terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Alcântara Machado – Estudo Crítico de sua Obra



A partir de texto de Francisco de Assis Barbosa

Contexto histórico

     Nos dez anos, ou um pouco mais, em que exerceu a sua atividade de escritor e jornalista, viveu António de Alcântara Machado o período preparatório da Revolução (ou Golpe segundo alguns) de 1930, a fase inicial da sua implantação e o chamado movimento constitucionalista, desde a Revolução Paulista de 1932 (também chamada de Guerra Paulista, ou de Revolução Constitucionalista) até a elaboração da primeira Constituição da República Nova (1934).
     Escritor modernista típico, embora não tivesse participado da famosa Semana de Arte Moderna, formou depois com os “rapazes” do grupo paulista, tornando-se uma das suas figuras mais representativas. A presença desses “rapazes” aproxima-os, de certo modo, dos “tenentes” dos dois 5 de julho, em 1922 e 1924. Aqueles queriam reformar a literatura; os outros a política. Os jovens escritores paulistas investiram assim contra uma literatura apegada aos padrões estilísticos estritamente lusitanos. Os tenentes pegavam em armas contra as oligarquias estaduais e as eleições feitas a bico de pena. Os rapazes gritavam: Abaixo a Revista da Língua Portuguesa. Os tenentes respondiam: “Salvemos o Brasil com o voto secreto”.
     O principal objetivo dos modernistas era destruir o convencionalismo literário, desmoralizar a inteligência empalhada, acabar com os medalhões da cultura. Ora, a cidadela a vencer estava precisamente na mão dos puristas gramaticais – proprietários da língua – que, de palmatória em punho, no alto da primeira página dos jornais do Rio e de São Paulo, exerciam a ditadura policial da literatura. Nessa fase, em que Olavo Bilac perpetrara o soneto em louvor da língua portuguesa, como que esterilizou por completo a inteligência brasileira. Nunca houve tanta gente que pretendesse ensinar a escrever corretamente o português. Apareceram dezenas de livros sobre a “arte de escrever”. Superabundavam os gramáticos. Escritores mesmo de verdade, quase nenhum. Talvez seja essa a razão porque, no excelente livro de Manuel Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa, predominem as citações de filólogos e gramáticos brasileiros a respeito de nugas do idioma, com a ausência quase que total de exemplos do estilo de escritores brasileiros. O sapato de ferro do convencionalismo gramatical impedia a literatura brasileira de caminhar para a frente.
     Tudo emperrava diante da gramática. Até o Código Civil! O Código Civil atravessou cinco governos, catorze anos de discussão em torno de questões de português. Do convite de Epitácio Pessoa, então ministro da Justiça, a Clóvis Bevilacqua, que é de janeiro de 1899, ainda no governo de Campos Salles, à chegada do projeto votado pela Câmara dos Deputados ao Senado, isto em 1902, quando Rui Barbosa escreveu o célebre parecer, até a sanção da lei pelo Presidente Venceslau Brás, em 1916, somariam, ao todo, dezessete anos. Apenas três anos para a elaboração do projeto pelo Poder Executivo, discussão e votação na Câmara. Catorze anos, para o debate dos erros de gramática, com uma caudalosa bibliografia, inclusive a longa e áspera polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro!
     Tais bizantinices talvez expliquem certas blagues do modernismo – a do verso de Manuel Bandeira: “Abaixo a Revista da Língua Portguêsaê” e a do livro de Sérgio Buarque de Holanda, intitulado (ficou só no título) Rui Barbosa nunca existiu...
     Era uma tática guerreira, essa dos modernistas, de agredir todos os tabus, já que o movimento se propunha a modificar, fosse por que preço fosse, a mentalidade vigente em matéria de cultura, “descoelhonetizando” ao mesmo tempo – o neologismo pertence também a Sérgio Buarque de Holanda – a literatura brasileira.
