sábado, 12 de novembro de 2016

Gonçalves de Magalhães - Contexto histórico e crítica


Contexto histórico

     Nascido no Rio de janeiro em 13 de agosto de 1811, Gonçalves de Magalhães viveu a infância e começou sua formação intelectual no período de permanência de D. João VI no Brasil, de 1808 a 1821, e dos acontecimentos posteriores, durante o primeiro império, a regência, até a maioridade. Considerando-se ainda a revolução romântica que se processava na Europa, em substituição ao estilo clássico, temos apontados dois antecedentes fundamentais que apoiam e explicam as atitudes e o significado, sobretudo reformador, da obra que, a partir de 1832-1836, ele realizaria entre nós, a ponto de ser distinguido como reformador da literatura brasileira. À sua formação neoclássica, junta-se um intenso sentimento patriótico, o desejo de reconhecer tradições e valores brasileiros, de renovar a nossa cultura, particularmente a nossa literatura, no que é inspirado, a partir de dado momento, pela reforma romântica das literaturas europeias, notadamente francesa, italiana e portuguesa, com as quais entra em contato direto a partir de 1833.
     A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro condicionou fatores e condições indispensáveis à reforma romântica da literatura brasileira, iniciada por atitudes críticas e objetivos, conscientemente expressos, de Gonçalves de Magalhães, quando, em 1836, fundou a Niteroi – Revista Brasiliense e publica em Paris os Suspiros Poéticos e Saudades. Limitaremos de 1808 a 1836, em correspondência com a nossa história política, econômica e social, o momento historicamente considerado mais importante da evolução literária no Brasil: a transição das condições coloniais de nossa vida literária para a sua expressão autonômica, em busca da definição de sua própria nacionalidade, e, ao mesmo tempo, a transição do neoclassicismo arcádico para o romantismo. Só a partir de 1808 é que somos favorecidos com condições indispensáveis à atividade literária que de fato pudesse exprimir o complexo da nacionalidade em formação. Destacam-se, assim, os atos econômicos, políticos e culturais do governo português no Rio de Janeiro; a abertura dos portos do Brasil ao livre intercâmbio com as nações amigas, a elevação do Brasil à categoria de Reino unido a Portugal e Algarves, incremento da agricultura, da indústria e do comércio, criação de museu, arquivo, biblioteca pública, imprensa, periódicos, publicação de livros e possibilidade do comércio do livro, reformas do ensino, com instalações de escolas de nível superior, estímulo das atividades artísticas, música, pintura, arquitetura, início de verdadeira atividade dramática. Tudo resulta na elevação da condição e da dignidade de ser brasileiro, na revelação imediata da consciência de nossas possibilidades, sobretudo num intenso ardor patriótico ou nacionalista refletido em todos os setores da vida do país, quando não expresso por um antilusitanismo que explicaria em parte o indianismo romântico e em parte a repulsa que manifestamos pela contribuição portuguesa em nossa vida literária, quando a substituímos, ostensivamente, por influência de outras literaturas, notadamente a francesa, e lutamos pela definição de um estilo literário brasileiro.
     Favorece-nos então o advento do romantismo, indo ao encontro do estilo clássico, essencialmente universalizante e sobretudo desfigurado, incaracterístico, se considerado dentre das limitações estreitas e pobres de nossa vida literária até princípios do século XIX. Essencialmente nacionalista, o romantismo, voltado para uma temática que, se por um lado exprimia o individualismo e a sentimentalidade do homem da primeira metade do século XIX, propício à confidência, aos anseios indefinidos, à exaltação da sensibilidade, por outro lado buscava inspiração menos pessoal na exaltação de tradições e valores históricos nacionais, nas sugestões da paisagem social e da natureza de cada país. Nada mais favorável, portanto, à expansão do ardor patriótico de uma jovem nação, ao entusiasmo nacionalista de seus filhos, quando intensamente eles viviam aquelas consequências das reformas políticas, econômicas, culturais e sociais de D. João VI no Brasil. Fazia-se necessário, contudo, a consciência crítica dessa reforma romântica a ser definida em nossa vida literária. Neste caso, - desde as sugestões de estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garrett, até a contribuição de brasileiros que estiveram na Europa, pré-românticos como José Bonifácio de Andrada e Silva e Domingos Borges de Barros, figuras já reconhecidamente românticas como J. M. Pereira da Silva, Adolfo Vernhagen, Justiniano José da Rocha, - se destaca a figura de Gonçalves de Magalhães, formação neoclássica logo dominada pelo nacionalismo, pela efervescência renovadora que nasce entre nós com a presença de D. João VI, e, sobretudo, pela reforma romântica europeia com a qual, como vimos, ele entra em contato direto, a partir de 1833. E de 1833/1836 até 1846, ano da publicação da primeira grande obra romântica brasileira – os Primeiros Contos de Gonçalves Dias, estendendo-se até 1856, quando José de Alencar critica seu poema épico A Confederação dos Tamoios, motivando uma polêmica célebre, é certo que o papel de Gonçalves de Magalhães é realmente o de reformador e renovador de nossa vida literária, sob a inspiração e o pensamento crítico romântico, dominado por exaltado sentimento patriótico.

