quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Um texto de Joaquim Nabuco

Massangana (1) - (parte 1)

(de "Minha Formação" - 1900)

O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber... Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instinto ou moral, definitiva...
Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal. A terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... (2) Nunca se me retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha vida. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuídos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa da morada, e de rendeiros, ligados ao proprietário pelo benefício da casa de barro que os agasalhava ou da pequena cultura que ele lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por trás, em uma ondulação do terreno, a capela sob a invocação de São Mateus. Pelo declive do pasto árvores isoladas abrigavam sob sua umbela impenetrável grupos de gado sonolento. Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água quase dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o açúcar para o Recife; ela alimentava perto de casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré...Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira d’ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. EU por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de bois...
Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos antes dela nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a ideia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e querido de diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há espíritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que outros tivessem criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporte cativeiros contrários, e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixada como herança. Foi na pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.
As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin (3) escreveu esta variante do pensamento de Cristo sobre a infância: “A criança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar”. Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a simbólica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscências miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras tiragens da alma. Pela perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão causada. Assim eu vi a Criação de Miguel Ângelo na Sixtina e a de Rafael nas Loggie (4), e, apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do primeiro paraíso que fizeram passar diante de meus olhos em um vestígio de antigo Mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha romana, mas o muezzin (5) íntimo, o timbre que soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é o Millet (6) inalterável que se gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, mas achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno cliché do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa! (7)
Meus moldes de ideias e de sentimentos datam quase todos dessa época. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as primeiras hastes da alma aparecem tão frescas como se tivessem sido calcadas nesta mesma manhã... O encanto que se encontra nesses cidoli (8) grosseiros e ingênuos da infância não vem senão de sentirmos que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada. Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião, e a natureza, assim os grandes fatos morais em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás (9), no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque, o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.
Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer senão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc dimittis (10), por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison (11) ou um John Brown (12): a saudade do escravo.
É que tanto da parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva; como os seus mitos, sua legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. Este pareceu-me, por contraste com o instinto mercenário da nossa época, sobrenatural à força de naturalidade humana, e, no dia em que a escravidão foi abolida, senti distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível.  
Notas:
1 – Massangana era o nome do engenho em Pernambuco onde Nabuco passou os primeiros anos de sua vida aos cuidados de sua madrinha Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho. Sua família residia no Rio de Janeiro (onde seu pai foi deputado e ministro).
2 – Cabo de Santo Agostinho.
3 – John Ruskin, escritor inglês que se dedicou especialmente a assuntos de estética em que teve grande influência na era vitoriana.
4 – Célebres galerias no Palácio do Vaticano, pintadas por Rafael.
5 – Árabe anunciador muçulmano da hora da oração.  
6 – Jean-François Millet (1814-1875), pintor francês, autor do célebre quadro l’Angelus, representando camponeses em oração ao por do sol.
7 – Exclamação de alegria dos dez mil gregos dirigidos por Xenofonte quando viram o mar, após dezesseis meses de retirada.  
8 – Grego. Plural de cidolon: figura, imagem.
9 – Cabana do Pai Tomás, Uncle Tom’s Cabin, romance de Harriet Beecher-Stowe sobre a escravidão nos Estados Unidos, do qual o Presidente Lincoln teria dito que provocou a guerra entre os Estados.
10 – Nunc dimittis servum Domine: “Agora despede o teu servo, Senhor”. Palavras do velho Simeão ao ver no templo o infante Jesus que reconheceu como o salvador de Israel.
11 – William Lloyd Garrison, célebre abolicionista americano.
12 – Abolicionista americano. Condutor de uma escaramuça contra Harper’s Ferry em 1859 que foi o início da Guerra da Secessão. Preso pelos Sulistas, foi enforcado em Charlestown, West Virginia. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Aspectos biográficos de Joaquim Nabuco