     Depois da morte de Machado de Assis, Coelho Neto tornara-se o escritor de maior prestígio no Brasil. Homem de inegável talento, legítimo profissional das letras, e por isso mesmo digno de todo o respeito, fora, no entanto, marcado pela mesma maldição que fizera a desgraça do Rei Midas. A pompa verbal e o brilho estilístico eram o seu ouro, transfigurando um honesto e duro labor em pura literatice. Observa-se ainda que todos os seus livros eram impressos e editados em Portugal, seguindo, portanto, a tradição lusófila retomada por Machado de Assis, estabelecidas as diferenças que separam os dois escritores.
     Creio que foi pensando em Coelho Neto – o mais típico representante do convencionalismo literário – que António de Alcântara Machado escreveu essa página divertida sobre o estilo do tempo, falando do presente (1927) como se já fosse coisa morta, e definitivamente enterrada: “O literato nunca chamava a coisa pelo nome. Nunca. Arranjava sempre um meio de se exprimir indiretamente. Com circunlóquios, imagens poéticas, figuras de retórica, metalepses, metáforas e outras bobagens complicadíssimas. Abusando. Ninguém morria: partia para os paramos ignotos. Mulher não era mulher. Qual o quê. Era flor, passarinho, anjo da guarda, doçura da vida, bálsamo de bondade, fada e diabo. Mulher é que não. Depois a mania do sinônimo difícil. A própria coisa não se reconhecia nele. Nem mesmo a palavra. Palavra. Tudo fora da vida, do momento, do ambiente. A preocupação de embelezar, de esconder, de colorir. Nada de pão, queijo, queijo. Não Senhor. Escrever assim não é vantagem. Mas pão epílogo tostado dos trigais dourados, queijo acompanhamento vacum da goiabada dulcífica, sim. E bonito. Disfarça bem a vulgaridade das coisas. Canta nos ouvidos. E é asnático, absolutamente asnático. Tem sobretudo essa qualidade”. E acrescentava, mais adiante, outra observação estupendamente exata, revestida de humor: “O literato não se contentava em exclamar: Como cheiram as magnólias! Não. As magnólias eram capazes de se ofender com tanta secura. E ele então acrescentava poeticamente: Flores de carne, seios de virgem. Pronto. As magnólias já não tinham direito de se queixar”.
     Página típica de escritor plenamente identificado com o movimento modernista. Falar contra a sintaxe lusa – no plano literário – correspondia a falar contra as eleições feitas a bico de pena – no plano político.

Estudo Crítico

     A segunda geração, que se seguiu à dos modernistas de São Paulo, na década de 1960 começou a proceder à revisão de valores da escola moderna e a traçar de modo sistemático a história literária do movimento (conforme texto de Francisco de Assis Barbosa escrito na década de 1960). Decorridos em torno de quarenta anos da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, passou a haver certa perspectiva para avaliar o movimento. Dos artigos e ensaios que apareceram nessa ocasião, assinados por escritores nascidos depois da Semana, ou pouco antes, o mais importante é o de Mário da Silva Brito, intitulado História do Modernismo Brasileiro, de que se tinha apenas o primeiro volume quando foi escrito o texto de Barbosa. O primeiro volume, “Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958) foi considerado um trabalho de fôlego e sério. Nele aparecem a exposição de Anita Malfatti (1917) como o primeiro sinal da arte nova no Brasil, ponto de vista que foi também defendido por Manuel Bandeira em sua História das Literaturas, na parte referente ao Brasil. O artigo de Monteiro Lobato, negando de modo absoluto os méritos da pintora, mais talvez do que a própria exposição, levantaria a polêmica entre “acadêmicos” e “modernistas”, criando-se assim o clima propício à convocação da Semana. A tudo isso Mário da Silva Brito chama com propriedade “estopim do modernismo”.
