terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Um texto de Humberto de Campos


Trecho do livro “Memórias” (1933)

Fim de século

     Costumava-se dizer que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século XX trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes das outras.
     A minha passagem pelos jornais, como tipógrafo, quer em Parnaíba, quer no Maranhão, tinha-me dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do Tempo. Eu estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce, não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a culminância do fato de que eu ia ser testemunha.
     O mês de dezembro de 1899 decorreu, na verdade, na esfera em que eu passava a exercer a minha atividade, festivo e animado. Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir! Que nome se lhe devia dar, no nascedouro! Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da Humanidade alvoroçada. As minhas funções de obscuro empregado de uma casa destinada a satisfazer as fantasias da gula humana, contribuíam, igualmente, para acentuar no meu espírito o modo por que os homens felizes interpretavam aquele salto imaginário no rio imenso dos tempos. Desde novembro o depósito da mercearia se abarrotava de barris e de caixas, recebidas diretamente da Europa ou do Sul. Eram ameixas, fiambre, azeitonas, mortadela, tâmaras, figos, queijos holandeses, conservas francesas e do Porto, e vinhos da mesma procedência. As minhas mãos, calejadas na lavagem das garrafas no tanque da casa, tinham-se tornado roxas, e engrelhadas, ao contato do Colares e do Bordeaux. E tudo isso ia sair, nos últimos dias do ano, para a alegria dos homens abastados.
     Na véspera do Natal o movimento das vendas fora considerável. O estabelecimento enchera-se de fregueses, que saíam carregados de embrulhos, ou que deixavam as suas notas de sortimento. Formiga diligente e pobre, eu me sentia feliz, e contente, servindo as cigarras. Carregadores partiam com caixões e cestos, em que iam pacotes e garrafas. Do andar superior, onde a Emília multiplicava a atividade e os cuidados, desciam fiambres louros e tostados, com a sua gargalheira de papel recortado farfalhante, ornando o osso que fora a perna do porco. E assim fomos até a meia-noite, quando se fechou a casa para recomeçar a faina no dia seguinte às cinco e meia da manhã.
     O 31 de dezembro foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um “bar”, em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Transmontana ficava, às vezes, com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceção: ficamos a servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram.
     Através das sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu áspero ruído de ferragens, ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo.
     Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr. Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou:
     - Vamos dar balanço nas mercadorias... Comecemos pelas bebidas.
     E tomando um caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas.
     Sem um protesto ou um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortaleza de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de cognac ou de vermouth, eram contadas, e anunciadas, em voz alta.
     - Trinta e seis garrafas de cognac Macieira!
     - Trinta e seis de Macieira... – confirmava o patrão, escrevendo.
     - Vinte e duas de Colares nº 1!
     - Vinte e duas de Colares nº 1!... – repetia o Sr. Dias de Matos.  
     - Quatorze meias ditas, idem!
     - Quatorze meias ditas, idem...
     De repente, reboa, longe, o apito de uma fábrica de tecidos. Um foguete estronda. Outras fábricas acompanham a primeira. Trepado em uma escada, eu conto, nesse momento, em uma prateleira alta, que fica sobre uma porta, algumas filas de latas de azeite de oliveira:
     Um, dois, três... quatorze... vinte... trinta... trinta e oito.
     O buzinar das fábricas, o estrondar dos foguetes, a gritaria que vem das ruas, o Hino Nacional atacado ao piano em uma casa próxima, interrompem a minha conta, detendo-me o dedo sobre a tampa de uma das latas. Aquele momento é excepcional na História da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que emoções lhe reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa pelo pensamento. Ao fim, porém, de um minuto, continua a conta:
     - Trinta e nove, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois...
     E é ainda com a buzina de algumas fábricas retalhando o céu com o estilete sonoro, que anuncio, do alto da escada, para o patrão:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes!
     E ele, com a mesma fleuma, sem levantar a cabeça do papel em que escreve:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes...
     Foi assim que, humilde caixeiro do século XIX, penetrei o século XX.


