Trecho do livro “Memórias” (1933)
Fim de século
Costumava-se dizer
que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo.
Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a
minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a
vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século
XX trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes
das outras.
A minha passagem
pelos jornais, como tipógrafo, quer em Parnaíba, quer no Maranhão, tinha-me
dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do Tempo. Eu
estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo
inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do
nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história
humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito
infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce,
não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o
que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a
culminância do fato de que eu ia ser testemunha.
O mês de dezembro
de 1899 decorreu, na verdade, na esfera em que eu passava a exercer a minha
atividade, festivo e animado. Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais
maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda
parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma
infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que
prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir! Que nome se lhe devia
dar, no nascedouro! Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da
Humanidade alvoroçada. As minhas funções de obscuro empregado de uma casa
destinada a satisfazer as fantasias da gula humana, contribuíam, igualmente,
para acentuar no meu espírito o modo por que os homens felizes interpretavam
aquele salto imaginário no rio imenso dos tempos. Desde novembro o depósito da
mercearia se abarrotava de barris e de caixas, recebidas diretamente da Europa
ou do Sul. Eram ameixas, fiambre, azeitonas, mortadela, tâmaras, figos, queijos
holandeses, conservas francesas e do Porto, e vinhos da mesma procedência. As
minhas mãos, calejadas na lavagem das garrafas no tanque da casa, tinham-se
tornado roxas, e engrelhadas, ao contato do Colares e do Bordeaux. E tudo isso
ia sair, nos últimos dias do ano, para a alegria dos homens abastados.
Na véspera do
Natal o movimento das vendas fora considerável. O estabelecimento enchera-se de
fregueses, que saíam carregados de embrulhos, ou que deixavam as suas notas de
sortimento. Formiga diligente e pobre, eu me sentia feliz, e contente, servindo
as cigarras. Carregadores partiam com caixões e cestos, em que iam pacotes e
garrafas. Do andar superior, onde a Emília multiplicava a atividade e os
cuidados, desciam fiambres louros e tostados, com a sua gargalheira de papel
recortado farfalhante, ornando o osso que fora a perna do porco. E assim fomos
até a meia-noite, quando se fechou a casa para recomeçar a faina no dia
seguinte às cinco e meia da manhã.
O 31 de dezembro
foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um “bar”, em que era
servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Transmontana ficava, às vezes,
com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava
interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões,
que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas
redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceção: ficamos a
servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram.
Através das
sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as
dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da
cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto,
estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu
áspero ruído de ferragens, ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no
ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à
distância, desaguando no largo do Carmo.
Às dez e meia,
enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em
pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr.
Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou:
- Vamos dar
balanço nas mercadorias... Comecemos pelas bebidas.
E tomando um
caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas.
Sem um protesto ou
um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho.
Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortaleza de
vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de cognac ou de vermouth, eram
contadas, e anunciadas, em voz alta.
- Trinta e seis
garrafas de cognac Macieira!
- Trinta e seis de
Macieira... – confirmava o patrão, escrevendo.
- Vinte e duas de
Colares nº 1!
- Vinte e duas de
Colares nº 1!... – repetia o Sr. Dias de Matos.
- Quatorze meias
ditas, idem!
- Quatorze meias
ditas, idem...
De repente, reboa,
longe, o apito de uma fábrica de tecidos. Um foguete estronda. Outras fábricas
acompanham a primeira. Trepado em uma escada, eu conto, nesse momento, em uma
prateleira alta, que fica sobre uma porta, algumas filas de latas de azeite de
oliveira:
Um, dois, três...
quatorze... vinte... trinta... trinta e oito.
O buzinar das
fábricas, o estrondar dos foguetes, a gritaria que vem das ruas, o Hino
Nacional atacado ao piano em uma casa próxima, interrompem a minha conta,
detendo-me o dedo sobre a tampa de uma das latas. Aquele momento é excepcional
na História da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que
emoções lhe reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa
pelo pensamento. Ao fim, porém, de um minuto, continua a conta:
- Trinta e nove,
quarenta, quarenta e um, quarenta e dois...
E é ainda com a
buzina de algumas fábricas retalhando o céu com o estilete sonoro, que anuncio,
do alto da escada, para o patrão:
- Quarenta e dois
litros de azeite português Brandão Gomes!
E ele, com a mesma
fleuma, sem levantar a cabeça do papel em que escreve:
- Quarenta e dois
litros de azeite português Brandão Gomes...
Foi assim que,
humilde caixeiro do século XIX, penetrei o século XX.
Fonte bibliográfica: idem ao texto anterior.