     Outro crítico dos anos 1960, José Aderaldo Castelo, lembra que muito antes já se havia iniciado o processo de renovação do pensamento brasileiro. “A data de 1902”, diz ele, “é a que nos parece, historicamente, o marco mais expressivo das manifestações iniciais ou precursoras desse movimento de revisão e renovação geral da cultura brasileira. Trata-se do ano da publicação de três obras de relevo – a História da Literatura Brasileira, 2ª edição, de Sílvio Romero, Os Sertões, de Euclides da Cunha, e o romance Canaã, de Graça Aranha, além da divulgação do verso libertado simbolista de Mário Pederneiras”.[1]
     Segundo Barbosa, como se vê, a matéria continua a flutuar em terreno polêmico. Daí ele prefere olhar o modernismo brasileiro como um movimento característico do pós-guerra. Certamente, antes e depois da Guerra de 1914-1918 houve sinais de insatisfação, a par de impulsos renovadores na vida intelectual brasileira. Nada, porém, que pudesse ser enquadrado na categoria de movimento, como o que eclodiu em São Paulo, sob a liderança dos dois Andrades, Mário e Oswald, interessando não apenas escritores, como também os músicos (Heitor Villa Lobos), pintores (Di Cavalcanti) e escultores (Victor Brecheret). Em todos eles, pelo menos no início, é patente a influência dos grupos de vanguarda que irromperam, especialmente na França e na Itália, em meio à convulsão social e política gerada pelas causas ou pelos efeitos da hecatombe – cubismo, dadaísmo, futurismo e tantos outros ismos –, sem deixar de considerar as novas manifestações de arte, como o cinema, principalmente depois do aparecimento de Charles Chaplin.
     Em 1926, o Congresso de Regionalistas do Nordeste, que iniciou o movimento regionalista e tradicionalista do Recife, com Gilberto Freyre à frente, continuaria de certo modo a Semana de Arte Moderna. Mas é evidente que o processo de renovação da cultura brasileira não parou aí, nem poderia ter parado, prosseguindo no seu caminho, em ritmo acelerado depois da Revolução de 1930, quando começa a se esboçar uma consciência universitária, e continuou assim até os anos 1960 em que Francisco de Assis Barbosa escreveu a crítica sobre a qual embasamos este texto, conforme suas próprias palavras. Dizia ele então que havia ainda “muita teia de aranha para limpar na inteligência brasileira”. O modernismo teria então se tornado coisa do passado e se cristalizado em um capítulo da nossa história literária.
     Ainda que não tivesse participado da Semana de Arte Moderna, António de Alcântara Machado foi um modernista típico. E toda a sua obra de ficcionista está como que marcada pelos cacoetes do movimento. Não teve tempo de libertar-se do “antropofagismo” – talvez a mais espetacular das batalhas dos tempos heroicos da guerra dos literatos paulistas –, mas a verdade é que, nos últimos contos que escreveu, “As cinco panelas de ouro”  , por exemplo, e mesmo no romance que deixou inacabado, “Mana Maria”, começara a apontar um estilo novo, numa construção mais sólida e mais segura, conservando embora o mesmo ritmo e o mesmo colorido dos primeiros trabalhos. Um estilo despojado de brilho. Despojado também de truques do então chamado futurismo. Decantando as impurezas, o escritor se desliteratizava na mesma proporção que ia adquirindo o pleno domínio do instrumento da prosa. Muito pouco faltou para atingir a plenitude de sua vocação, segundo Barbosa. O seu caso tem algo de parecido com o de Álvares de Azevedo: o de um grande escritor que a morte prematura impediu que se realizasse em toda a dimensão do seu talento.
     De qualquer modo, o que ficou basta para consagrá-lo como uma das figuras mais importantes da nossa literatura moderna, o que aliás fora entrevisto por João Ribeiro, ao tratar de Brás, Bexiga e Barra Funda, livro que, na opinião do grande crítico, havia de “marcar uma fase na novelística brasileira”. Longe de ser uma simples frase de efeito, como poderia ter parecido na época, o vaticínio do mestre veio a ser confirmado, tal a força da mensagem do jovem escritor tão cedo desaparecido. O que mais impressionara a João Ribeiro foi a absoluta integração do contista com o meio, precisamente o que dá autenticidade e garante a perenidade da obra de ficção.