Estudo Crítico

     Para uma abordagem sumária da obra de Gonçalves de Magalhães, no sentido de comprovar a interpretação e a valorização que lhe atribuímos, vejamo-la por ordem cronológica de publicação e ao mesmo tempo dentro de um critério de agrupamento genético, buscando, sobretudo, o pensamento crítico do autor, sua temática principal e preferida e a importância histórico-literária de suas realizações. Cultivou a poesia lírica, épica, dramática (teatro em verso), a ficção, o ensaio crítico e histórico, além dos estudos ou ensaios filosóficos que realizou. Como poeta lírico, deixou-nos a parte mais extensa de sua obra, compreendendo, de acordo com a edição das Obras Completas, os seguintes volumes: Poesias Avulsas, Suspiros Poéticos e Saudades, Cânticos Fúnebres e Urânia, sendo que seu livro de estreia – Poesias – datado de 1832, se acha em grande parte reproduzido nas Poesias Avulsas, uma vez que foi submetido à revisão e seleção do autor. Como épico, publicou A Confederação dos Tamoios; como teatrólogo, além de traduções, deixou duas peças originais conhecidas – Antônio José ou o Poeta e a Inquisição e Olgiato; reuniu nos Opúsculos Históricos e Literários várias páginas em prosa, entre as quais destacamos o ensaio “Discurso Sobre a História da Literatura no Brasil”; escreveu uma pequena novela – Amância - , e deixou publicados finalmente, três volumes de filosofia – Comentários e Pensamentos, Fatos do Espírito Humano e A Alma e o Cérebro (estudos de psicologia e fisiologia), aspectos de sua obra que aqui não nos interessa diretamente [conforme o texto de José Aderaldo Castello].
     Considerando, portanto, como livro de estreia de Gonçalves de Magalhães o volume Poesias, de 1832, no prefácio que o acompanha, encontramos o ponto de partida de suas ideias sobre poesia e dos objetivos de sua obra. Dando como menosprezada a atividade poética, procura enobrecê-la e reconhecer-lhe como finalidade a exaltação patriótica e a elevação das virtudes humanas, apontando-a como uma parte da filosofia moral. No momento crítico que então vivia a nacionalidade, dominada por lutas, ódios e ambições, nada mais oportuno e necessário a todo bom patriota, do que dirigir seu canto contra os vícios e o crime, reconhecer a bondade do coração humano e estimular nos seus patrícios a ambição da glória, para ilustração da “cara Pátria”. A temática que desenvolveria nas composições das Poesias, reproduzidas parcialmente ao lado de outras esparsas, escritas desde a mocidade, no volume das Obras Completas – Poesias Avulsas enquadra-se rigorosamente nestes seus propósitos. Reúnem-se aqui odes sáficas e pindáricas, cantatas, églogas, nênias, elegias, sonetos, epicédios, liras, epístolas, sátiras, epigramas, elogio dramático, apólogo, além do poemeto “As Noites Melancólicas” em que se fazem reflexões sobre o homem, seu sentimento de amizade, a miséria de sua condição e a morte. As próprias formas poéticas preferidas indicam o predomínio dos elementos de formação neoclássica do poeta, mas já de mistura com atitudes reconhecidamente românticas, sobretudo entrevistas no sentimento religioso, na preocupação moralizante, na exaltação patriótica e na exacerbação com que ele lamenta a dor, reconhece o mistério impenetrável do homem e da vida e apela para a morte.
     Sem propriamente se renovar, Magalhães amplia as suas considerações sobre a poesia e a temática que cultiva, ao publicar, em 1836, os Suspiros Poéticos e Saudades, obra que pretende sob as sugestões recebidas diretamente do romantismo europeu, inaugurar neste sentido, a reforma da literatura brasileira. Agora, já se apresenta livre da disciplina formal e de certas peculiaridades do estilo neoclássico, confessando que escreveu a sua nova obra segundo as impressões dos lugares que conheceu, cidades tradicionais, monumentos históricos, sugestões do passado, impressões da natureza associada ao sentimento de Deus, reflexões sobre o destino de sua pátria, sobre as paixões humanas e o efêmero da vida. Reafirma, dentro de um ideal religioso, a finalidade moralizante da poesia, capaz de ser instrumento de elevação e dignificação da pessoa humana, condena o estilo mitológico e proclama a liberdade formal da criação poética. O prefácio “Lede”, ao volume citado, vale assim, para nós, como uma espécie de manifesto romântico, ampliado pela introdução que escreve ao estudo da nossa literatura, no “Discurso Sobre a História da Literatura no Brasil”, que ficou apenas nos quatro primeiros capítulos publicados na Niterói – Revista Brasiliense, que ele fundou e editou em Paris, também em 1836. Motivado por vibrante propósito patriótico, procura aí realizar uma exaltação do Brasil, indicar os caminhos próprios de nossa vida literária, criticando a influência do espírito clássico em nosso passado literário, dado o seu caráter desnacionalizado e desnacionalizador, apontando a inspiração religiosa, ressaltando a necessidade de afirmar a nossa nacionalidade literária. Nos prefácios da Poesias Avulsas, e dos Cânticos Fúnebres – revivescência da “poesia dos túmulos”, de princípios do romantismo – publicados ambos em 1884, repisa nos mesmos pontos básicos acima salientados. Só Urânia, de 1862, não apresenta as preocupações indicadas, voltado que é para uma tentativa infeliz e prosaica de exaltação lírica da mulher amada, retomando, sem inspiração, sem força comunicativa, o culto da divinização da mulher da poesia camoniana e a sugestão lírica de Gonzaga.
     Nada de novo na temática desenvolvida nas últimas obras indicadas, se aproximadas das ideias já expostas, ideias que sem dúvida presidiram a elaboração delas. São temas e motivos românticos, subordinados a reflexões sugeridas pelo espiritualismo filosófico que Gonçalves de Magalhães aprendeu com Frei Francisco de Monte Alverne e nos cursos que frequentou em Paris ou no conhecimento de Jouffroy e Victor Cousin. Às reflexões sobre Deus e a natureza se ajustam as considerações sobre o poeta e a poesia, o sentido divino de sua inspiração e o objetivo moralizador de sua obra; canta a infância, a mocidade e a velhice, assim como se julga infeliz e sofredor; glorifica o passado histórico ou exprime saudade da pátria distante, exalta a amizade, a justiça, a liberdade, e decanta a Pátria. Ou então, ainda revivendo a já ultrapassada “poesia dos túmulos”, dos albores do romantismo, pondera a condição efêmera do homem, exacerba-se, numa lamentação fúnebre, e aspira a morte como uma libertação.
