainda “muita teia de aranha
para limpar na inteligência brasileira”. O modernismo teria então se tornado
coisa do passado e se cristalizado em um capítulo da nossa história literária.
Ainda que não
tivesse participado da Semana de Arte Moderna, António de Alcântara Machado foi
um modernista típico. E toda a sua obra de ficcionista está como que marcada
pelos cacoetes do movimento. Não teve tempo de libertar-se do “antropofagismo” –
talvez a mais espetacular das batalhas dos tempos heroicos da guerra dos
literatos paulistas –, mas a verdade é que, nos últimos contos que escreveu, “As
cinco panelas de ouro” , por exemplo, e
mesmo no romance que deixou inacabado, “Mana Maria”, começara a apontar um
estilo novo, numa construção mais sólida e mais segura, conservando embora o
mesmo ritmo e o mesmo colorido dos primeiros trabalhos. Um estilo despojado de
brilho. Despojado também de truques do então chamado futurismo. Decantando as
impurezas, o escritor se desliteratizava na mesma proporção que ia adquirindo o
pleno domínio do instrumento da prosa. Muito pouco faltou para atingir a
plenitude de sua vocação, segundo Barbosa. O seu caso tem algo de parecido com
o de Álvares de Azevedo: o de um grande escritor que a morte prematura impediu
que se realizasse em toda a dimensão do seu talento.
De qualquer modo,
o que ficou basta para consagrá-lo como uma das figuras mais importantes da
nossa literatura moderna, o que aliás fora entrevisto por João Ribeiro, ao
tratar de Brás, Bexiga e Barra Funda,
livro que, na opinião do grande crítico, havia de “marcar uma fase na
novelística brasileira”. Longe de ser uma simples frase de efeito, como poderia
ter parecido na época, o vaticínio do mestre veio a ser confirmado, tal a força
da mensagem do jovem escritor tão cedo desaparecido. O que mais impressionara a
João Ribeiro foi a absoluta integração do contista com o meio, precisamente o
que dá autenticidade e garante a perenidade da obra de ficção.
Umbilicalmente
integrado com o meio, António de Alcântara Machado foi um escritor paulistano,
da cidade de São Paulo, assim como Manuel Antônio de Almeida o foi do Rio de
Janeiro. A aproximação entre os dois, feita por Agripino Grieco, pede, no
entanto, um desdobramento: não são ambos os escritores apenas citadinos, mas
perfeitamente integrados com a alma popular. Na composição artística de um e de
outro, sobreleva a mesma inspiração plebeia. As Memórias de um Sargento de Milícias escandalizaram os cortesãos da
coorte bajuladora do Imperador letrado, com o diálogo apimentado do povo, a
cor, o ruído e até o mau cheiro das ruas. Pois o caso de Brás, Bexiga e Barra Funda não é menos contundente. E com este
detalhe: quem aparecia descrevendo a vida dos bairros humildes de São Paulo era
um aristocrata pertencente a uma família tradicional. E não se escondia como
Maneco Almeida por trás de um pseudônimo. Não, assinava o nome com todas as letras
e acentos: António de Alcântara Machado. “António”, com acento agudo, oral
aberto, que é como se pronuncia esse nome em São Paulo, tal como em Portugal,
ao contrário da pronúncia carioca, de Manuel Antônio, nasal fechado, exigindo
por isso mesmo o acento circunflexo.
Uma nova
personagem surgiu então na literatura brasileira: o ítalo-brasileiro. António
de Alcântara Machado não foi surpreendê-lo na Avenida Paulista, onde se erguiam
palacetes de emigrantes italianos endinheirados, muitos deles mais ricos que os
fazendeiros de café, ostentando títulos de cavaglieri
ufficiale, comendadores e até de condes papalinos. Não, o escritor desceria
aos arrabaldes pobres, aos bairros operários. O que o interessava era o filho
de imigrante em toda a sua violenta integração social, sem nenhum polimento,
muito menos estragado pelo dinheiro, o filho do carcamano no duro, o “intalianinho”,
como saborosamente deturpado passou a ser designado pelo povo o novo mameluco.
Assim são os seus personagens: gente do proletariado e do pequeno comércio,
pode-se dizer, em resumo, a massa da torcida do Palestra Italia Futebol Clube,
o Palmeiras de hoje, rótulo nacionalista imposto depois da Segunda Guerra.
Gaetaninho é filho de operário, e mora no Brás. Carmela, uma costureirinha.
Nicolino Fior D’Amore, barbeiro. Roco, jogador de futebol. Já Natale Pienotto,
proprietário do Armazém Progresso de São Paulo, passou para a Barra Funda
(começo de ascensão social) e sonha com a Avenida Paulista (meta final).