     Umbilicalmente integrado com o meio, António de Alcântara Machado foi um escritor paulistano, da cidade de São Paulo, assim como Manuel Antônio de Almeida o foi do Rio de Janeiro. A aproximação entre os dois, feita por Agripino Grieco, pede, no entanto, um desdobramento: não são ambos os escritores apenas citadinos, mas perfeitamente integrados com a alma popular. Na composição artística de um e de outro, sobreleva a mesma inspiração plebeia. As Memórias de um Sargento de Milícias escandalizaram os cortesãos da coorte bajuladora do Imperador letrado, com o diálogo apimentado do povo, a cor, o ruído e até o mau cheiro das ruas. Pois o caso de Brás, Bexiga e Barra Funda não é menos contundente. E com este detalhe: quem aparecia descrevendo a vida dos bairros humildes de São Paulo era um aristocrata pertencente a uma família tradicional. E não se escondia como Maneco Almeida por trás de um pseudônimo. Não, assinava o nome com todas as letras e acentos: António de Alcântara Machado. “António”, com acento agudo, oral aberto, que é como se pronuncia esse nome em São Paulo, tal como em Portugal, ao contrário da pronúncia carioca, de Manuel Antônio, nasal fechado, exigindo por isso mesmo o acento circunflexo.
     Uma nova personagem surgiu então na literatura brasileira: o ítalo-brasileiro. António de Alcântara Machado não foi surpreendê-lo na Avenida Paulista, onde se erguiam palacetes de emigrantes italianos endinheirados, muitos deles mais ricos que os fazendeiros de café, ostentando títulos de cavaglieri ufficiale, comendadores e até de condes papalinos. Não, o escritor desceria aos arrabaldes pobres, aos bairros operários. O que o interessava era o filho de imigrante em toda a sua violenta integração social, sem nenhum polimento, muito menos estragado pelo dinheiro, o filho do carcamano no duro, o “intalianinho”, como saborosamente deturpado passou a ser designado pelo povo o novo mameluco. Assim são os seus personagens: gente do proletariado e do pequeno comércio, pode-se dizer, em resumo, a massa da torcida do Palestra Italia Futebol Clube, o Palmeiras de hoje, rótulo nacionalista imposto depois da Segunda Guerra. Gaetaninho é filho de operário, e mora no Brás. Carmela, uma costureirinha. Nicolino Fior D’Amore, barbeiro. Roco, jogador de futebol. Já Natale Pienotto, proprietário do Armazém Progresso de São Paulo, passou para a Barra Funda (começo de ascensão social) e sonha com a Avenida Paulista (meta final).
     Nos flagrantes que fixou do operariado e da pequena burguesia de paulistanos, António de Alcântara Machado tornar-se-ia o grande intérprete do fenômeno ítalo-brasileiro em São Paulo, embora não tenha sido o único intérprete. A seu lado, em planos diversos, devem ser lembrados os nomes do desenhista Voltolino e do jornalista “macarrônico” Juó Bananére. Um e outro certamente o teriam inspirado, a tal ponto que hoje se confundem no tempo e no espaço como se fossem personagens saídos das páginas de Brás, Bexiga e Barra Funda.
     Voltolino, Lemmo Lemmi na vida civil, autêntico ítalo-brasileiro, “intalianinho”, humanizava as suas criações. Os vendedores de jornal de Voltolino enterneciam, segundo Barbosa. Tocavam direto à sensibilidade do escritor: “Gorrinho de banda, olhar peralta, paletó paterno batendo nos joelhos, pés descalços, são risonhos e expansivos. A gente, porém, sente vontade de passar a mão pela cabecinha deles. Os diabinhos enternecem”. Juó Bananére teve seu desenho criado por Voltolino. Ou melhor, o artista fez o retrato idealístico do tipo extraordinário do porta-voz da colônia italiana, “pueta, barbieri e giurnaliste”. Caricatura genial: “bigodudo, pançudo, de cachimbo e bengalão”. O criador de Juó Bananére foi o engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, considerado “paulista de quatrocentos anos”, como António de Alcântara Machado, e que escreveu para um jornal humorístico, O Pirralho, uma preciosíssima colaboração em prosa e verso, no português macarrônico dos italianos de São Paulo.