     A mesma preocupação renovadora ou reformadora, do ponto de vista crítico e de difusão de uma temática e de processos expressivos novos, pode ser reconhecida na poesia épica e no teatro de Gonçalves Magalhães. Entre os seus propósitos literários, Magalhães sempre manifestou, desde a mocidade, o desejo de escrever um poema épico nacional. E em pleno domínio do romantismo, quando o gênero, próprio da tradição clássica, já havia sido praticamente abandonado, ele publicou primeiro em edição imperial, em 1856, sob o patrocínio de D. Pedro II, depois em edição comum, em 1857, o poema A Confederação dos Tamoios. O desejo de glorificar o passado histórico nacional , o sentimento antilusitano que inspirou o poeta e o fundamento neoclássico de sua formação, justificam, literariamente, a elaboração um tanto extemporânea desta obra. Tanto assim que, apesar de certas afirmações críticas pressupondo atitudes renovadoras, Magalhães se apresenta diretamente filiado na tradição épica nacional esboçada na era colonial de nossa literatura, em que avultam Frei José de Santa Rita Durão e José Basílio da Gama. Do primeiro, muito preso ao modelo camoniano, além da sugestão indianista e do sentimento cristão ou religioso, retomou as intenções patrióticas de realizar uma epopeia nacional; no segundo, à parte também a sugestão indianista, observou o abandono das principais características de estilo e de estrutura externa impostas pela épica tradicional, desde a linguagem mitológica até o uso da oitava rima, substituída esta pelo verso decassílabo branco de estrofação livre.
     Contudo, nota-se no poema em apreço talvez uma maior tendência para a observância dos moldes tradicionais do que a introdução de novidades. Compõe-se A Confederação dos Tamoios de dez cantos, escritos em versos decassílabos predominantemente brancos, às vezes rimados, em estrofação livre; abandona o maravilhoso pagão, substituindo-o, porém, pelas sugestões do fetichismo indígena, o que já se nota no Uruguai de Basílio da Gama; e apresenta a divisão em partes, conforme agora o modelo quinhentista. Sua ação central gira em torno das lutas dos tamoios confederados, que em certo momento se aliam aos franceses, contra os portugueses colonizadores, em meados do século XVI, com um cenário que se estende do litoral paulista ao Rio de Janeiro. Preenchem as páginas do poema de Magalhães vários fatos, ocorrências, figuras históricas de portugueses, índios e jesuítas – Brás Cubas, João Ramalho, Tibiriçá, Caiubi, Cunhambeba, Jagoanharo, Aimbere, Iguaçu, Parabaçu, Pindobuçu, Anchieta, Nóbrega – nos limites do século XVI, além de referências a fatos e pessoas posteriores, numa antevisão panorâmica que chega até a Maioridade; de páginas descritivas da paisagem brasileira; e de outras repletas de intenso sentimento religioso entrevisto sobretudo na figura de Anchieta. Pode-se dizer que a Confederação dos Tamoios, de acordo com as impressões de Frei Francisco de Monte Alverne, é um poema intensamente patriótico, religioso e moralizante, o que está bem de acordo com o espírito e os propósitos do autor. Mas é uma obra medíocre como de resto toda a produção literária de Magalhães, consistindo seu valor no sentimento e nas intenções reformadoras e estimuladoras do escritor. Evidentemente não pode ser apreciado como um poema épico nacional. Apresenta, porém, uma grande vibração patriótica, o sentimento antilusitano que então nos dominava, na preocupação de reconhecermos as raízes autóctones de tradições e valores nacionais. Daí a defesa histórica do índio, tido como o mais legítimo elemento da nossa formação, contra as injustiças e o menosprezo do elemento colonizador adventício. Mas não chega a realizar uma valorização histórica do indígena, de maneira convincente, nem tampouco a explorar poeticamente as sugestões deixadas pelo seu antepassado remoto e pelas lutas com os portugueses nos momentos iniciais da conquista da terra. Talvez o que haja de mais notável neste poema, sem com isto pretender por em segundo plano as observações já feitas, seja o fato de ele haver motivado as famosas críticas de José de Alencar, no Diário do Rio de Janeiro, ocasionando uma polêmica da qual participaram Manuel de Araújo Porto-Alegre, D. Pedro II, Frei Francisco de Monte Alverne, além de outros, importantíssima para o estudo e a exata compreensão da tendência indianista do romantismo no Brasil.
     Mas não é tanto a poesia épica que amplia o significado da posição de Magalhães no início da reforma romântica no Brasil, conforme já ficou entrevisto através de sua produção lírica e de seu pensamento crítico. Tal relevo é dado ainda pelos seus propósitos de criar um teatro de legítima expressão nacional, contando, no caso, com a colaboração do grande ator da época, João Caetano, verdadeiramente o primeiro organizador de uma companhia de teatro que pode ser considerada como brasileira. Antes de Gonçalves de Magalhães, de João Caetano, Porto-Alegre e Martins Pena, a rigor não podemos falar em teatro nacional, compreendendo-se nesta expressão, o autor, a obra, o ator ou companhia, o edifício adequado à representação e o público realmente interessado. E dentro do setor exclusivo da história, não se poderia falar, até à altura da reforma de Magalhães e João Caetano, o que interessava ao nosso público eram o dramas febricitantes, o que viciava a imaginação e a sensibilidade.  Escritores como Souza e Silva, Lemos Magalhães, Antonio José de Araujo, Pinheiro Guimarães Junior, Odorico Mendes e mesmo Gonçalves de Magalhães limitavam-se a traduzir Byron, Arnaud, Delavigne, Ducis; são adaptações de peças de Shakespeare, por exemplo Otelo ou o Mouro de Veneza. Sentiu desde cedo, nos seus propósitos de reformador da literatura Brasileira, a necessidade de estimular a criação de peças nacionais; de assunto e de interesse nacionais, para de fato conseguirmos a organização de um teatro que correspondesse à nossa realidade. Mais uma vez, como logo mais os veremos, vale aqui a sua intenção, o seu esforço pioneiro, o caminho que abre, com Manuel de Araujo Porto-Alegre, e João Caetano para a verdadeira cena nacional, com Martins Pena e outros românticos como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.