Nos flagrantes que
fixou do operariado e da pequena burguesia de paulistanos, António de Alcântara
Machado tornar-se-ia o grande intérprete do fenômeno ítalo-brasileiro em São Paulo, embora não tenha sido o único
intérprete. A seu lado, em planos diversos, devem ser lembrados os nomes do
desenhista Voltolino e do jornalista “macarrônico” Juó Bananére. Um e outro certamente
o teriam inspirado, a tal ponto que hoje se confundem no tempo e no espaço como
se fossem personagens saídos das páginas de Brás,
Bexiga e Barra Funda.
Voltolino, Lemmo
Lemmi na vida civil, autêntico ítalo-brasileiro, “intalianinho”, humanizava as
suas criações. Os vendedores de jornal de Voltolino enterneciam, segundo
Barbosa. Tocavam direto à sensibilidade do escritor: “Gorrinho de banda, olhar
peralta, paletó paterno batendo nos joelhos, pés descalços, são risonhos e
expansivos. A gente, porém, sente vontade de passar a mão pela cabecinha deles.
Os diabinhos enternecem”. Juó Bananére teve seu desenho criado por Voltolino.
Ou melhor, o artista fez o retrato idealístico do tipo extraordinário do porta-voz
da colônia italiana, “pueta, barbieri e giurnaliste”. Caricatura genial: “bigodudo,
pançudo, de cachimbo e bengalão”. O criador de Juó Bananére foi o engenheiro
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, considerado “paulista de quatrocentos anos”,
como António de Alcântara Machado, e que escreveu para um jornal humorístico, O Pirralho, uma preciosíssima colaboração
em prosa e verso, no português macarrônico dos italianos de São Paulo.
Barbosa escreveu nos anos 1960 que achava
incrível que ninguém ainda tinha se dado ao trabalho de selecionar essa obra
para um volume, ao qual se juntaria uma nova edição de La Divina Increnca, esta só em verso, tudo isso com ilustrações de
Voltolino, de acordo com uma sugestão do próprio António de Alcântara Machado,
que deixou sobre o autor e seu estilo este depoimento: “As deformações da
sintaxe e da prosódia, aqui italianização da língua nacional, ali
nacionalização da italiana, saborosa salada ítalo-paulista das costureirinhas,
dos verdureiros, dos tripeiros, também de alguns milionários e vários bacharéis,
todos eles com raras exceções torcedores do Palestra, os interessados podem
estudar no Juó Bananére”.
A essa “salada
ítalo-paulista” caberia a António de Alcântara Machado dar forma e conteúdo
literário. E é nessa transposição artística do popular que encontramos a
mensagem ainda não superada do escritor, mesmo depois de experiências mais
pretensiosas posteriores – como os romances de Tito Batini e Cecílio J.
Carneiro, retratando problemas de imigrantes italianos e sírio-libaneses – ou menos
ambiciosas no fundo e mais ambiciosas na forma – como nos contos de Mário Neme –
ou ainda como no Marco Zero, de Oswald
de Andrade, na algaravia nipônica dos “nissei”. O complexo social paulista, com
a integração dos imigrantes, ainda não encontrou o seu escritor. Seria António
de Alcântara Machado, se ele tivesse tempo de se realizar em toda a plenitude.
Mas a imagem de sua carreira literária em ascensão – a de um pássaro morto no
instante em que iniciava o grande vôo – está bem refletida no romance inacabado
Mana Maria, como nos contos
derradeiros: “As Cinco Panelas de Ouro” e “Apólogo Brasileiro sem Véu de
Alegoria”, quando o escritor aparece despojado dos cacoetes modernistas.
O estilo quase
telegráfico dos primeiros contos, marcado pelas construções assindéticas, ganha
mais substância, atinge maior elasticidade, como uma lâmina de aço, a caminho
da prosa pura – o seu ideal, em matéria de estilo –, sempre cioso da
comunicação com o leitor, reduzindo o mais possível a distância entre a
linguagem falada e a linguagem escrita. Trata-se de uma experiência da área
urbana da capital paulista, mas no fundo a mesma de João Guimarães Rosa, em território
rural mais amplo – o dos gerais –, com outra profundidade, na pesquisa linguística,
e, com uma criatividade realmente prodigiosa, ainda que correndo o risco de “coelhonetizar”
o seu brasileirismo.
De qualquer modo,
os casos de António de Alcântara Machado e João Guimarães Rosa se emparelham,
na sua diversidade, na mesma constante do movimento modernista: a procura da expressão
brasileira da língua portuguesa.