        Barbosa escreveu nos anos 1960 que achava incrível que ninguém ainda tinha se dado ao trabalho de selecionar essa obra para um volume, ao qual se juntaria uma nova edição de La Divina Increnca, esta só em verso, tudo isso com ilustrações de Voltolino, de acordo com uma sugestão do próprio António de Alcântara Machado, que deixou sobre o autor e seu estilo este depoimento: “As deformações da sintaxe e da prosódia, aqui italianização da língua nacional, ali nacionalização da italiana, saborosa salada ítalo-paulista das costureirinhas, dos verdureiros, dos tripeiros, também de alguns milionários e vários bacharéis, todos eles com raras exceções torcedores do Palestra, os interessados podem estudar no Juó Bananére”.
     A essa “salada ítalo-paulista” caberia a António de Alcântara Machado dar forma e conteúdo literário. E é nessa transposição artística do popular que encontramos a mensagem ainda não superada do escritor, mesmo depois de experiências mais pretensiosas posteriores – como os romances de Tito Batini e Cecílio J. Carneiro, retratando problemas de imigrantes italianos e sírio-libaneses – ou menos ambiciosas no fundo e mais ambiciosas na forma – como nos contos de Mário Neme – ou ainda como no Marco Zero, de Oswald de Andrade, na algaravia nipônica dos “nissei”. O complexo social paulista, com a integração dos imigrantes, ainda não encontrou o seu escritor. Seria António de Alcântara Machado, se ele tivesse tempo de se realizar em toda a plenitude. Mas a imagem de sua carreira literária em ascensão – a de um pássaro morto no instante em que iniciava o grande vôo – está bem refletida no romance inacabado Mana Maria, como nos contos derradeiros: “As Cinco Panelas de Ouro” e “Apólogo Brasileiro sem Véu de Alegoria”, quando o escritor aparece despojado dos cacoetes modernistas.
     O estilo quase telegráfico dos primeiros contos, marcado pelas construções assindéticas, ganha mais substância, atinge maior elasticidade, como uma lâmina de aço, a caminho da prosa pura – o seu ideal, em matéria de estilo –, sempre cioso da comunicação com o leitor, reduzindo o mais possível a distância entre a linguagem falada e a linguagem escrita. Trata-se de uma experiência da área urbana da capital paulista, mas no fundo a mesma de João Guimarães Rosa, em território rural mais amplo – o dos gerais –, com outra profundidade, na pesquisa linguística, e, com uma criatividade realmente prodigiosa, ainda que correndo o risco de “coelhonetizar” o seu brasileirismo.
     De qualquer modo, os casos de António de Alcântara Machado e João Guimarães Rosa se emparelham, na sua diversidade, na mesma constante do movimento modernista: a procura da expressão brasileira da língua portuguesa.
     Nenhuma força humana será capaz de deter a marcha batida da permanente renovação linguística. Isso que hoje não passa de lugar comum, soava no Brasil pré-modernista como um atestado de ignorância. Os nossos gramáticos não admitiam liberdades com o idioma – o belo idioma de Camões – na tragicômica ilusão de que poetas e prosadores da era do avião, da lavoura mecanizada, das indústrias pesadas, pudessem utilizar as mesmas formas de expressão dos frades do século dos quinhentos, das caravelas, das sementeiras e dos fusos. Ainda conforme Barbosa, comentava em vão Carlos Góis: “A língua portuguesa tende cada vez mais a uniformizar-se: procura pois estratificar as suas formas de dizer, fugindo ao sincretismo, que deve ser um fenômeno antes das línguas ainda em formação, do que de um idioma já emancipado e construído”. Eco distante de uma mentalidade morta, essas palavras repercutiam, no entanto, nos idos de 1922, como vozes de um oráculo no templo do idioma. Os gramáticos eram os sacerdotes. O papa, Rui Barbosa. E Rui Barbosa, com seu imenso prestígio político, a sua indiscutida e indiscutível autoridade intelectual, ungido, como até hoje, por uma admiração quase mística em todo o Brasil.