     A primeira peça de Gonçalves de Magalhães é a tragédia Antonio José ou o Poeta e a Inquisição, datada de 1838, quando, em 13 de março foi pela primeira vez representada no Teatro da Praça da Constituição pela Companhia de João Caetano, que acabava de ser organizada. Nos moldes do teatro clássico, compõe-se a peça de Gonçalves de Magalhães, por ele considerada uma tragédia de assunto nacional, de cinco atos escritos em verso, metro decassílabo, com assunto tomado à história, isto é, aos últimos momentos da vida do teatrólogo Antônio José da Silva, o Judeu, quando, em 1739, submetido a segundo processo, foi queimado vivo em Lisboa, por ordem da Inquisição. Naturalmente – e esta é a única explicação realizável – a peça é pelo autor considerada de assunto nacional pelo fato daquele malgrado comediógrafo, hoje considerado um autêntico escritor português, haver nascido no Brasil. Mas, na época romântica, sobretudo nesses momentos iniciais em que se situa a ação renovadora de Magalhães, não se levava ainda em consideração um rígido critério de nacionalidade literária e o que prevalecia era o propósito patriótico de ressaltar valores e tradições, descobrir uma passado literário eu possibilitasse historicamente a valorização de nossa
 vida intelectual e artística.  
     É preciso salientar o fato de Magalhães, que se propôs a realização da reforma romântica de nossa literatura, escrever uma tragédia em que prevalecem os princípios da poética clássica. Contudo, de acordo com o que já ficou dito a propósito de sua obra poética, tal atitude se justifica em virtude do fundamento neoclássico e do espírito religioso da formação do escritor. Ao prefaciar a tragédia citada, ele declararia não seguir nem o “rigor” dos clássicos nem o “desalinho” dos românticos, reconhecendo o direito de fazer o que entendia e o que podia. Na verdade, manteve-se predominantemente clássico, ao mesmo tempo dominado por ideias de Victor Cousin, a quem cita, ao prefaciar agora a sua segunda tragédia – Olgiato – representada em 1839 e escrita nos mesmos moldes clássicos da anterior. Apresentando como ação um episódio da história italiana, propícia, como na tragédia Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, à crítica dos abusos da tirania e às reflexões moralistas, nela Magalhães endossa a opinião do pensador francês, reafirmando que o fim da arte é o belo moral e a sua liberdade reside apenas nos meios de exprimi-lo. Daí porque renega o que considera verdadeiros “horrores” do estilo romântico, caracteres monstruosos, paixões desenfreadas, amores licenciosos. E ainda que faça concessões ao teatro do romantismo, que diz conhecer suficientemente, confessa preferir Alfieri e Corneille. Em todo caso, com ambas as tragédias que hoje nos parecem desfiguradas, aqui reconhecidas apenas pelo seu valor histórico-literário, iniciou e agitou um dos aspectos  mais importantes de nossa vida literária a partir da renovação romântica.
     À parte a obra em prosa de Gonçalves de Magalhães, cujo maior interesse, no nosso caso, reside no já ressaltado “Discurso Sobre a História da Literatura do Brasil” e na novela Amância, fraca, inconsistente, merecedora de referência apenas por ser uma das primeiras tentativas de autores nacionais no gênero ficção, somos levados, finalmente, considerada a extensão e variedade do que ele escreveu, a reafirmar os seus propósitos de definições críticas em prefácios e ensaios, além da obra de criação propriamente dita e de sua ação pessoal junto a escritores e artistas da época, entre 1833 e 1856, com o intuito declarado de promover a reforma romântica e nacionalista da literatura brasileira. É nestes termos que a sua obra, hoje quase inteiramente indiferente à nossa sensibilidade e até mesmo à nossa curiosidade humana, deve ser estudada e valorizada, porque sem dúvida é inegável a sua importância, o seu significado histórico, e sua função realmente renovadora  ou reformadora da literatura brasileira. Desde que se decidiu pela carreira literária, ainda estudante do Colégio Médico-Cirúrgico do Rio de Janeiro, que Gonçalves de Magalhães, antes de se dar à exigência de uma legítima vocação literária e à preferência por determinada forma de expressão, sentiu um impulso patriótico de contribuir para o engrandecimento geral de seu país. A sua formação mais literária, neoclássica, do que científica, enriquecida e também atenuada nas suas preocupações formalistas pelos estudos de filosofia e pelo conhecimento do romantismo europeu, além de estimulada pelo ardor patriótico, levou-o à realização de uma obra variada, na poesia lírica, épica e dramática, na ficção, no ensaio críticom nos estudos históricos e filosóficos, denotando em tudo a preocupação da reforma ou da renovação. Literariamente considerada, é preciso repisar no fato de que a sua obra nunca se desprendeu totalmente das influências neoclássicas de formação básica que o escritor recebeu, mas chegou a ser inteiramente romântica. Se apreciado principalmente como escritor romântico, a partir da publicação dos Suspiros Poéticos e Saudades (1836), logo verificamos que toda a indisciplina e o sentido de aventura criadora tão peculiares desse estilo, são controlados, por um lado pela formação religiosa de Gonçalves de Magalhães e por outra pelas reminiscências arcádicas que nunca o abandonaram, o que nos faz lembrar, salvo o aspecto religioso, a posição e o papel de Almeida Garrett na literatura portuguesa, escritor de quem ele recebeu acentuadas influências. Mas vale ser romântico por uma intenção criticamente definida, notadamente com propósitos reformadores. E é este o caso do autor aqui apresentado.  