Em 19 de Agosto de 1849 nasceu no Recife Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, filho de José Tomás Nabuco de Araújo e de Ana Benigna de Sá Barreto.
Quando Joaquim Nabuco nasceu, os dois maiores problemas da política brasileira do século XIX, a monarquia e a escravidão, estavam em momento de tranquilidade. O jovem imperador D. Pedro II reinava com apoio geral, desde a crise da maioridade em 1840. No que diz respeito à escravidão, apesar da Lei Feijó de 1831, que proibia o tráfico de escravos, esse processo continuava clandestinamente até que em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, o tráfico reduziu-se e finalizou em 1855.
Joaquim Nabuco passou os primeiros oito anos de sua vida no Engenho de Açúcar de Massangana, na província de Pernambuco. Essa vivência marcaria sua obra.
Em 1870 ele tornou-se Bacharel de Direito pela Faculdade do Recife. Quando ele estudava, terminou a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, o que tornou o Brasil na única nação no mundo com economia baseada na escravidão. Essa questão passou a ser um problema que clamava por solução. Estudantes engajaram-se na luta antiescravagista, como Castro Alves e Rui Barbosa.
Em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre por influência do Visconde do Rio Branco.
Em 1872 Joaquim Nabuco publicou seu primeiro livro “Camões e os Lusíadas”.
Em 1873-74 viajou à Europa onde conheceu Ernest Renan, Georges Sand, Thiers, e outras pessoas notáveis. Em Roma foi recebido pelo papa Pio IX.
Em 1874 deu conferências sobre Arte na Escola da Glória.
Em 1876 foi nomeado adido, indo para os Estados Unidos e depois para Londres.
Em 1878 foi eleito deputado pela província de Pernambuco.
Aos 30 anos engajou-se na Campanha Abolicionista na qual foi figura importante por dez anos até a Lei da Abolição da Escravatura em 1888.
Em 23 de Abril de 1889 casou-se com Evelina Torres Ribeiro.
Em 1889 ocorreu a Proclamação da República. Nabuco, embora abolicionista era monarquista. 
1891 – colaborou com Rodolfo Dantas na fundação do jornal monarquista “Jornal do Brasil”, para o qual escreveu artigos.
1897 – associou-se à fundação da Academia Brasileira de Letras no posto de Secretário Perpétuo. Pronunciou o discurso inaugural da entidade.
1899 – aceitou servir o Brasil em missão em defesa dos direitos do Brasil em litígio com a Grã-Bretanha para fixar limites com a Guiana Inglesa.
1905 – foi nomeado Embaixador em Washington.
1910 – Morreu subitamente em Washington. Seu corpo foi transportado solenemente para o Brasil pelo cruzador americano “North Carolina”, escoltado pelo encouraçado “Minas Gerais”. 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Soneto de Emiliano Perneta


(No álbum de Dona Anita Philipowski)

Conheço que não sou o homem que se procura,
O herói moderno, o herói vibrante, o herói do dia,
Que num largo esplendor de bronzea envergadura,
Com desdenhoso olhar a crença repudia.

Pode ser que também não passe de uma pura,
E de uma inquieta, e de uma doida fantasia,
Da quimera banal, e de grande loucura,
O vinho que me exalta, a fé que me inebria.

Sei que é belo exclamar que não existe nada;
Que a flor das ilusões, como rútila espada,
A dúvida voraz ceifou pela raiz...

Sei de tudo; porém, sob o céu que nos cobre,
Sinto, elevando as mãos, e humilde como um pobre,
Que no seio de Deus adormeço feliz!

domingo, 17 de novembro de 2013

Dados biográficos do poeta Emiliano Perneta


3 de janeiro de 1866 - Nasce Emiliano Perneta no Sítio dos Pinhais, perto de Curitiba, Paraná.
1885 - Segue para São Paulo, onde se matricula na Faculdade de Direito. Participa de discursos e artigos de propaganda abolicionista e republicana.
1888 - Seu quarto na Rua da Glória era chamado “Autocracia da Anarquia”, sendo frequentado por contemporâneos como: Rodrigo Otávio, Olavo Bilac, Venceslau de Queiroz, Leopoldo de Freitas, Ermelino de Leão, Hipólito de Araújo e outros. São seus colegas de turma: Afonso Arinos, Paulo Prado, Edmundo Lins, Francisco Mendes Pimentel, Herculano de Freitas.
Forma-se em 1889. Foi o orador de sua turma. Dirige “Vida Semanária” e “Folha Literária”. Colabora no “Dário Popular” e na “Gazeta de São Paulo” de Júlio Ribeiro.
1890 - Vai para o Rio de Janeiro. Passa a ser o principal redator de “Cidade do Rio” de José do Patrocínio. Colabora, desse ano até 1893 com as publicações “Novidades” e “Revista Ilustrada” de Ângelo Agostini.
1891 - Aparecem as primeiras manifestações do movimento simbolista brasileiro na “Folha Popular”, onde Emiliano Perneta é secretário. Tais manifestações são escritas por ele e também por Cruz e Souza, Oscar Rosa e B. Lopes. Perneta proporciona a Cruz e Souza sua primeira colocação no Rio. Nesse período tem convivência com Gonzaga Duque.
1893 - Vai para Minas Gerais a convite de seu amigo João Pinheiro. Torna-se Promotor Público em Caldas, passando a Juiz Municipal em Santo Antônio do Machado.
1896 - retorna enfermo ao Paraná.
1898 - Assina manifesto contra perseguições antidreyfusistas a Émile Zola.
1901 – Torna-se Lente de Português e Literatura do Ginásio Paranaense e Escola Normal. Assume  a posição de Auditor de Guerra, com o posto de Capitão.
1902 – Funda e dirige a publicação “Victrix”.
Em 21 de Agosto de 1911 é lançada “Ilusão”, em edição de luxo, esgotada nos dois primeiros dias do seu lançamento. Perneta deixa as funções no Ginásio e Escola Normal, optando pela Auditoria de Guerra, que exerceu até sua morte.
1912 – Funda, com Euclides Bandeira, o Centro de Letras do Paraná, sendo eleito seu presidente.
1913 – Escreve o poema-libreto “Papilio Innocentia”, para a ópera do compositor suíço Leo Kessler sobre o romance de Taunay.
Em 7 de Agosto de 1914, lê, no Rio de Janeiro, em ato público presidido por Alberto de Oliveira, a sua comédia heroica em verso “Pena de Talião”, às vésperas da Grande Guerra.
1917 – Escreve numerosas poesias inspiradas pela guerra. Publica “Vovozinha”.
Em 19 de fevereiro de 1921, falece às 18:30 horas.