Nenhuma força humana
será capaz de deter a marcha batida da permanente renovação linguística. Isso
que hoje não passa de lugar comum, soava no Brasil pré-modernista como um
atestado de ignorância. Os nossos gramáticos não admitiam liberdades com o
idioma – o belo idioma de Camões – na tragicômica ilusão de que poetas e
prosadores da era do avião, da lavoura mecanizada, das indústrias pesadas,
pudessem utilizar as mesmas formas de expressão dos frades do século dos
quinhentos, das caravelas, das sementeiras e dos fusos. Ainda conforme Barbosa,
comentava em vão Carlos Góis: “A língua portuguesa tende cada vez mais a uniformizar-se:
procura pois estratificar as suas formas de dizer, fugindo ao sincretismo, que
deve ser um fenômeno antes das línguas ainda em formação, do que de um idioma
já emancipado e construído”. Eco distante de uma mentalidade morta, essas palavras
repercutiam, no entanto, nos idos de 1922, como vozes de um oráculo no templo
do idioma. Os gramáticos eram os sacerdotes. O papa, Rui Barbosa. E Rui
Barbosa, com seu imenso prestígio político, a sua indiscutida e indiscutível
autoridade intelectual, ungido, como até hoje, por uma admiração quase mística
em todo o Brasil.
Enfrentar a
cidadela do gigante foi a empresa ciclópica tentada pela geração modernista de
São Paulo. E só assim se deu a “arrebentação”, com a assimilação das várias
correntes étnicas e imigratórias em nossa literatura. E a língua portuguesa não
se amesquinhou no Brasil. Antes, se enriqueceu. A “última flor do Lácio inculta
e bela” – do verso de Bilac – nascida da “língua plebeia das tabernas e alfurjas”,
falada por soldados, colonos e pequenos mercadores romanos, encontrou no Brasil
o seu grande laboratório experimental, principalmente pela diversificação das
nossas áreas culturais. É no sincretismo, portanto, que o português brasileiro
vai ganhando força e colorido, já que não é possível o ideal de uma língua
acabada, como o demonstra um dos grandes filólogos modernos de Portugal,
contraditando o gramático mais turrão do Brasil: “No dia em que atingíssemos o
ideal (impossível) duma língua perfeita, dissecada, sem exceções, teríamos
matado a Arte. Ora, morrer por morrer, que morra antes a Gramática...”[2]
Do fogo da artilharia
dos “rapazes” da Semana de Arte Moderna, contra o convencionalismo, nasceu a
literatura brasileira moderna. A poesia que não é mais o “lirismo comedido” –
libertada pela Pauliceia Desvairada, de
Mário de Andrade –, a grande poesia de Manuel Bandeira, a “rosa do povo” de
Carlos Drummond de Andrade e o “canto viril” de João Cabral de Mello Neto. O
romance do nordeste, mostrando um Brasil verdadeiro. E, acima de tudo, uma nova
consciência da missão do escritor e do seu dever profissional. Assim
considerava Francisco de Assis Barbosa nos anos 1960.
A necessidade de
ver, sentir e interpretar o Brasil – que os estudos de Gilberto Freyre e a ação
pessoal do grande escritor marcam com a garra de sua poderosa influência. A
tônica dos modernistas era um nacionalismo de então: a poesia pau-brasil, o
verde-amarelismo, a antropofagia. A de Gilberto tem sido o regionalismo. Mas um
regionalismo diferente do de Franklin Távora, diferente também do de Afonso
Arinos e seus seguidores. Regionalismo que é a integração do homem no seu meio,
com a sua gente, bichos e árvores; com a tradição, os costumes e as aspirações
sociais; com as superstições, a religião, os sentimentos populares.
Regionalismo que está todo na obra admirável de um José Lins do Rego,
notadamente no “Ciclo da Cana de Açúcar”, panorama de toda uma região e de toda
uma época, do banguê à usina, ou seja, o esplendor e a decadência dos senhores
de engenho. No “gauchismo” de Érico Veríssimo de O Tempo e o Vento, o primeiro grande romance histórico de nossa
literatura. No “mineirismo” de João Guimarães Rosa e Mário Palmério. No “paulistanismo”
de António de Alcântara Machado. Regionalismo que é, em suma, mais do que uma
afirmação nacionalista, porque atinge o universal.
Fonte bibliográfica:
António de Alcântara Machado – Trechos Escolhidos. Por
Francisco de Assis Barbosa. Coleção Nossos Clássicos. Sob a Direção de Alceu de
Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. 2ª edição. Livraria Agir
Editora, Rio de Janeiro, 1970.
[1]
“Posição de José Lins do Rego”, artigo publicado na Revista Brasileira, São
Paulo, nº 24, julho-agosto, 1959.
[2]
Manuel Rodrigues Lapa. Estilística da Língua Portuguesa.