quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Um texto de Joaquim Nabuco

Massangana (1) - (parte 1)

(de "Minha Formação" - 1900)

O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber... Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instinto ou moral, definitiva...
Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal. A terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... (2) Nunca se me retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha vida. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuídos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa da morada, e de rendeiros, ligados ao proprietário pelo benefício da casa de barro que os agasalhava ou da pequena cultura que ele lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por trás, em uma ondulação do terreno, a capela sob a invocação de São Mateus. Pelo declive do pasto árvores isoladas abrigavam sob sua umbela impenetrável grupos de gado sonolento. Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água quase dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o açúcar para o Recife; ela alimentava perto de casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré...Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira d’ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. EU por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de bois...
Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos antes dela nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a ideia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e querido de diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há espíritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que outros tivessem criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporte cativeiros contrários, e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixada como herança. Foi na pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.
As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin (3) escreveu esta variante do pensamento de Cristo sobre a infância: “A criança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar”. Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a simbólica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscências miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras tiragens da alma. Pela perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão causada. Assim eu vi a Criação de Miguel Ângelo na Sixtina e a de Rafael nas Loggie (4), e, apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do primeiro paraíso que fizeram passar diante de meus olhos em um vestígio de antigo Mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha romana, mas o muezzin (5) íntimo, o timbre que soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é o Millet (6) inalterável que se gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, mas achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno cliché do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa! (7)
Meus moldes de ideias e de sentimentos datam quase todos dessa época. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as primeiras hastes da alma aparecem tão frescas como se tivessem sido calcadas nesta mesma manhã... O encanto que se encontra nesses cidoli (8) grosseiros e ingênuos da infância não vem senão de sentirmos que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada. Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião, e a natureza, assim os grandes fatos morais em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás (9), no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque, o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.
Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer senão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc dimittis (10), por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison (11) ou um John Brown (12): a saudade do escravo.
É que tanto da parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva; como os seus mitos, sua legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. Este pareceu-me, por contraste com o instinto mercenário da nossa época, sobrenatural à força de naturalidade humana, e, no dia em que a escravidão foi abolida, senti distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível.  
Notas:
1 – Massangana era o nome do engenho em Pernambuco onde Nabuco passou os primeiros anos de sua vida aos cuidados de sua madrinha Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho. Sua família residia no Rio de Janeiro (onde seu pai foi deputado e ministro).
2 – Cabo de Santo Agostinho.
3 – John Ruskin, escritor inglês que se dedicou especialmente a assuntos de estética em que teve grande influência na era vitoriana.
4 – Célebres galerias no Palácio do Vaticano, pintadas por Rafael.
5 – Árabe anunciador muçulmano da hora da oração.  
6 – Jean-François Millet (1814-1875), pintor francês, autor do célebre quadro l’Angelus, representando camponeses em oração ao por do sol.
7 – Exclamação de alegria dos dez mil gregos dirigidos por Xenofonte quando viram o mar, após dezesseis meses de retirada.  
8 – Grego. Plural de cidolon: figura, imagem.
9 – Cabana do Pai Tomás, Uncle Tom’s Cabin, romance de Harriet Beecher-Stowe sobre a escravidão nos Estados Unidos, do qual o Presidente Lincoln teria dito que provocou a guerra entre os Estados.
10 – Nunc dimittis servum Domine: “Agora despede o teu servo, Senhor”. Palavras do velho Simeão ao ver no templo o infante Jesus que reconheceu como o salvador de Israel.
11 – William Lloyd Garrison, célebre abolicionista americano.
12 – Abolicionista americano. Condutor de uma escaramuça contra Harper’s Ferry em 1859 que foi o início da Guerra da Secessão. Preso pelos Sulistas, foi enforcado em Charlestown, West Virginia. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Aspectos biográficos de Joaquim Nabuco


Em 19 de Agosto de 1849 nasceu no Recife Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, filho de José Tomás Nabuco de Araújo e de Ana Benigna de Sá Barreto.
Quando Joaquim Nabuco nasceu, os dois maiores problemas da política brasileira do século XIX, a monarquia e a escravidão, estavam em momento de tranquilidade. O jovem imperador D. Pedro II reinava com apoio geral, desde a crise da maioridade em 1840. No que diz respeito à escravidão, apesar da Lei Feijó de 1831, que proibia o tráfico de escravos, esse processo continuava clandestinamente até que em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, o tráfico reduziu-se e finalizou em 1855.
Joaquim Nabuco passou os primeiros oito anos de sua vida no Engenho de Açúcar de Massangana, na província de Pernambuco. Essa vivência marcaria sua obra.
Em 1870 ele tornou-se Bacharel de Direito pela Faculdade do Recife. Quando ele estudava, terminou a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, o que tornou o Brasil na única nação no mundo com economia baseada na escravidão. Essa questão passou a ser um problema que clamava por solução. Estudantes engajaram-se na luta antiescravagista, como Castro Alves e Rui Barbosa.
Em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre por influência do Visconde do Rio Branco.
Em 1872 Joaquim Nabuco publicou seu primeiro livro “Camões e os Lusíadas”.
Em 1873-74 viajou à Europa onde conheceu Ernest Renan, Georges Sand, Thiers, e outras pessoas notáveis. Em Roma foi recebido pelo papa Pio IX.
Em 1874 deu conferências sobre Arte na Escola da Glória.
Em 1876 foi nomeado adido, indo para os Estados Unidos e depois para Londres.
Em 1878 foi eleito deputado pela província de Pernambuco.
Aos 30 anos engajou-se na Campanha Abolicionista na qual foi figura importante por dez anos até a Lei da Abolição da Escravatura em 1888.
Em 23 de Abril de 1889 casou-se com Evelina Torres Ribeiro.
Em 1889 ocorreu a Proclamação da República. Nabuco, embora abolicionista era monarquista. 
1891 – colaborou com Rodolfo Dantas na fundação do jornal monarquista “Jornal do Brasil”, para o qual escreveu artigos.
1897 – associou-se à fundação da Academia Brasileira de Letras no posto de Secretário Perpétuo. Pronunciou o discurso inaugural da entidade.
1899 – aceitou servir o Brasil em missão em defesa dos direitos do Brasil em litígio com a Grã-Bretanha para fixar limites com a Guiana Inglesa.
1905 – foi nomeado Embaixador em Washington.
1910 – Morreu subitamente em Washington. Seu corpo foi transportado solenemente para o Brasil pelo cruzador americano “North Carolina”, escoltado pelo encouraçado “Minas Gerais”.