O Folclore (publicado em 1919)
Mais de setenta anos há que apareceu pela primeira vez a
palavra folk-lore, em um artigo do Athenaeum de Londres. Propunha-o W.
Thoms, como expressão técnica apropriada ao estudo das lendas, tradições e da
literatura popular.
A palavra teve a boa fortuna de se difundir igualmente pelos
povos latinos, cujas línguas não possuem a faculdade plástica de criar
neologismos senão em condições raras. Em geral, recorremos ao grego em tais
casos e o termo demologia seria o
correspondente literal de folk-lore.
O alemão seguiu a mesma corrente inglesa com os vocábulos Volkslehre e Volkskunde.
Conhecemos a distinção estabelecida por R. Kohler e K. W. Weinhold que dá ao folk-lore uma área mais limitada que o Volkskunde que abrange todo o estado do
homem social, sem excluir certas feições físicas, a alimentação, o vestuário,
os gêneros da vida, profissões, o direito, a religião, a linguagem, etc.
A palavra folk-lore,
empregada no Athenaeum de 22 de
agosto de 1846 sob a assinatura de Ambrose Merton, pseudônimo de William John
Thoms, é usada principalmente no mundo com o sentido e equivalência de Traditions populares, Tradizione populare e Volksüberliefcrungen. Estas tradições
constituem o material de Volkskunde
que se preza de ciência histórico-comparativa.
Entre nós, o vocábulo folk-lore
tanto se aplica à coleta de materiais de estudos como ao próprio estudo
metódico, da história e da comparação.
Folk-lore, ou Volkslehre ou Volkskunde,
significa mais ou menos a ciência ou o saber popular. O estudo era necessitado
pela exigência das histórias, contos de fadas, fábulas, apólogos, superstições,
provérbios, poesias e mitos recolhidos da tradição oral.
Uma vez ordenados estes documentos da literatura popular,
nenhuma expressão conviria melhor que aquela.
Muito antes de achada a denominação comum, era já o folclore
uma ciência histórica com os seus métodos próprios de pesquisa, rica de
confrontos, paralelismos e de resultados comparativos, colhidos na tradição de
todos os países.
A existência dessa literatura não escrita explica-se pelo
enciclopedismo ingênito de todos os povos e pela sua psicologia coletiva (Volkerpsychologie), base e antecedente
da psicologia individual.
Todos os povos, desde os mais incapazes, têm ciência, arte e
literatura, como têm direito ou religião. São coisas e funções humanas, em qualquer
grau.
Os rústicos, os campônios, os elementos humanos de qualquer
gregário, tribo ou sociedade possuem em comum certas ideias e doutrinas
elementares acerca das coisas. Selvagens, bárbaros ou civilizados, homens
enfim, possuem uma alma coletiva onde repousam as próprias superstições,
crendices, as suas formas de arte ou de ciência elementares que lhes dão a
intuição do mundo, anterior, preliminar e precedente às criações pessoais mais
tardias da ciência abstrata ou da arte culta.
Quem do povo não é médico com as suas mezinhas? Jurista com
seu bom senso leigo, engenheiro com a sua mecânica rudimentar, calculista com
as mãos e os dedos? Astrólogo, pajé, adivinho ou teólogo?
Nesse enciclopedismo inculto, formado de pensamentos
elementares, de emoção e de inteligência, é que consiste a alma popular.
Essa psicologia coletiva ou étnica, alma do grupo, alma da
raça, é o fundo comum e a camada primigênia que explica e define o caráter
especial de cada povo, no seu tríplice aspecto físico, antropológico e histórico.
A diferença essencial entre o rústico e o civilizado, entre o
letrado e o analfabeto, é que as noções de um representam a camada das ideias
étnicas antigas e de repouso; as de outro, a camada nova instável que lhe foi
acrescida pela cultura.
A ciência quantificou o enciclopedismo grosseiro e rústico; a
poesia estilizou os versos populares; a medicina originou-se da magia e das
superstições; a astronomia da astrologia, etc. . Em resumo, o progresso do
espírito precisou e quantificou as noções ingênuas do povo.
Bibliografia:
João Ribeiro – trechos escolhidos. Coleção Nossos Clássicos.
Livraria Agir Editora, 1960.