Fonte bibliográfica: 
Gonçalves de Magalhães - trechos escolhidos. Por José Aderaldo Castello. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Escritor Silva Alvarenga - contexto histórico e estudo crítico


Baseado em texto de Antônio Houaiss

Contexto histórico

     A partir da segunda metade do século XVII, quando terminam as lutas contra os holandeses, as condições sociais e políticas do Brasil colonial principiavam a alterar-se, pois os interesses locais ou regionais começavam a colidir com os interesses metropolitanos (ou seja, de Portugal). A exportação do açúcar aumentava, o fisco passou a receber grandes somas, o que se avolumou com a exploração do ouro. Houve então uma fiscalização redobrada e opressiva da Metrópole sobre a colônia.
     Aumentam as restrições ao comércio com navios estrangeiros e criam-se companhias lusitanas de comércio inspiradas nas congêneres holandesas.
     No século XVIII, esse estado de coisas piora. Suspende-se o direito de ir e vir em áreas de minas; investigações de domicílios; fechamento de estradas; vedam-se plantios, artesanato, indústrias de consumo local, aumentando a dependência da colônia em relação ao comércio das companhias. Ao lado dos senhores fundiários, surge uma rica burguesia comerciante, burguesia essa que era predominantemente portuguesa. Com a queda do valor das mercadorias agrícolas, surge hostilidade entre os senhores de terras e os comerciantes. Com isso, surgem lutas locais, como a Guerra dos Mascates, no início do século XVIII, depois culminando na Inconfidência Mineira.
     A “inteligência” do Brasil colonial foi representada por ínfima minoria da população, que era dependente de formação cultural portuguesa, quando superior, feita em Coimbra. Na segunda metade do século XVIII passam a ter contato com iluministas. Assim, a filosofia francesa chega a essas pessoas. Bibliotecas particulares da colônia devassadas pela justiça de então evidenciaram tal influência. Esse movimento ocorreu em Minas Gerais, para onde afluiu mão de obra, administração, burocracia, governança e letras, a partir da mineração de ouro e diamantes. Surge daí a chamada “escola mineira”. Por sua conjuntura histórica ela é, do ponto de vista literário, contraditória.
     De um lado herda a ideologia absolutista, supranacional, cosmopolita, da consolidação das nacionalidades europeias a partir do Renascimento, em torno de dinastias reais interpenetradas, que se mantinha a partir de classes aristocratas. Essa ideologia supera o pensamento medieval, com noções da Antiguidade Clássica; daí o Classicismo. Na periodização desse Classicismo, alguns estudiosos vêm três fases: o Renascimento, nos séculos XV e XVI; o Barroco, nos séculos XVI e XVII; o Neoclassicismo, nos séculos XVII e XVIII.
     A outra linha vem dos primeiros impactos de uma nova ideologia, liberalista, nacionalista, advinda da ascensão de novas forças sociais do cenário europeu, com tendências a se irradiarem pelo mundo.
     A literatura da “escola mineira” tem as duas tendências, de forma um tanto retardatária. Nas academias e sociedades da literatura brasileira, ou da “escola mineira” se refletem as duas linhas.
     A escola mineira é representada pelos poetas Frei José de Santa Rita Durão, Claudio Manuel da Costa, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga e Silva Alvarenga.

Estudo Crítico

     Pelos dados biográficos de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, depreende-se que sua vida fluiu das duas tendências ideológicas. Como poeta, entretanto, ele foi seguidor da tradição, inclusive quando faz uso de sátiras, que refletiam pessoas e o momento presente, bem como revelavam um homem voltado para o futuro, preocupado com as inovações do liberalismo em suas diversas manifestações, interessado em questões de renovação da mentalidade intelectual e aos problemas de seu meio. No entanto, sua poesia lírica, consubstanciada em Glaura, é um esforço de subordinação a formas consagradas, num preciosismo de quem procura obter alguma coisa de algo já esgotado e decadente.
     Por outro lado, certa espontaneidade em suas poesias surpreende. Para isso, pode ter contribuído o fato de Glaura não ser personagem imaginária, mas alguém que mereceu o amor de Silva Alvarenga.
     Além disso, encantado pela natureza de seu Brasil, tendeu a reduzir tendências helenizantes aos nomes de algumas entidades míticas gregas, em contrapartida a nomes de frutos e árvores dos trópicos, fundindo suas descrições a seus estados íntimos, no que alguns viram um precursor do Romantismo.
     Seu contemporâneo Tomás Antônio Gonzaga teve lirismo mais atuante por múltiplas razões, de modo que se tornou um dos poetas mais lidos do Brasil. Já Silva Alvarenga teve que se conter diante da possibilidade de censura, já que a literatura de então não comportava um mulato a cantar seus amores.
     Todas as peças líricas de sua Glaura são em número de cinquenta e nove rondós e cinquenta e sete madrigais.
     O rondó, forma poética medieval francesa, tem sua notabilidade com Guillaume de Machaut, Eustache Deschamps, Charles d’Orléans, devendo, originalmente, ser destinado ao canto e consistindo de três estrofes, com um total de doze e quatorze versos, com duas rimas recorrentes. Variando o número de versos e o esquema das rimas, o verdadeiro apoio fonético que em breve o caracterizaria, passou a ser a repetição do primeiro verso ao fim da segunda estrofe e ao fim da terceira estrofe, isto é, do rondó. Variação subsequente, que se pode chamar rondel, consistiu em repetir, em número maior de versos, o primeiro verso pela altura do oitavo ou de um dos seguintes versos e no fim do poema.
     Os rondós de Silva Alvarenga representam um fim de evolução da forma, com estrutura sensivelmente diferente. Consistem, quase todos, em quatro grupos de três quadras, sendo repetida a primeira quadra, em forma de estribilho, no início de cada grupo, assim como no fim do poema – o que totaliza, por conseguinte, treze quadras ou cinquenta e dois versos. Discrepam dessa estrutura estrófica o rondó XLIII, que consiste de sete grupos de três quadras, terminando cada grupo pela mesma quadra, em forma de estribilho; o rondó XLIV, com uma quadra inicial, seguida de um estribilho em forma de dístico, mais duas quadras, mais o dístico, alternativamente, até uma só quadra antefinal, seguida do dístico ao fim, num total de doze quadras, com o dístico repetido sete vezes; e os rondós XLV, XLVI e XLVII, que consistem de duas quadras, seguidas de dístico, mais duas quadras, seguidas de dístico.
     O verso, na maioria dos rondós, é heptassílabo, redondilho maior, salvo os do rondó XLIII, que são pentassílabos, redondilhos menores, e os do rondó XLIV, hexassílabos. Os heptassílabos são, quase sem discrepância, acentuados na terceira e sétima sílabas; os pentassílabos, na segunda e quinta; os hexassílabos, na segunda e sexta.
     Os esquema de sílabas mais frequente de rondó é didaticamente figurado num grupo de três estrofes a seguir (do rondó XXIV):

Sobre o feno recostado (a)
Descansando (a’) afino a lira (b)
Que respira (b’) com ternura (c)
Na doçura (c’) do prazer (d).