Fonte bibliográfica: idem ao texto anterior.


sábado, 19 de dezembro de 2015

Dados biográficos do escritor Humberto de Campos


1886 – 25 de outubro: Nasce em Miritiba, Província do Maranhão, Humberto de Campos Veras, filho do comerciante Joaquim de Farias Veras e de Dona Ana de Campos Veras.
1893 – Em companhia da mãe, já viúva, visita São Luís. Muda-se, neste mesmo ano, para Parnaíba (Piauí).
1894 – Matricula-se na escola primária de Sinhá Raposo, em Parnaíba, transferindo-se, depois, para a escola de Dona Marocas.
1898 – Começa a trabalhar, para auxílio da mãe e da irmã menor, na loja do tio Emídio Veras.
1899 – Vai trabalhar como aprendiz de tipógrafo nas modestas oficinas de “O Comercial”, semanário de Parnaíba, sob a orientação do mestre Floriano Serpa.
1900 – 18 de maio: Parte sozinho para São Luís à procura de emprego, trabalhando como aprendiz de tipógrafo e, mais tarde, como auxiliar da “Casa Transmontana”, armazém de secos e molhados do português José Dias de Matos, “seu Zé”.
1901 – agosto: Volta a Parnaíba onde se emprega novamente na loja do tio Emídio Veras e começa a ler desesperadamente.
1903 – Muda-se para Belém do Pará, empregando-se no escritório da firma Montenegro & Cia. Viaja pelos seringais. Começa a colaboração na imprensa paraense em forma de correspondência.
1908 – É nomeado Secretário da Prefeitura de Belém, depois de ter ingressado no corpo redatorial de “A Província do Pará”.
1911 – Publica seu primeiro livro: “Poeira” (poesia).
1912 – Forçado por acontecimentos políticos, muda-se para o Rio de Janeiro, onde ingressa na imprensa.
1913 – Casa-se com Dona Catarina Vergolino, moça de Belém, por procuração.
1918 – Publica seu primeiro livro de crônicas: “Da Seara de Booz”.
1919 – Publica um livro de contos humorísticos: “Vale de Josafá”.
1920 – Toma posse na Academia Brasileira de Letras, em substituição a Emílio de Menezes.
1923 – A partir deste ano, publica um, dois e até três livros anualmente, até o ano de 1926.
1927 – É eleito Deputado Federal pelo Maranhão. Reeleito em 1929, perde o mandato em 1930, em face da Revolução.
1931 – Nomeado Inspetor Federal de Ensino e, neste mesmo ano, Diretor interino da “Casa de Rui Barbosa”.
1934 – 5 de dezembro: morre no Rio de Janeiro, na Casa de Saúde Dr. Eiras, ao submeter-se a cirurgia.

Fonte bibliográfica: Humberto de Campos – textos escolhidos. Por João Clímaco Bezerra. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1979.  

domingo, 29 de novembro de 2015

Poesia de Olegário Mariano – 2


Água Corrente (1914)[1]

Água corrente! Água corrente!
O teu destino é igual ao destino da gente.

Para onde vais? Tu mesma ignoras tua sorte.
Vais para a vida, para o sonho ou para a morte?
Na correnteza levas, de mansinho,
As paisagens que vês pelo caminho.
Uma árvore infeliz que o vento açula,
A asa de um moinho que ainda gesticula.
Um pedaço do céu entre o nevoeiro,
As pastagens, os bois, um boiadeiro
E a aldeia branca a se perder na falda
Toda verde de um monte de esmeralda...

Água corrente! Água corrente!
O teu destino é igual ao destino da gente.

