sexta-feira, 26 de março de 2021

Escritor Raul de Leoni – Contexto Histórico e Estudo Crítico

 

A partir de texto de Luiz Santa Cruz

 

Contexto histórico

     O “amorável fim-de-século” e a mão menos decantada “belle époque”, o crepúsculo do século XIX e a aurora do século XX, apesar de suas supostas virtudes de bem-estar e a “indiferença burguesa”, não conseguiria fugir da sucessão de acontecimentos bélicos que pontua a história do Ocidente.

     Como quase todos os interregnos pacifistas o “Mil e Novecentos", apesar do lirismo de seus poetas, prosadores e mesmo filósofos, apenas cozinhava, nos porões da História, a futura Primeira Grande Guerra Mundial, nas duas décadas que antecederiam o ano trágico de 1914.

     Em 1870, impondo-se vitoriosamente nos campos de Sédan, a Alemanha surgia como potência militar de primeira ordem, reclamando a sua participação na hegemonia da Europa e do mundo Ocidental. Fez despertar a antiga cultura germânica para a ação de um povo que até então se dedicava mais para as coisas da contemplação.

15 de novembro de 1889 – É proclamada a República no Brasil.

O Reinado de D. Pedro II durou de 1840 a 1889 e conseguiu do lado do Atlântico, na América do Sul, uma unidade territorial que tinha sido um sonho de Simon Bolivar do lado do Pacífico. Uma certa forma de guerra civil que tinha sido um espantalho do trono, rondava ainda a nascente democracia constitucional brasileira.

Fevereiro de 1891 – promulgada a primeira Constituição Republicana.

1892 a 1894 – O país é dividido por duas facções: operações militares no sul e navais na baía da Guanabara, apesar do pulso do “Marechal de Ferro”, Floriano Peixoto, ou até mesmo pela tentativa de prorrogação do seu mandato.

1894 – O Partido Republicano Paulista alia-se ao Partido Republicano Mineiro e elege Prudente de Morais à Presidência da República. Inaugura-se uma série de governos civis, numa República surgida de um pronunciamento militar, no Campo de Santana.

1898 – Outro paulista, na mesma “aliança café-com-leite” entre São Paulo e Minas Gerais, dirige-se ao Palácio do Catete e inicia o saneamento financeiro da República. É o presidente Campos Salles.

1902 – Pela terceira vez consecutiva, um paulista, Rodrigues Alves, assume a Presidência. Em seu governo, o médico Miguel Couto inicia o saneamento da Capital Federal e o engenheiro Paulo de Frontin começa uma série de grandes obras públicas.

1906 – Afonso Pena vem de Minas Gerais para interromper a série de presidentes paulistas. Graças à ação de seu ministro da Viação (transportes), Miguel Calmon, construiu em quatro anos mais estradas de ferro do que em meio século. É chamada de toda uma nova era de “bandeirismo”. Nessa linha, a Missão Rondon atingiu o mais longínquo interior do território brasileiro, nos rincões da Amazônia, demarcando as fronteiras, até então existentes apenas em tratados internacionais, graças ao trabalho diplomático do Barão do Rio Branco.

1908 – Ocorreu a Grande Exposição do Rio de Janeiro, atraindo governantes e visitantes ilustres da Europa e de quase toda a América. Logo após a República inicia seu primeiro grande ciclo de imigração e colonização, trazendo europeus e asiáticos para seus campos de produção e para as fábricas de sua nascente indústria.

1909 – Com o apoio de Afonso Pena, Rui Barbosa lança os primeiros alicerces de sua campanha civilista, focada na consciência democrática nacional, como candidato à Presidência da República. Porém, Hermes da Fonseca venceu. Afonso Pena teria morrido de infarto do miocárdio em 1909, a partir da apresentação dessa candidatura.

1909 – Nilo Peçanha, vice-presidente da República, assume o governo no lugar de Afonso Pena. Nomeia o magistrado Carolino de Leoni Ramos, pai de Raul de Leoni, como Chefe de Polícia do Distrito Federal.

1910 – Nova revolta da esquadra na baía da Guanabara.

1912 – Motins em Pernambuco e na Bahia.

1913 – “Guerra do Cariri”.

1914 – Restaurada a aliança “café-com-leite”. Wenceslau Brás assume a Presidência.  

1912 a 1913 – Período da Guerra Balcânica, entre a Áustria e a Sérvia, seguindo-se os primeiros conflitos do norte da África, com a consequente tensão entre a Alemanha e a França.

