domingo, 25 de novembro de 2018

Alcântara Machado - um conto

O Revoltado Robespierre
Alcântara Machado

     Todos os dias úteis às dez e meia toma o bonde no largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.
     - Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu sua besta?
     Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil réis. Exige o troco imediatamente.
     - Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.
     Retém o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.
     - O que? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
     Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa um cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques)[1], examina todos os bancos, vira que vira, começa:
     - Isto até parece serviço do governo!
     Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
     - O que vale é que os homens um dia voltam...
     Primeiro sorriso sibilino[2]. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.
     - Não sei que raio de cheiro tem esse largo do Arouche, safa!
     Vira a aliança no seu-vizinho[3]. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar nas sobrancelhas unidas do cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:
     - Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil réis o quilo!
     Não espera resposta. Não precisa de resposta. Berra no ouvido do velho da direita:
     - É como estou lhe contando: o quilo!
     Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.
     - O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.
     Dá um tabefe no queixo mas quê de mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta da educação é coisa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL[4] já leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isso de preço de custo só engana os trouxas.
     - Ó estupidez! O senhor reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE máquinaSSS! Fan-tás-ti-co! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...
     É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.
     - Mas enfim...
     A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.
     - Mas enfim... seu Serafim...
     Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:
     - Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!
     Silêncio. Mas eloquente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antônio.
     - Não está vendo, seu animal, que a mulher não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros. Tenha educação.
     Cumprimenta rasgadamente o doutor Indalécio Filho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso de uma cautela[5] do Monte de Socorro do Estado[6].  
     - O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... nada! Mas isto um dia acaba.
     Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:
     - Ora se acaba!
     Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:
     - Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.
     Desce no largo do Tesouro. Faz a sua fezinha no CHALET PRESIDENCIAL[7] (centenas invertidas)[8]. Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o largo do Palácio.
     E todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando da carta de um republicano histórico.  

Fonte bibliográfica:
Machado, A. A. – O Revoltado Robespierre. Antologia – Contos in Antônio de Alcântara Machado – trechos escolhidos. Por Francisco de Assis Barbosa. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora. 2ª Edição. Rio de Janeiro, 1970, páginas 25 a 28.


[1] Os cigarros Sudan Ovais eram de propriedade do italiano Sabbado D’Angelo radicado em São Paulo. Faziam sucesso nas primeiras décadas do século XX, em parte por darem cheques como brinde, que vinham dentro do maço. Nota do blog.
[2] Sibilino – enigmático, misterioso. Nota do blog.
[3] Seu-vizinho – nome popular do dedo anular. Nota do blog.
[4] Marca de solução para limpeza bucal. Nota do blog.
[5] Recibo de empréstimo. Nota do blog.
[6] Instituição que antecedeu a Caixa Econômica.
[7] Nos anos 1920, usava-se o termo “Presidente” do Estado de S.P. e não “Governador”. Nota do blog.  
[8] Fez a sua fezinha... centenas invertidas – apostou em loteria ou jogo de bicho, que não era proibido nas primeiras décadas do século XX. Nota do blog.