Passas cantando e ninguém sabe, água erradia,
Se o teu canto é de dor ou de alegria,
Cortas campos e campos desdobrados,
Refletindo as charruas e os arados,
O homem que o seu tesouro desenterra,
Fruto do coração verde da terra,
O plantio e a colheita das searas,
Tudo isso vai nas tuas águas claras
Vertiginosamente retratado...
Água corrente! Toma tu cuidado;
Que não passe de simples fantasia
Tudo o que em teu espelho se insinua...
Não te vá iludir essa alegria
Que é tão dos outros e tão pouco tua.

Água corrente! Água corrente!
Olha que o teu destino é o destino da gente.


[1] Este poema figurava antes na primeira edição de Últimas Cigarras de 1915. O livro Água Corrente, na primeira edição, abria com o soneto publicado aqui anteriormente. Posteriormente o autor trocou as duas composições, passando este poema a abrir o livro Água Corrente

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Poesia de Olegário Mariano


Água Corrente (1918)

Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.

Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...

Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...

Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! Eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...

Fonte bibliográfica:
Olegário Mariano – Poesia. Por Herman Lima. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Dados biográficos do escritor Olegário Mariano


1889 – 24 de março – Nasce no Recife, Pernambuco. Filho de José Mariano Carneiro da Cunha e de D. Olegária Carneiro da Cunha.
1893 – Prisão de José Mariano, durante a revolta contra Floriano Peixoto.
1898 – Morte de D. Olegária. José Mariano transfere-se para o Rio.
1904 – Olegário cursa o Ginásio Pio-Americano, do Rio.
1906 – Publica os primeiros versos na imprensa do Rio. Publicação de “Visões de Moço”, com prefácio de Guimarães Passos.
1911 – Publica “Angelus”. Casamento com D. Maria Clara Saboia de Albuquerque. Viagem à Europa.
1912 – Publica “XIII Sonetos”. Nasce a única filha do casal, que morre aos onze meses num desastre de trem. Morte de José Mariano.
1913 – Publica “Evangelho da Sombra e do Silêncio”.
1915 – Publica “Últimas Cigarras”.
1917 – Secretário da Missão Afrânio de Melo Franco à Bolívia.
1918 – Publica “Água Corrente”.
1922 – Publica “Cidade Maravilhosa”.
1923 – Publica “Castelos de Areia”.
1924 – Publica “Ba-ta-clan”.
1926 – Eleito para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira 21.
1929 – Escreve a revista teatral “Laranja da China”.
1930 – Publica “Canto da Minha Terra”. Escreve a revista teatral “Brasil Maior”.
1931 – Publica “Destino”. Inspetor de Ensino no antigo Distrito Federal.
1932 – Publica “Vida, Caixa de Brinquedos”, “Antologia de Tradutores”, “O Amor na Poesia Brasileira” (antologia), “Poemas de Amor e de Saudade” (antologia lírica) e “Teatro”.
1933 – Eleito deputado à Constituinte, pelo antigo Distrito Federal. Censor da Censura Teatral.
1935 – Tabelião do 15º Ofício.
1937 – Publica “O Enamorado da Vida”.
1938 – Publica “Da Cadeira 21” (discursos da Academia). Inauguração de seu busto, no Passeio Público. Eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição a Alberto de Oliveira.
1940 – Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário às Comemorações de Portugal.
1941 – Adquire a “Toca da Cigarra”, em Teresópolis.
1945 – Delegado à Conferência Interacadêmica de Lisboa, para o Acordo Ortográfico. Publica “Quando vem baixando o Crepúsculo” e “A Vida que já vivi”.
1949 – Publica “Cantigas de Encurtar Caminho”.
1953 – Publica “Tangará Conta Histórias” (versos para crianças) e “Correio Sentimental". Embaixador em Portugal. Inauguração de seu busto em Teresópolis, na Praça Olegário Mariano.
1957 – Publica “Toda uma Vida de Poesia”.
1958 – Falece a 28 de novembro.

Fonte bibliográfica:
Olegário Mariano – Poesia, por Herman Lima. Coleção Nossos Clássicos, sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968.  