1914 – Atentado contra o arquiduque da Áustria, Francisco Fernando e sua esposa, em Sarajevo, imputado capciosamente à Sérvia. Foi o rastilho de pólvora que estenderia o conflito a toda a Europa e, a seguir, Estados Unidos e Brasil. Custou ao Ocidente a primeira conflagração universal e o pesado ônus de 10 milhões de mortos.

1916 – Nilo Peçanha, governador do Estado do Rio de Janeiro, é chamado para substituir Lauro Muller no Ministério das Relações Exteriores, demissionário por ser neutralista e o Brasil deveria declarar guerra à Alemanha, após o torpedeamento, em águas brasileiras, de navios brasileiros, pela esquadra germânica.

1917 – A Revolução Soviética vem abalar mais os alicerces do mundo Ocidental, do que qualquer outra sublevação de povos, de modo que alguns até disseram que a Revolução Francesa “não passava de uma revolução romântica”.

1918 – Num vagão de estrada de ferro, nos bosques de Compiégne, foi assinado o armistício entre as nações aliadas e a Alemanha, aparentemente vencida, assinalando-se apenas outro interregno ilusório da crônica beligerante do mundo ocidental.

1918 – Epitácio Pessoa, o primeiro presidente civil do Norte/Nordeste, assume o poder, nomeando um civil, Pandiá Calógeras, para a pasta da Guerra, construindo-se quartéis por todo o país, o que não impediu o descontentamento militar e nem o evento dos 18 do Forte de Copacabana.

1920 – Adolph Hitler reforma o Partido Nacional Socialista alemão, denunciando a “paz cartaginesa” de Versalhes e iniciando sua aventura totalitária.

11 a 18 de fevereiro de 1922 – Semana de Arte Moderna em São Paulo.

7 de setembro de 1922 – Inaugura-se no Rio de Janeiro a Grande Exposição Internacional, comemorativa do Centenário da Independência do Brasil.

1922 – O mineiro Artur Bernardes, com a terceira restauração da “aliança café-com-leite”, assume a Presidência da República. Há descontentamento militar e popular, tentativa de pacificação do Rio Grande do Sul (1923), a Revolução Paulista (1924) e a Coluna Prestes (1925-27).

20 de outubro de 1922 – A partir do ponto de partida do Manifesto Futurista, de Marinetti, à primeira vista inconsequente, surge movimento literário lançado em 1919, “os camisas pretas de Benito Mussolini, com seus “fácios de combate”. Foram chamados por Vitório Emanuel ao poder, na Itália unificada, lançando-se outra aventura totalitária, que acabaria por comprometer a paz europeia num aliança ítalo-germânica.

1926 – Artur Bernardes reforma a Constituição, fortalecendo o poder central. Nesse ano, morre em Itaipava, Estado do Rio, Raul de Leoni.

 

Estudo Crítico da obra de Raul de Leoni

     Todos esses acontecimentos históricos não influíram na poesia, mas sim na prosa de Raul de Leoni.

     Como poeta, ele parece ser alguém alheio aos acontecimentos de seu tempo, onde pode ser visto mais o poeta da “belle époque”. Já como prosador foi um dos mais participantes da literatura brasileira nos movimentos dessa época.

     Em 1919 lançou a primeira obra poética “Ode a um poeta morto”.

     Em 1922, lança sua obra poética fundamental e clássica “Luz Mediterrânea”, que praticamente é considerado seu único livro de poemas.

     Luiz Santa Cruz, nos anos sessenta do século XX, dizia que a crítica ainda não tinha tomado conhecimento ao grande prosador e também quanto a sua obra poética. Em “Luz Mediterrânea” há unanimidade da crítica em elogios. Já em “Ode a um poeta morto” é colocada pelos diferentes críticos em diferentes escolas. Alguns o consideram parnasiano, outros como simbolista, ainda outros como neoparnasiano e outros em grupo independente.

     Contudo, todos consideram haver apuro e bom gosto literário quase impecável, entre o antigo e o moderno, o que lhe assegura duração ilimitada. Entre prosa e poesia há quem o considere um filósofo, ou pensador. Há ainda que o considere como um pensador cristão de linha florentina que se permite certas liberdades de pensamento. Já na obra poética há quem o veja apenas como “poeta” e basta.

     A viagem que ele fez à Europa aos 18 anos lhe marcou profundamente. Houve um descobrimento poético da Europa e da sua luminosidade mediterrânea que abriria os olhos e aguçaria a percepção de Raul de Leoni, para a tomada de consciência do fenômeno poético e como realidade transcendente das coisas e como forma de conhecimento delas e do mundo.

