sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sobre "Uma alternativa à mercantilização do livro I"


Resenha sobre o artigo “Uma alternativa à mercantilização do livro I” de A.P. Quartim de Moraes publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 19 de junho de 2012.

O autor inicia partindo da constatação de que há um crescente estreitamento de espaço para a literatura brasileira no nosso mercado editorial. Assim ele pergunta: “há saída para esse impasse que põe em risco nossos valores culturais? ” Ele acha que a óbvia resposta é “não” embasado no que ele chama de “big business editorial”.
Reforça então que esse problema tende a se agravar já que o mercado editorial brasileiro, desde fins do século XX, passou a ser dominado pelo que ele caracterizou como “subcapitalismo vira-lata incapaz de enxergar um palmo adiante de sua irrefreável obsessão por lucros gordos e imediatos”.
No entanto, Quartim de Moraes aponta para caminhos capazes de amenizar essa devastação cultural das grandes editoras comerciais. Cita como exemplo uma alternativa que vem dos Estados Unidos. Trata-se de uma editora sem fins lucrativos, a New Press (www.thenewpress.com) , fundada há 20 anos em New York por  André Schiffrin, um editor franco-americano que estivera à frente da Pantheon Books por três décadas. Schiffrin passou a escrever livros onde faz uma análise crítica das transformações nos meios de comunicação, especialmente na publicação de livros. É destacada a obra Words & Money, que saiu no Brasil como “O dinheiro e as palavras” (Editora BEI, 2011). No livro “O negócio dos livros – Como as grandes corporações decidem o que você lê”, publicado no ano 2000 nos EUA e em 2006 no Brasil pela Casa das Palavras, Schiffrin acentua como único interesse atual dos editores o de ganhar o máximo possível de dinheiro.
Quartim de Moraes assinala que essa não é a única editora sem fins lucrativos e que ela tem tido sucesso em seus lançamentos, sendo que não trabalha no vermelho, pois além de receber doações também procura o lucro para reinvestir no catálogo. O autor lembra então que no Brasil há editoras, principalmente ligadas a universidades, que quase não publicam ficção literária e que ficam fora do mercado, com pouco acesso a livrarias. Aponta que o sucesso de um empreendimento como esse aqui dependeria de “um elenco de doadores comprometidos com a missão civilizadora do livro”, e que isso é bem mais fácil de encontrar nos Estados Unidos do que aqui.


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Memórias da Memória - Zikaron - Parte 3

Embora Zikaron tenha sido escrito em primeira pessoa, não é uma autobiografia. A ideia da personagem principal foi embasada em relatos recolhidos de jornais a respeito de indivíduos que, tendo crescido ou vivido em orfanatos ou instituições públicas, foram capazes de superar várias dificuldades até conseguirem concluir curso universitário e terem boas condições de  viver e trabalhar com criatividade e cidadania. A formação de tal individualidade e identidade se faz com singulares condições de memória que se entrecortam na narrativa.
O cenário dessa narrativa foi escolhido de modo a preservar uma memória: a memória quase perdida de uma cidade grande como São Paulo. Muitas vezes decantada como "a cidade que mais cresce no mundo", ou ainda como "São Paulo não pode parar", essa metrópole tem como sua maior fragilidade a "sua memória". Esse movimento, essa velocidade e esse crescimento varrem tudo à sua frente pelo processo em si de crescer em volume, em tamanho, mas talvez não em sua alma.
Quando imaginei o cenário de Zikaron, aí certamente recorri a minha própria memória do bairro do Tatuapé. Mas poderiam ser outros tantos bairros que divisassem condições semelhantes, como, aliás, tem sido referido pessoalmente a mim por leitores do livro. Em geral, quem viveu em cenário semelhante sente logo uma identificação com a narrativa. Entra aí a "memória de lugar", "memória do espaço", "memória da cidade", "memória da comunidade".
Como foi informado hoje em artigo do jornal "O Estado de São Paulo" em uma notícia sobre a construção de edifícios na Moóca, os moradores desse bairro temem que a Moóca perca "sua alma".
Que percepção e que imagem forte e significativa!!
Eles estão percebendo que correm esse risco: o bairro pode perder sua alma!
Se isso acontecer, o que será da Moóca? Será que deixará de ser Moóca?
Para onde irá tudo que lá foi vivido e construído? Como evitar que se perca essa memória?
O que acontece hoje na Moóca fez também parte de Zikaron.
Em relação a São Paulo, a necessidade de Zikaron é agora!
1977 pode ter marcado um dos últimos anos em que ainda se podia ver, respirar, perceber fortemente essa alma dos bairros de São Paulo: todo um mundo peculiar em risco de ser esquecido!
A memória de um indivíduo entrecruza-se com a memória de um lugar.
Até quando São Paulo será capaz de manter sua memória? 