Amo a simples Natureza: (e)
Busquem outros a vaidade (f)
Nos tumultos da cidade (f)
Na riqueza (e’) e no poder (d).

Desse pélago furioso (g)
Não me assustam os perigos, (h)
Nem dos ventos inimigos (h)
O raivoso (g’) combater (d).

     O madrigal, originalmente italiano, confunde-se com a silva espanhola, praticada em língua portuguesa, consistindo de uma pequena série de versos decassílabos e hexassílabos, em sequência qualquer, rimando entre si sem esquema prévio de rimas.


Fonte bibliográfica:
Silva Alvarenga – Poesia. Por Antônio Houaiss. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Corrêa. 2ª edição. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968. 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Poesia de Silva Alvarenga


A Luz do Sol

Rondó II

Luz do Sol, quanto és formosa,
Quem te goza não conhece;
Mas se desce a noite fria,
Principia a suspirar.

Quando puro se derrama
Vivo ardor no ameno prado,
Pelas brenhas foge o gado
Verde rama a procurar.

E se o Astro luminoso
Deixa tudo em sombra fusca,
Triste então o abrigo busca
Vagaroso a ruminar.

Luz do Sol, quanto és formosa,
Quem te goza não conhece;
Mas se desce a noite fria,
Principia a suspirar.

Lavrador , que aflito, e[1] velho
Sobre o campo endurecido,
Ver deseja submergido
O vermelho Sol no mar.

E se o úmido negrume
Tolda os Céus, e os vales banha,
Fita os olhos na montanha,
Onde o lume vê raiar.

Luz do Sol, quanto és formosa,
Quem te goza não conhece;
Mas se desce a noite fria,
Principia a suspirar.

Pela tarde mais ardente
O Pastor estima as grutas,
Onde penhas nunca enxutas
Vê contente a gotejar.

E se as trevas no horizonte
Desenrolam negro manto,
Com saudoso, e flébil canto
Faz o monte ressonar.

Luz do Sol, quanto és formosa,
Quem te goza não conhece;
Mas se desce a noite fria,
Principia a suspirar.

Assim Glaura[2], que inflamada
Perseguiu Aves ligeiras,
Quer à sombra das Mangueiras
Descansada respirar.


[1] Na pontuação do tempo, que Silva Alvarenga observa fielmente, o e como conectivo vocabular ou oracional sempre é antecedido de vírgula.
[2] Informa Antenor Nascentes, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, tomo II (nomes próprios), Rio de Janeiro, 1952, s. v. Glaura: “Originariamente, nome forjado pelo poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, para encobrir o da sua amada, que talvez se chamasse Laura, Laureana ou Clara...” Acrescentemos que é traço característico da poesia de todos os tempos, mas, sobretudo no Classicismo em geral, encobrir, nos poemas eróticos principalmente, o nome da mulher amada por meio de formas cognatas, derivadas, paronímicas, ou anagramas, exatos ou livres.

Fonte bibliográfica:
Silva Alvarenga - Poesia. Por Antônio Houaiss. 2ª Edição. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu de Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968. 




















sábado, 8 de outubro de 2016

Dados biográficos do escritor Silva Alvarenga


1749 – Nasce em Vila Rica, hoje Ouro Preto (havendo quem dissesse que em São João Del-Rei), na capitania de Minas Gerais, o mestiço, de ascendência humilde, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, sendo-lhe pai o músico Inácio da Silva Alvarenga.

1768 – Vem para o Rio de Janeiro, para estudos preparatórios.

1771 – Principia seus estudos superiores na Universidade de Coimbra, onde entra em relações com Basílio da Gama, de quem se faz grande amigo e em companhia de cujo irmão, o Padre Antônio Caetano de Vilas Boas, retornará ao Brasil.

1774 – Publica “O Desertor”, em Coimbra.

1776 – Forma-se em cânones[1], nemine discrepante[2] em todos os atos, na Universidade de Coimbra.

1777 – Parte de Lisboa para o Brasil, onde, chegado no mesmo ano, começa a exercer a advocacia.

1782 – Abre curso de poética e retórica, continuando a exercer a advocacia.

1786 – Reabre-se a Sociedade Científica, com o nome de Sociedade Literária; antes à Arcádia Ultramarina, com o nome arcádico de Alcindo Palmireno, Silva Alvarenga se filiara.

1788 – Toma parte em sessão da Sociedade Literária, do Rio de Janeiro, onde recita o poema didático “As Artes”.

1794 – Preso, acusado de conspirar contra o governo e a religião, como fundador e principal membro da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, é submetido a nove inquirições no curto espaço de dois meses e dez dias, passando dois anos e meio na cadeia.

1797 – É posto em liberdade, por ato de clemência de Dona Maria I.

1799 – Circula a primeira edição de “Glaura”, impressa em Lisboa, na Tipografia Nunesiana.

1801 – Circula, sem menção disso, a segunda edição de “Glaura”, impressa na mesma cidade e pela mesma tipografia.

1808 – Depois de longo recesso de recolhimento, decorrente do período passado na cadeia, retorna à colaboração em “O Patriota”, jornal de Manuel Ferreira de Araújo Guimarães.

1814 – 1º de novembro: Morre no Rio de Janeiro, deixando um único amigo sobrevivente dos infortúnios da prisão na pessoa de Mariano José Pereira da Fonseca, mais tarde Marquês de Maricá. “Silva Alvarenga era de alta estatura, de compleição forte e repleto sem ser obeso; seu semblante tinha alguma coisa de carregado a que dava ainda mais gravidade a sua cor parda, e a sua voz ressentia-se do sotaque brasileiro por nimiamente pausada, Era lhano e complacente no trato familiar; gozou sempre de reputação de honrado e passava pelo primeiro advogado de seu tempo, e como também instruído na matemática, na música, no grego e no latim, no francês, italiano, inglês e espanhol. Morreu solteiro e não deixou descendentes”.