     O seu primeiro poema “Ode a um poeta morto”, dedicado à memória de Olavo Bilac, não deve ser considerado apenas como a história do itinerário poético e parnasiano de Bilac. É, acima de tudo, a primeira grande tentativa de Raul de Leoni para a formulação da sua própria Arte Poética.

     Não era apenas Bilac, mas sobretudo o próprio Leoni quem captava a “mais realidade das coisas”, cuja revelação pela palavra é o grande ofício do poeta e da poesia.

     Conforme Luiz Santa Cruz, Raul de Leoni é o poeta brasileiro que mais se aparenta a Paul Valéry, numa poesia da inteligibilidade, em oposição aos poetas da linha da intuição e da vontade, onde preferem a Arte Poética, o artesanato da contenção verbal, preferindo o sentimento universal ao particular.  

     Ao atribuir a Olavo Bilac o ofício de “semeador de harmonia e de beleza”, graças a suas viagens poéticas, identificando-se quase todas as experiências de poesia anteriores, de toda a história da poesia universal, o tema central da “Ode a um poeta morto”. Raul de Leoni diz sobre ele:

Tua alma foi um cântico diverso,

Cheio da eterna música das coisas...

     Essa função do poeta, de captar “a música” ou a “mais realidade das coisas”, Raul de Leoni, daí por diante, vai tentar aprofundar sempre mais em sua Arte Poética, amadurecendo progressivamente.

     E já não é apenas Bilac que, a seguir, em verso mais adiante, da mesma Ode, vai dizer que “Toda a emoção, que anda nas coisas, fala” na mesma poesia. Nem seria apenas missão de Bilac, mas de todo poeta por vocação que:

Faz da vida uma obra prima

De sensibilidade e de bom gosto.

     O poeta a respeito do qual seria injusto julgar apenas pelo pessimismo filosófico que transparece em tanto de seus poemas, com uma “atitude fim de século, de serenidade epicurista e dúvida amável”. É preciso reconhecer também que foi, quanto à Arte Poética, um dos nossos poetas mais revolucionários de todos os tempos. Bilac foi o primeiro poeta brasileiro a conduzir, sozinho, a poesia brasileira a participar na grande revolução poética da idade moderna, aquela graça que tomaria conhecimento de si mesma, como modalidade de conhecimento emocional e afetivo e como experiência emocional e afetiva dos seres e das coisas.

     A “Ode a um poeta morto” foi ainda influenciada demais pelas conotações da Arte Poética parnasiana. A ela sobreviria o poema “Pórtico”, abrindo na primeira edição, organizada pelo poeta, o livro da “Luz Mediterrânea”. A sua Arte Poética aí começa a se desvencilhar das influências do Parnaso brasileiro.

     Clarifica-se a sua consciência da “mais realidade poética da vida”, pelo conhecimento emocional e afetivo das coisas:

Há no meu ser crepúsculos e auroras.

     E passa a conceber no poema “Pórtico” sua experiência de poesia como uma cidade cheia de luz mediterrânea, que lhe deslumbrou os olhos adolescentes, em sua viagem à Europa. A sua cidade da poesia:

Fica na dobra azul de um golfo pensativo.

........................................................

Cidade de harmonias deliciosas

Em que, sorrindo à ronda dos destinos,

Os homens são humanos e divinos

E as mulheres são frescas como as rosas...  

    

     Os poemas que compõem a segunda parte de seu livro “Luz Mediterrânea”, que ele deu o título de “História de uma alma”, conta a história de sua percepção da poesia como vivência e experiência:

Eu era uma alma fácil e macia,

Claro e sereno espelho matinal

Que a paisagem das coisas refletia

Com a lucidez cantante do cristal.

     No terceiro soneto, “Confusão”, essa experiência poética “vivencializável” aparece enriquecida pela tomada de consciência da solidariedade entre o poeta e as demais criaturas humanas, para além da “mais realidade poética das coisas”:

Parece que estão, assim,

Todas as almas do Mundo,

Lutando dentro de mim...  

     No soneto “Artista”, essa consciência poética avança mais alguns passos em sua lenta maturação de pensamento:

Por um destino acima do teu Ser,

Tens que buscar nas coisas inconscientes

Um sentido harmonioso, o alto prazer

Que se esconde entre as formas aparentes.

     Enfim, o poeta da “Luz Mediterrânea” tomava consciência dos íntimos recônditos do seu ser, dos abismo profundos do inconsciente de poesia, onde são armazenadas as vivências poéticas. Cabe ao poeta discernir a autenticidade dessas vivências de poesia, armazenadas no inconsciente que não pode ser confundida com instintos, como no dizer de Novalis: “possuímos um eu mais profundo e inesgotável do que o das paixões e da razão pura”.