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

10 anos do livro “Humanização da Medicina e seus Mitos”




No ano de 2005 a Editora Companhia Ilimitada lançou o livro “Humanização da Medicina e seus Mitos” de minha autoria (Afonso Carlos Neves).
Nessa obra pretendi registrar estudos que surgiram a partir de atividades voltadas à Humanização da Medicina das quais participei desde 1985, na Escola Paulista de Medicina (nessa ocasião ainda não havia a Universidade Federal de São Paulo). Nesse ano, a já presente deterioração dos cuidados à saúde nos hospitais públicos nos levou a organizar encontros e debates a respeito de questões que envolvessem noções de humanismo, no sentido amplo do termo, e questões de saúde e doença.
Desde então, surgiram palestras, cursos, seminários, congressos, etc. de que participei, em torno dessas questões, o que levou a buscar um aprofundamento nesse assunto.
A partir daí, foram feitos estudos correlacionados ao Juramento de Hipócrates e os desdobramentos do entendimento de seu texto. Nesse sentido, ganharam vida as personagens correspondentes aos deuses gregos relacionados à medicina.
O livro contém nove partes, com diversos capítulos.
A parte 1 chama-se “Homo sapiens e Anthropos”, onde, a partir desses termos discute-se conceitos de “ser humano.
A parte 2 foi intitulada “O novo Humanismo e o Transhumanismo”. Ao mesmo tempo em que novas formas de entender o ser humano aparecem, como a que provém dos estudos de Mircea Eliade, estudioso da Mitologia, o Transhumanismo proveniente do desenvolvimento tecnológico promete transpor os limites do humano. A partir daí ainda haveria o ser humano?
A parte 3 chama-se “O Mito”, e discute os variados sentidos da palavra mito, desde “interpretação falsa” até as noções de Mito Moderno, bem como outras instâncias de Mito, incluindo as noções profundas de Mito associadas a estudos de psicologia.
Na parte 4, intitulada “Alguns precedentes da humanização”, discutem-se fatores que já associados a esse termo, antecederam o termo “humanização”, popularizado na transição do século XX para o século XXI.
Na parte 5, intitulada “Hipócrates e seus mitos” procura-se estudar Hipócrates como “Pai da Medicina”, mas também ele mesmo como uma figura mítica, tal a força de sua presença na Medicina.
Na parte 6, “Os Mitos do Juramento”, detalha-se o estudos das figuras míticas gregas relacionadas no Juramento, bem como outras que acabam se desdobrando do próprio aprofundamento no conhecimento dos mitos do juramento.
Na parte 7, “Símbolos e Mitos”, estuda-se a correlação entre determinados símbolos que se tornaram consagrados em relação à Medicina e os Mitos.
Nas partes 8 e 9, respectivamente “Uma outra Ilíada” e “Uma outra Odisseia”, faz-se certo paralelo com essas duas obras de Homero, na medida em que se passa a estudar e entender os diversos entrelaçamentos entre as narrativas míticas gregas correlacionadas à Medicina e a incorporação dessas figuras, principalmente da figura de Quíron, pelo médico a partir do Juramento, tenha ou não consciência desse processo.
O livro “Humanização da Medicina e seus Mitos” tem sido usado por diversos cursos de várias instituições para discutir a questão da Humanização da Medicina, incluindo o próprio “mito da humanização”.
No ano de 2016 pretende-se lançar a segunda edição desse livro.

sábado, 10 de outubro de 2015

Martins Fontes – Poesia 2


Crepúsculo

Alada, corta o espaço uma estrela candente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
e de doçura triste, inexprimivelmente.

À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
Entre nuvens de opala, a concha do crescente.

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando...

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente, o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
                                                                        (Verão)

Fonte bibliográfica: Martins Fontes - Poesia. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1959. 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Martins Fontes - Poesia


O Espírito da Matéria

Também as catedrais são sinfonias:
Rege a massa coral da arquitetura
a divinização da partitura;
e ambas se irmanam por analogias!