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Memórias da Memória - Zikaron - Parte 2

O entendimento do uso do nome "Zikaron" para Memórias da Memória desenvolve-se no processo de desdobramento da narrativa do livro.
No entanto, podemos adiantar que "Zikaron" é uma palavra hebraica para "memória".
Mas a raiz da palavra - "Zikr" - está relacionada com outros termos em hebraico ou mesmo em outras línguas relacionados com "memória".
Ocorre que essa memória não corresponde a apenas algo que está situado em um tempo remoto no passado. Zikr ou Zikaron refere-se a uma espécie de "memória viva", uma "memória histórica" que, "atualizando" algo marcante do passado, transversaliza o tempo e revitaliza o presente com o passado. De certa forma, esse é o sentido de vários rituais.
A história de Zikaron se passa no transcorrer do ano de 1977.
A década de 1970 é uma década um pouco esquecida quando comparada com outras décadas.
Os registros de memória sobre essa década são recortados e localizados nos eventos. Não é uma década que costume ser lembrada em bloco como, por exemplo, as décadas de 1920, 1930, 1950, 1960, etc.
Assim, no século XX a década de 1970 é algo como uma "década gótica", em analogia ao período gótico da Idade Média, um tempo não ainda de todo compreendido, mas visto em fragmentos.
Recuperar a memória dessa década é como resgatar um pouco do entendimento das idas e vindas dos tempos moderno e pós-moderno e seus desdobramentos no século XXI.
O ano de 1977, tem em seu caráter numérico até mesmo um sentido estético em seu 7 dobrado e também um tanto simbólico nessa associação de números significativos.
1977 foi um ano de transição como diversos outros, mas talvez de uma transição não tão evidente quanto aqueles marcados por grandes acontecimentos.
Tanto no Brasil como no mundo houve vários eventos políticos e econômicos não muito notáveis, mas que teriam consequências posteriores que moldariam os tempos posteriores.
No campo artístico, a morte de Elvis Presley também pode ter tido um sentido simbólico de transição entre a arte popular da primeira metade do pós-guerra do século XX e a segunda metade, que acompanharia um certo processo de desilusão na sociedade, ao mesmo tempo em que a arte pop tornou-se algo de fundo principalmente consumista, mais do que propriamente artística.
1977 pode ter sido uma "esquina" entre movimentos ou ondas musicais como "punk", "progressivo", "folk", etc., cedendo espaço à crescente "disco", sem o apelativo social dos anteriores, que, apesar disso, continuam, mas menos evidentes (com variações).

terça-feira, 10 de julho de 2012

Memórias da Memória - Zikaron - Parte 1

Livros, textos, pesquisas sobre a memória são, em geral, interessantes, tal o valor que tem tal propriedade cognitiva para o ser humano, além de também frequentemente despertar a curiosidade sobre como se dá essa capacidade.
Além de compartilhar esse interesse, eu pretendi abordar a Memória de forma transversal, incorporada em personagens ficcionais que pudessem transmitir aspectos "memoriais" situados em tempo e espaço também "memoriais".
Assim, escrevi "Zikaron - memórias da Memória".
Não se trata de um "livro de memórias", como usualmente se fala a respeito de narrativa pontuada de aspectos autobiográficos.
Trata-se de uma ficção construída sobre a memória cultural de São Paulo na segunda metade dos anos 1970, mais especificamente em 1977.
De certa forma, enfoca também as memórias de Mnemósine, a deusa da memória para os Gregos, transposta em personagens habitantes de uma São Paulo algo "esquecida", ou seja, atualmente "quase sem memória", em relação ao "quase antigo" ano de 1977.
Tempo e espaço... O livro é escrito em forma de prosa poética. Por vezes parece factual, outras vezes parece algo fantástico...
Ora, para os positivistas seguidores de Auguste Comte fatos são "sempre fatos", ou "simplesmente fatos indiscutíveis". Mas, tantas reviravoltas do século XX fizeram-nos questionar essa "certeza dos fatos".
Será que um fato é "indiscutível"? Será que aquilo que chamamos de "fato" corresponde realmente àquilo que pensamos ter sido?
As incertezas da Ciência que sempre muda, a alternante mudança de paradigmas científicos conforme Thomas Kuhn, entre outros fatores, levaram-nos a uma "relativa certeza dos fatos". Isso não implica em passar a negar ou passar a confirmar alguma coisa, mas indica que cada evento deve ser contextualizado e correlacionado aos diversos fatores que o transversalizam.
Assim, "Zikaron, Memórias da memória" vem (neste jogo de palavras) lembrar-nos de coisas que quase estávamos esquecendo...
Talvez a própria Mnemósine, ou seja, a própria Memória tenha que resgatar sua história, sua memória, para reavivar melhor aquilo que um dia pode ter sido "fato" e que com o tempo tenha se transformado em apenas vaga reminiscência, um traço quase apagado...
   

terça-feira, 3 de julho de 2012

Poesia de Alphonsus de Guimaraens


Ária do Luar

O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola...

Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.

Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.

Eurritmia celestial de cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.

Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.

Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.

Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.

Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.

Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.

Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola...

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Comentários sobre a obra de Alphonsus de Guimaraens


Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho – texto introdutório da obra “Alphonsus de Guimaraens – melhores poemas”. Global Editora, 1997.