     Enfrentar a cidadela do gigante foi a empresa ciclópica tentada pela geração modernista de São Paulo. E só assim se deu a “arrebentação”, com a assimilação das várias correntes étnicas e imigratórias em nossa literatura. E a língua portuguesa não se amesquinhou no Brasil. Antes, se enriqueceu. A “última flor do Lácio inculta e bela” – do verso de Bilac – nascida da “língua plebeia das tabernas e alfurjas”, falada por soldados, colonos e pequenos mercadores romanos, encontrou no Brasil o seu grande laboratório experimental, principalmente pela diversificação das nossas áreas culturais. É no sincretismo, portanto, que o português brasileiro vai ganhando força e colorido, já que não é possível o ideal de uma língua acabada, como o demonstra um dos grandes filólogos modernos de Portugal, contraditando o gramático mais turrão do Brasil: “No dia em que atingíssemos o ideal (impossível) duma língua perfeita, dissecada, sem exceções, teríamos matado a Arte. Ora, morrer por morrer, que morra antes a Gramática...”[2]
     Do fogo da artilharia dos “rapazes” da Semana de Arte Moderna, contra o convencionalismo, nasceu a literatura brasileira moderna. A poesia que não é mais o “lirismo comedido” – libertada pela Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade –, a grande poesia de Manuel Bandeira, a “rosa do povo” de Carlos Drummond de Andrade e o “canto viril” de João Cabral de Mello Neto. O romance do nordeste, mostrando um Brasil verdadeiro. E, acima de tudo, uma nova consciência da missão do escritor e do seu dever profissional. Assim considerava Francisco de Assis Barbosa nos anos 1960.
     A necessidade de ver, sentir e interpretar o Brasil – que os estudos de Gilberto Freyre e a ação pessoal do grande escritor marcam com a garra de sua poderosa influência. A tônica dos modernistas era um nacionalismo de então: a poesia pau-brasil, o verde-amarelismo, a antropofagia. A de Gilberto tem sido o regionalismo. Mas um regionalismo diferente do de Franklin Távora, diferente também do de Afonso Arinos e seus seguidores. Regionalismo que é a integração do homem no seu meio, com a sua gente, bichos e árvores; com a tradição, os costumes e as aspirações sociais; com as superstições, a religião, os sentimentos populares. Regionalismo que está todo na obra admirável de um José Lins do Rego, notadamente no “Ciclo da Cana de Açúcar”, panorama de toda uma região e de toda uma época, do banguê à usina, ou seja, o esplendor e a decadência dos senhores de engenho. No “gauchismo” de Érico Veríssimo de O Tempo e o Vento, o primeiro grande romance histórico de nossa literatura. No “mineirismo” de João Guimarães Rosa e Mário Palmério. No “paulistanismo” de António de Alcântara Machado. Regionalismo que é, em suma, mais do que uma afirmação nacionalista, porque atinge o universal.

Fonte bibliográfica:
António de Alcântara Machado – Trechos Escolhidos. Por Francisco de Assis Barbosa. Coleção Nossos Clássicos. Sob a Direção de Alceu de Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. 2ª edição. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1970.


[1] “Posição de José Lins do Rego”, artigo publicado na Revista Brasileira, São Paulo, nº 24, julho-agosto, 1959.
[2] Manuel Rodrigues Lapa. Estilística da Língua Portuguesa.