O alegro, o adágio, o andante, a tessitura,
o arco, o fuste, o florão... Alegorias
que, pela execução das harmonias,
timbram exatas, no esplendor da altura!

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem.
E, pelo ouvido, a torre se levanta,
para que os sonhos da matéria louvem!

E, na sua amplitude sacrossanta,
a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,
fulge na pedra, quando a pedra canta!
                                                    (A Canção de Ariel)

Fonte bibliográfica: "Martins Fontes - Poesia". Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1959. 

domingo, 4 de outubro de 2015

Dados biográficos do escritor Martins Fontes


1884 – 23 de Junho: nasce em Santos, Estado de São Paulo, o poeta José Martins Fontes.

1889 – Faz estudos primários com sua mãe D. Isabel Martins e, depois, com seu pai, Dr. Silvério Fontes, médico, sociólogo, jornalista.

1892 – 1 de Maio: estreia do menino como orador, lendo, no “Centro Socialista”, um hino a Castro Alves.

1898 – Adolescente, tendo frequentado os colégios de Leopoldina Coelho, Eugênio Porchat e Tarquínio Silva, transfere-se para o Ginásio Nogueira da Gama, em Jacareí.

1901 – Concluídos os seus estudos de ginásio, matricula-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Durante os anos de estudante, trabalha na “Gazeta de Notícias”, no “O País”, na revista “Careta” e em outros periódicos.

1906 – Doutorando-se, inicia sua carreira como interno na clínica do Dr. Juliano Moreira, no Hospital de Alienados.

1908 – Toma parte, como médico, na Comissão de Obras do Acre, sob a direção de Bueno de Andrade.

1910 – É designado chefe da Assistência Escolar da Prefeitura carioca, auxiliar de Oswaldo Cruz na profilaxia urbana do Distrito Federal.

1914 – Funda, com Olavo Bilac, uma Agência Americana, para serviço de propaganda dos produtos brasileiros em Paris, Havre, Hamburgo, Nova York, etc.

1915 – Passa a residir, de novo, em Santos.

1917 – Publica seu primeiro livro, “Verão”.

1919 – Casa-se com D. Nicota Neto.

1922 – Aparecimento de “Arlequinada”, uma representação em que ele mesmo toma parte.

1923 – Visita de Vargas Vila ao poeta, em Santos.

1924 – Eleito para a Academia de Ciências de Lisboa.

1926 – Publica “Vulcão” (poemas).

1930 – Acompanha Júlio Prestes em viagem que este, então eleito Presidente da República, fez à Europa e Estados Unidos.

1931 – Publica “A Flauta Encantada”.

1933 – Publica “Sombra, Silêncio e Sonho”.

1937 – (Início do Ano): visita de Vilaespesa. – 25 de Junho: falece Martins Fontes em sua cidade natal, Santos. 

Fonte bibliográfica: "Martins Fontes - Poesia" - Coleção Nossos Clássicos - Direção de Alceu de Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1959. 

domingo, 12 de julho de 2015

Poesias de Raul Leôni


Crepuscular

Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
 Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe.


História antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...


Artista

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas cousas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix[1] inocente:

Fia na primavera, entre as amoras,
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...


[1] Bicho da seda. 

sábado, 11 de julho de 2015

Dados Biográficos do escritor Raul de Leôni


1895 – 30 de Outubro: Nasce, em Petrópolis, Estado do Rio, Raul de Leôni Ramos, filho do magistrado Carolino de Leôni Ramos e de D. Augusta Villaboim Ramos.

1903 – Cursa o Primário e a seguir o Secundário, no Colégio Abílio, na Capital Federal.

1910 – 11 de setembro: Faz a primeira comunhão, aos 15 anos de idade, na Capela do Colégio São Vicente, dos Padres Premonstratenses, em Petrópolis, onde se encontra internado.

1912 – Matricula-se Raul de Leôni na Faculdade Livre de Direito do Distrito Federal, colando grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais quatro anos após.