A obra poética de Alphonsus de Guimaraens, composta em três velhas cidades mineiras – Ouro Preto, Conceição do Serro e Mariana – e, parte dela, em São Paulo, ainda nos tempos de estudante, distingue-se pela unidade. Na temática, foi Alphonsus de Guimaraens essencialmente místico e cantor do amor e da morte. Na forma, um artista seguro, dominador absoluto do seu instrumento, dono de um verso plástico, ondulante e musical. Sua poesia apresenta-se dotada de intensa força sugestiva, numa linguagem vincadamente pessoal, que lhe confere lugar próprio em nossa literatura.
Nos versos líricos, acentua-se a presença de Constança, a filha de Bernardo Guimarães, sua prima e noiva tão cedo morta. Essa presença se impõe mais em Dona Mística e Câmara Ardente, mas se estende em particular a alguns sonetos de Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte como aqueles iniciados pelos versos Hão de chorar por ela os cinamomos e Estão mortas as mãos daquela Dona, dos mais celebrados do poeta. A sombra da adolescente que “se morreu silente e fria” em 1888 acompanhou-o para sempre.

Nos versos místicos, com a presença divina:

Ninguém anda com Deus mais do que eu ando,
Ninguém segue os seus passos como sigo.,

há a assinalar o seu culto a Maria, traduzido num livro inteiro, Setenário das Dores de Nossa Senhora, e levado até seu livro final Pulvis. O poeta mariano em Alphonsus de Guimaraens – um dos lados mais destacados de sua personalidade – já se anunciava no poema que abre Kiriale, seu primeiro livro:

É a lua... e a lua é Nossa-Senhora,
São dela aquelas cores de Santa!

Nesses versos está outro aspecto da sua obra, ou seja, o do poeta do luar. Na verdade o luar inunda a sua poesia e dois versos podem mostrar como Alphonsus de Guimaraens via a lua e a viva presença dela na sua sensibilidade:

Era noite de lua na minh’alma.
A hóstia da lua  entrou-me dentro da alma.

No seu derradeiro poema, “Últimos Versos”, escrito na véspera da sua morte, é para a lua que se volve, comovidamente, comparando-a, aí, a Santa Teresa de Jesus, a cujo nome já aludira em Dona Mística, ao lembrar-se da noiva morta. Como assinalou Manuel Bandeira, o nome da grande santa remata a obra poética de Alphonsus de Guimaraens.
Poeta da morte, alquimista da morte: assim se definiu Alphonsus de Guimaraens. A morte é, com efeito, uma nota constante na sua poesia. Abriu ele com estes versos um dos sonetos de  Pulvis:

Sempre vivi com a morte dentro da alma,
Sempre tacteei nas trevas de um jazigo.

Voltava-se para o real duro e áspero: ao mundo chamou charco sangrento  e exílio de lodo; mas se voltava também para uma realidade superior:

E aos astros de tal modo o Poeta ascende em calma,
Que o céu fica menor do que o azul da sua alma,
E nem cabe no céu a luz do seu olhar...

Sua vida foi aos poucos se tornando mais preocupante, a ele que, como disse numa carta a Mário de Alencar, não conseguiu passar de “simples e temporário juiz municipal”, com as consequentes incertezas de uma recondução quatrienial (uma vez não foi reconduzido, quando ainda morava em Conceição da Serra, e rendimentos invariáveis. O que lhe coube viver com as crescentes dificuldades de ordem material em face dos também crescentes encargos de uma família numerosa, já foi suficientemente descrito por João Alphonsus na sua “Notícia Biográfica”. “Ao mesmo tempo que o desalento o ganhava diante da vida material, a poesia era o grande consolo, e menos amarga, e menos desiludida do que a da mocidade...”, observou seu filho no citado trabalho. Poesia que reflete, de resto, a sua vida, como, com frequência, o ambiente que o inspirou:

..............................................em cada sino o dobre
Que me diz que sou velho, e que inda sou criança,
Que sou rico demais para morrer tão pobre.
..............................................................................
O silêncio infinito não me aterra,
Mas a dúvida põe-me alucinado...
Se encontro o céu deserto como a terra!
..............................................................................
Noites de luar nas cidades mortas,
Casas que lembram Jerusalém...
..............................................................................
Toda a triste cidade
É um cemitério...
Há um rumor de saudade
E de mistério.

Na sua solidão imensa (“só, completamente só, nestes míseros sertões mineiros!” – como escreveu a Mário de Alencar), dentro de uma visão dorida, mas transfigurada, da existência, à meditação da poesia se dedicou em grande parte Alphonsus de Guimaraens.

O autor deste texto, Alphonsus de Guimarens Filho (1918-2008) nasceu em Mariana, MG, em 3 de junho de 1918, filho do poeta Alphonsus de Guimaraens e de D. Zenaide Silvina de Guimaraens. Estudou em Belo Horizonte onde cursou Direito na Universidade de Minas Gerais. Foi jornalista e funcionário público. Publicou em 1940 “Lume de Estrelas”, livro que recebeu dois prêmios. Seguiram-se outros livros também premiados. Pertenceu à Academia Mineira de Letras.