Fonte bibliográfica: Silva Alvarenga – Poesia. Por Antônio Houaiss. 2ª Edição. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Corrêa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968.



[1] Direito
[2] Por unanimidade

sábado, 16 de julho de 2016

Por que a mídia falada (rádio, tv, internet) não usa mais pronomes oblíquos?


     No rádio, na televisão, na internet é cada vez mais raro ouvir-se pronomes pessoais do caso oblíquo. Assim ouvimos, por exemplo, “pegar ele” e não “pegá-lo”, ou “levar ela” e não “levá-la”, e assim por diante. Com isso, a tendência é diminuir a complexidade da língua portuguesa e atrofiar os circuitos cerebrais envolvidos com linguagem verbal.
     A norma culta da língua portuguesa foi estabelecida com o passar do tempo por razões de lógica, de estética, de correção, de erudição, de conhecimento, de tradição, etc. Todos esses fatores implicam na complexidade do pensamento humano, do cérebro humano e sua capacidade de aprimorar, de detalhar, de se desenvolver, e o ser humano de maravilhar-se.
     Agora grassam reducionismos tais, de modo que quando uma autoridade pública usa uma “mesóclise” todos ficam muito admirados e se perguntam como lhe teria ocorrido tão difícil construção de palavras...  
     Admiremo-nos então do uso de pronomes oblíquos, das próclises, mesóclises e ênclises outrora comuns, agora rebuscadas. 

domingo, 3 de julho de 2016

Poesia de Augusto dos Anjos


A Ideia

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!


Debaixo do Tamarindo

No tempo do meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
Da minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!


Fonte bibliográfica: Augusto dos Anjos – poesia. Por Antonio Houaiss. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968. 


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Dados biográficos do escritor Augusto dos Anjos



1884 – 20 de abril: Nasce no Engenho do Pau-d’Arco, perto da Vila do Espírito Santo, Estado da Paraíba, Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos. Foram seus pais o advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, a Sinhá-Mocinha, os quais tiveram vários outros filhos. Depoimento do poeta refere que o pai morreu de paralisia geral e que a mãe era excessivamente nervosa – fórmula eufêmica para designar-lhe mal psicopático maior.

1885 – 27 de fevereiro: É batizado na capela do Engenho Bom-Fim, da vila do Espírito Santo.

1900 – Inicia os estudos de humanidade no Liceu Paraibano, onde enceta seu convívio com o amigo de vida em fora Órris Soares.

1901 – Aparecem suas primeiras composições poéticas como colaboração ao jornal “O Comércio”, da cidade de Paraíba (futura João Pessoa), capital do seu Estado natal.

1903 – Ingressa na Faculdade de Direito do Recife.

1907 – Bacharela-se em Direito, na Faculdade do Recife, tendo como colegas, dentre outros, a Gilberto Amado e Órris Soares.

1907 e 1908 – Anuncia pelos jornais da Paraíba que dá aulas particulares de Humanidades, o que deve constituir o seu ganha-pão regular.

1908 – É nomeado professor interino de Literatura do Liceu Paraibano.

1909 – 13 de maio: Pronuncia uma conferência sobre o instituto da escravidão, no Teatro Santa Rosa, ante o Governador do Estado. É uma das poucas peças suas em prosa.  

1910 – 4 de julho: Casa com D. Ester Fialho, sua conterrânea, de quem haverá, vivos e sobreviventes, dois filhos. Nesse mesmo ano, desavém-se com o Governador do Estado, João Machado, o que acarreta seu afastamento do Liceu Paraibano. – Carta sua datada de 18 de outubro, comunica a uma irmã que chegou com a mulher ao Rio de Janeiro e reside na Avenida Central. No Rio irá morar em seis diferentes casas, sucessivamente, durante os dois anos em que permanecerá na Capital do País.

1911 – 2 de fevereiro: Perde, nascido prematuro, o primeiro filho. Nesse mesmo ano, é nomeado professor interino de Geografia da Escola Normal. E o é igualmente do Internato do Colégio Pedro II, em substituição de João Coelho Lisboa, político paraibano que muito o assistiu nesse período.

1912 – É lançado o volume “Eu”, de suas poesias, em edição particular, de cujas custas participa, além do poeta, seu irmão Odilon. Dedicatória num exemplar à sua irmã D. Iaiá é de 12 de junho. Nascimento de sua filha Glória.

1913 – Nascimento de seu filho Guilherme.

1914 – 1 de julho: Nomeado diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, de Leopoldina, Estado de Minas Gerais. A 22 do mesmo mês e ano chega a essa cidade mineira e a 25 assume a direção do grupo. Aos 31 de outubro do mesmo ano, é acometido de forte gripe, que se alonga por 12 dias, ao cabo dos quais, no dia 12 de novembro, morre.

1920 – Aparecem, na Paraíba, “Eu e Outras Poesias”, seja o volume de poesia publicado em vida pelo próprio poeta, acrescido de outras, coligidas por Órris Soares, que prepara e prefacia a edição.

1928 – Ainda por interferência de Órris Soares, a Livraria Castilho, do Rio, edita a 3ª edição. Sem data, posteriormente, a Companhia Editora Nacional, de São Paulo, edita o que chama de 4ª edição. Nesta altura o livro já está pela 26ª edição, sendo editor Bedeschi, do Rio de Janeiro.

Fonte bibliográfica: Augusto dos Anjos – Poesia. Por Antonio Houaiss. 2ª edição. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1968.  

domingo, 26 de junho de 2016

Poesia de Gonçalves de Magalhães

Invocação ao Anjo da Poesia

A voz de minha alma

Quando da noite o véu caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um sutil vapor no aéreo espaço;
Uma angélica voz misteriosa
Em torno de mim soa,
Como o som de uma flauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas reboa.