1913 – 9 de abril: Parte Raul de Leôni para a Europa, aos 18 anos, indo visitar a Inglaterra, a França, Itália, Espanha e Portugal.

1914 – De volta do Rio de Janeiro, inicia colaboração literária nas revistas “Fon-Fon” e “Para-Todos”, colaborando mais tarde em “O Jornal” (1919), no “Jornal do Commercio” e no “Jornal do Brasil”.

1918 – 13 de março: É nomeado por Nilo Peçanha, Ministro das Relações Exteriores no governo Wenceslau Brás, para o cargo de 2º secretário da Legação do Brasil em Cuba, não chegando a assumir, regressando da Bahia.

1919 – Após declinar da sua declinação para cargo idêntico, em nossa Legação junto ao Vaticano, é eleito deputado à Assembleia Fluminense.

1919 – Publica o seu primeiro livro de poesias, a “Ode a um poeta morto”, dedicado à memória de Olavo Bilac.

1921 – 6 de abril: Casa-se em Petrópolis, com D. Ruth Soares Gouvêa, que havia conhecido, três meses antes, num baile do Itamarati.

1922 – Publica o seu livro clássico “Luz Mediterrânea” e começa a colaborar no jornal “O Dia”, de Virgílio de Mello Franco e Azevedo Amaral.

1923 – Adoece do pulmão, abandonando o convívio de parentes e amigos e indo para Correias e a seguir, Itaipava, licenciando-se do cargo de inspetor na Companhia de Seguros em que trabalhava.

1926 – 21 de novembro: Morre, na “Vila Serena”, em Itaipava, Raul de Leôni, sendo conduzido o seu corpo, em derradeira viagem, para Petrópolis, que lhe presta as suas últimas homenagens, sepultando-o à sombra do Cruzeiro das Almas, erigindo-lhe um mausoléu e dando o seu nome a um trecho da Rua Sete de Setembro.


Fonte bibliográfica: Raul de Leoni - trechos escolhidos. Por Luiz Santa Cruz. Coleção Nossos Clássicos. Publicados sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.  

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Ronald de Carvalho – Poesia – Parte 3


Brasil
                                       Ronald de Carvalho

Nesta hora de sol puro
         palmas paradas
         pedras polidas
         claridades
         faíscas
         cintilações

Eu ouço o canto enorme do Brasil!

Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu.
      correndo nas pontas das rochas nuas,
      empinando-se no ar molhado, batendo
      com as patas de água na manhã de
      bolhas e pingos verdes;

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara
      e grave melodia, Amazonas, a melodia
      da tua onda lenta de óleo espesso, que se
      avoluma e se avoluma, lambe o barro
      das barrancas, morde raízes, puxa ilhas
      e empurra o oceano mole como um touro
      picado de farpas, varas, galhos e
      folhagens;

Eu ouço a terra que estala no ventre quente
      do nordeste, a terra que ferve na planta
      do pé de bronze do cangaceiro, a terra
      que se esboroa e rola em surdas bolas
      pelas estradas de Juazeiro, e quebra-se
      em crostas secas, esturricadas no Crato
      chato;

Eu ouço o chiar das caatingas – trilos, pios,
     pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos
     que picam, bordões que ressoam retesos,
     tímpanos que vibram límpidos, papos
     que estufam, asas que zinem, zinem,
     rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas
     longas, langues – caatingas debaixo do
     céu!

Eu ouço os arroios que riem, pulando na
      garupa dos dourados gulosos, mexendo
      com os bagres no limo das luras e das
      locas;

Eu ouço as moendas espremendo canas, o
      glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o
      tinir das tijelinhas nas seringueiras;
      e machados que disparam caminhos,
      e serras que toram troncos,
      e matilhas de “Corta-Vento”, “Rompe-Ferro”,
             “Faíscas” e “Tubarões acuando
              suçuaranas e maçarocas,
e mangues borbulhando na luz,
e caititus tatalando as  queixadas para os
             jacarés que dormem no tijuco morno dos
             igapós...

Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo,
            gritando, vociferando!

Redes que se balançam,
sereias que apitam,
usinas que rangem, martelam, arfam,
      estridulam, ululam e roncam,
tubos que explodem,
guindastes que giram,
rodas que batem,
trilhos que trepidam,
rumor de coxilhas e planaltos, campainhas,
        relinchos, aboiados e mugidos,
repiques de sinos, estouros de foguetes,
        Ouro Preto, Bahia, Congonhas, Sabará,
vaias de bolsas empinando número como
           papagaios,
tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,
vozes de todas as raças que a maresia dos
         portos joga no sertão!

Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil!

Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar!
a conversa dos fazendeiros nos cafezais,
a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
a conversa dos operários nos fornos de aço,
a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias,
a conversa dos coronéis nas varandas das roças...

Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora,
            De sol puro,
palmas paradas
pedras polidas
claridades
brilhos
faíscas
cintilações  
             
é o canto dos teus berços, Brasil, de todos
           esses teus berços, onde dorme, com
           a boca escorrendo de leite, moreno, confiante,
o homem de amanhã!


Referência bibliográfica: 
Ronald de Carvalho - Poesia e Prosa. Por Peregrino Junior. Coleção Nossos Clássicos, sob direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1960. 

terça-feira, 10 de março de 2015

Ronald de Carvalho – Poesia – parte 2


Cheiro de Terra

Há versos que são como um jardim depois da chuva:
deixam em nós a sensação da água caindo,
caindo em bolhas trêmulas da ponta das folhas,

escorrendo da péla macia das pétalas,
pingando dos galhos lavados, gota a gota,
pingando no ar...

Versos que cheiram a terra molhada,
versos que são como um jardim depois da chuva...


Monotonia da Tarde Tropical

Nos jardins do arrabalde os girassóis dourados
abrem os cálices pesados para o poente.
Nos jardins solitários desce a penumbra suavemente,
desce a penumbra nos jardins calados.

Doçura do crepúsculo,
Doçura das montanhas e das árvores silenciosas
no crepúsculo...

Rola no ar morno um perfume acre de ervas queimadas
um perfume voluptuoso de carne e de frutas ácidas.

Sobre os jardins do arrabalde,
Surge trêmula, trêmula,
a primeira estrela.


Verdade

A verdade é talvez um momento feliz.
O teu momento feliz...  


Fonte bibliográfica: Trechos de "Epigramas irônicos e sentimentais" (1922) em "Ronald de Carvalho - Poesia e Prosa" por Peregrino Júnior. Coleção Nossos Clássicos, sob a direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1960.  

domingo, 1 de março de 2015

Ronald de Carvalho – Poesia


Interior

Poeta dos trópicos, tua sala de jantar
é simples e modesta como um tranquilo pomar;

no aquário transparente, cheio de água limosa,
nadam peixes vermelhos, dourados e cor de rosa;

entra pelas verdes venezianas uma poeira luminosa,
uma poeira de sol, trêmula e silenciosa,

uma poeira de luz que aumenta a solidão.

Abre a tua janela de par em par. Lá fora, sob o céu de verão,

Todas as árvores estão cantando! Cada folha
é um pássaro, cada folha é uma cigarra, cada folha é um som...

O ar das chácaras cheira a capim melado,
a ervas pisadas, a baunilha, a mato quente e abafado.

Poeta dos trópicos,
dá-me no teu copo de vidro colorido um gole d’água.
(Como é linda a paisagem no cristal de um copo d’água!)  


Fonte bibliográfica:

"Interior" (de "Epigramas Irônicos e Sentimentais" - 1922) em "Ronald de Carvalho - Poesia e Prosa", por Peregrino Júnior, da Coleção Nossos Clássicos, sob a direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1960.