     Assim, a poesia de Raul de Leoni, por sua mensagem profunda da Arte Poética da modernidade, deve ser ao mesmo tempo vidência e vivência. Rainer-Maria Rilke disse: “Para escrever um único verso é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e muitas coisas. Pois os versos não são apenas sentimentos, como há quem o acredite (e haverá sempre bastante sentimento neles), mas são experiências”.

     É na obra de prosador de Raul de Leoni que se capta melhor sua evolução como pensador. Lamenta-se que seus textos esparsos por antigos jornais e revistas não tenham sido compilados. Ele foi um profundo ensaísta das circunstâncias, precursor do ensaio jornalístico moderno.

 

Fonte bibliográfica:

Raul de Leoni – textos escolhidos. Por Luiz Santa Cruz. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.

 

 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Poesia de Raul de Leoni

 

Felicidade


                I

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!

De infinitas imagens irradias

E, na dança da tua projeção,

Quanto mais cresces, mais te distancias...

 

A alma te vê à luz da posição

Em que fica entre as coisas e entre os dias:

És sombra e, refletindo-se, varias

Como todas as sombras, pelo chão...

 

O Homem não te atingiu na vida instável

Porque te embaraçou na filigrana

De um ideal metafísico e divino;

 

E te busca na selva impraticável,

Ó Bela Adormecida da alma humana!

Trevo de quatro folhas do Destino!...

 

              II

 

Basta saberes que és feliz, e então

Já o serás na verdade muito menos:

Na árvore amarga da meditação,

A sombra triste e os frutos têm venenos.

 

Se és feliz e o não sabes, tens na mão

O mais bem entre os mais bens terrenos

E chegaste à suprema aspiração,

Que deslumbra os filósofos serenos.

 

Felicidade... Sombra que só vejo,

Longe do Pensamento e do Desejo,

Surdinando harmonias e sorrindo.

 

Nessa tranquilidade distraída,

Que as almas simples sentem pela Vida,

Sem mesmo perceber que estão sentindo...


Fonte bibliográfica:

Raul de Leoni - textos escolhidos. Por Luiz Santa Cruz. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961. 

quinta-feira, 4 de março de 2021

Raul de Leoni – Dados biográficos


1895 – 30 de outubro: Raul de Leoni Ramos nasce em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, filho do magistrado Carolino de Leoni Ramos e de dona Augusta Villaboim Ramos.

1903 – A partir desse ano cursa o Primário e o Secundário no Colégio Abílio, na cidade do Rio de Janeiro.

1910 – 11 de setembro: aos 15 anos faz a primeira comunhão na capela do Colégio São Vicente, dos padres Premonstratenses, em Petrópolis, colégio no qual se encontra em regime interno.

1913 – 9 de abril: aos 18 anos parte para a Europa, onde visita Inglaterra, França, Itália, Espanha e Portugal.

1914 – De volta ao Rio de Janeiro inicia colaboração literária nas revistas “Fon-Fon” e “Para-Todos”, colaborando mais tarde em “O Jornal” (1919), no “Jornal do Commercio” e no Jornal do Brasil”.

1918 – 3 de março: Nilo Peçanha, Ministro das Relações Exteriores do governo Wenceslau Brás, nomeia Raul de Leoni para o cargo de Segundo Secretário da Legação do Brasil em Cuba. No entanto, não chegou a assumir e regressou para a Bahia.

1919 – Declinou de cargo semelhante na Legação do Brasil junto ao Vaticano. Foi eleito deputado na Assembleia Fluminense.

1919 – Publica o seu primeiro livro de poesias, “Ode a um poeta morto”, dedicado a Olavo Bilac.

1921 – 6 de abril: casa-se em Petrópolis com dona Ruth Soares Gouvêa, que havia conhecido três meses antes num baile do Itamarati.

1922 – Publica seu livro clássico “Luz Mediterrânea” e começa a colaborar no jornal “O Dia”, de Virgílio de Mello Franco e Azevedo Amaral.

1923 – Adoece dos pulmões, abandonando o convívio de parentes e amigos, indo para Correias e, a seguir, Itaipava, licenciando-se do cargo de inspetor na Companhia de Seguros em que trabalhava.

1926 – 21 de novembro: morre na “Vila Serena”, em Itaipava. Seu corpo foi conduzido para Petrópolis e é sepultado em um mausoléu. Seu nome é dado a um trecho da Rua Sete de Setembro.

 

Fonte bibliográfica:

Raul de Leoni – textos escolhidos. Por Luiz Santa Cruz. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.