Donde vem esta voz? – Não é de virgem,
Que ao prazo dado o bem-amado aguarda,
E mavioso canto ao céu envia:
Esta voz tem mais grata melodia!
Donde vem esta voz? – Não é dos Anjos,
Que leves no ar adejam,
E com hinos alegres festejam,
Quando uma alma inocente
Deixa do barro a habitação escura,
E na sidérea altura,
Como um astro fulgente
Penetra de Adonai o aposento;
A voz que escuto tem mais triste acento.

Como d’ara turícrema se exalça
Nuvem de grato aroma que a circunda,
E lenta vai subindo
Em faixas ondeantes,
Nos ares espargindo
Partículas fragrantes,
E sobe, e sobe, até no céu perder-se,
Tal de mim esta voz parece erguer-se.

Sim, esta voz do peito meu se exala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
É minha alma que geme e que murmura,
Como um órgão no templo solitário;
Minha alma, que o infinito só procura,
E em suspiros de amor a seu Deus se ala.

Como surdo até hoje
Fui eu tão angélica harmonia?
Porventura minha alma muda esteve?
Ou foram porventura meus ouvidos
Até hoje rebeldes?
Perdoa-me, oh meu Deus, eu não sabia!
Eram Anjos do céu que me inspiravam,
E outras vozes meus lábios modulavam.

Castas Virgens da Grécia,
Que os sacros bosques habitais do Pindo!
Oh Numes tão fagueiros,
Que o berço me embalastes
Com risos lisonjeiros,
Assaz a infância minha fascinastes.
Guardai os louros vossos,
Guardai-os, sim, qu’eu hoje os renuncio.

Adeus, ficções de Homero!
Deixai, deixai minha alma
Em seus novos delírios engolfar-se.
Sonhar co’as terras do seu pátrio Rio.
Só de suspiros coroar-me quero,
De saudades, de ramos de cipreste;
Só quero suspirar, gemer só quero.
E um cântico formar co’os meus suspiros.
Assim pela aura matinal vibrado
O Anemocórdio, ao ramo pendurado,
Em cada corda geme,
E a selva peja de harmonia estreme.

Já nova Musa
Meu canto inspira;
Não mais empunho
Profana Lira.

Minha alma imita
A Natureza;
Quem vencer pode
Sua beleza?

De dia, e noite
Louva o Senhor;
Canta os prodígios
Do Criador.

Tu não escutas
Essa harmonia,
Que ao trono excelso
A terra envia?

Tu não reparas
Como o mar geme,
Como entre as folhas
O vento freme?

Como a ave chora,
A ovelha muge,
O trovão brama,
O leão ruge?

Cada qual canta
Ao seu teor;
Mas louvam todos
O seu autor.

Da grande orquestra
Aumente o brilho
O canto humano,
Da razão filho.

Minha alma aprende,
Louva a teu Deus;
Os teus suspiros
Envia aos céus.

Oh como é belo o céu azul sem nódoa!
Que puro amor nos corações ateia;
Como a pupila de engraçada virgem,
Que serena nos olha, e nos enleia.

Mas que imagem sublime a mim se antolha,
Com largas asas brancas como o cisne,
E roçagante toga, que se ondeia,
Como flocos de neve alabastrina!

Uma harpa de ouro em suas mãos sustenta!
Oh que voz suavíssima e divina!
Oh que voz, que as paixões n’alma adormenta!

Vem, oh Gênio do céu filho!
Vem, oh Anjo d’harmonia!
Cuja voz é mais suave,
Mais fragrante que a ambrosia!

Teu rosto vence em beleza
Ao sol no zênite luzente;
Teu largo manto é mais puro
Do que a lua alvinitente.

As asas que te suspendem,
São mais ligeiras que o vento;
São mais terríveis que os raios,
Que giram no firmamento.

Tua fronte não se adorna
Com flores que o prado gera;
Sobre teus cabelos de ouro
Brilha de fogo uma esfera.

Teus pés a terra não tocam,
A teus pés a terra é dura;
Sobre aromas te equilibras,
Recendentes de frescura.

O sol, a lua, as estrelas
São fanais que te iluminam,
São corpos a quem dás vida,
E ante teus passos se inclinam.

Os acordes de tua harpa
Todos os astros ecoam;
Reanima-se o Universo,
Quando as suas cordas soam.

Vem, oh Anjo, ungir meus lábios;
Traze-me uma harpa dos céus;
Ao som dela subir quero
Meus suspiros até Deus!

Quando no Oriente roxear a aurora,
Como um purpúreo, auribordado manto,
Que ao Rei da luz o pavilhão decora,
E as saltitantes aves pelos ramos
Da madrugada o hino gorjearem,
Tua voz oh minha alma, une a seu canto,
E as graças do Senhor cantando exora.

Quando a noite envolver a Natureza
Em tenebroso crepe; e sobre a terra
As asas desdobrar morno silêncio;
Nessas plácidas horas de repouso,
Em que tudo descansa, exceto o Oceano,
Que arqueja, e espuma em solitária praia,
Vizinhos ermos com seus ais pejando,
Como um preso que geme, e que debalde
Da prisão contra os muros se arremessa;
Tu também, como a lua, vigilante
Nessas propícias horas, oh minha alma,
Tua voz gemebunda exala, e une
A voz do Oceano, à voz d’ave noturna.

Enquanto estás sobre a terra,
Como no exílio o proscrito,
Canta como ele, que o canto
Refrigera o peito aflito.

Canta, que os Anjos se alegram,
E os Anjos à terra descem,
A escutar esses hinos,
Que para Deus almas tecem.

Canta a todos os momentos,
Canta co’a noite, e co’o dia;
E o teu derradeiro expiro
Seja ainda uma harmonia.

Fonte bibliográfica:
De Suspiros Poéticos e Saudades, edição de Sousa da Silveira, págs. 17-27, conforme reproduzido em “Gonçalves de Magalhães – trechos escolhidos”. Por José Aderaldo Castello. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa, Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.