Referência bibliográfica: “Emiliano Perneta – Poesia”, coleção “Nossos Clássicos”, nº 43, 2ª edição, 1966, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um texto de João Ribeiro


O Folclore (publicado em 1919)

Mais de setenta anos há que apareceu pela primeira vez a palavra folk-lore, em um artigo do Athenaeum de Londres. Propunha-o W. Thoms, como expressão técnica apropriada ao estudo das lendas, tradições e da literatura popular.
A palavra teve a boa fortuna de se difundir igualmente pelos povos latinos, cujas línguas não possuem a faculdade plástica de criar neologismos senão em condições raras. Em geral, recorremos ao grego em tais casos e o termo demologia seria o correspondente literal de folk-lore. O alemão seguiu a mesma corrente inglesa com os vocábulos Volkslehre e Volkskunde. Conhecemos a distinção estabelecida por R. Kohler e K. W. Weinhold que dá ao folk-lore uma área mais limitada que o Volkskunde que abrange todo o estado do homem social, sem excluir certas feições físicas, a alimentação, o vestuário, os gêneros da vida, profissões, o direito, a religião, a linguagem, etc.
A palavra folk-lore, empregada no Athenaeum de 22 de agosto de 1846 sob a assinatura de Ambrose Merton, pseudônimo de William John Thoms, é usada principalmente no mundo com o sentido e equivalência de Traditions populares, Tradizione populare e Volksüberliefcrungen. Estas tradições constituem o material de Volkskunde que se preza de ciência histórico-comparativa.
Entre nós, o vocábulo folk-lore tanto se aplica à coleta de materiais de estudos como ao próprio estudo metódico, da história e da comparação.
Folk-lore, ou Volkslehre ou Volkskunde, significa mais ou menos a ciência ou o saber popular. O estudo era necessitado pela exigência das histórias, contos de fadas, fábulas, apólogos, superstições, provérbios, poesias e mitos recolhidos da tradição oral.
Uma vez ordenados estes documentos da literatura popular, nenhuma expressão conviria melhor que aquela.
Muito antes de achada a denominação comum, era já o folclore uma ciência histórica com os seus métodos próprios de pesquisa, rica de confrontos, paralelismos e de resultados comparativos, colhidos na tradição de todos os países.
A existência dessa literatura não escrita explica-se pelo enciclopedismo ingênito de todos os povos e pela sua psicologia coletiva (Volkerpsychologie), base e antecedente da psicologia individual.
Todos os povos, desde os mais incapazes, têm ciência, arte e literatura, como têm direito ou religião. São coisas e funções humanas, em qualquer grau.
Os rústicos, os campônios, os elementos humanos de qualquer gregário, tribo ou sociedade possuem em comum certas ideias e doutrinas elementares acerca das coisas. Selvagens, bárbaros ou civilizados, homens enfim, possuem uma alma coletiva onde repousam as próprias superstições, crendices, as suas formas de arte ou de ciência elementares que lhes dão a intuição do mundo, anterior, preliminar e precedente às criações pessoais mais tardias da ciência abstrata ou da arte culta.
Quem do povo não é médico com as suas mezinhas? Jurista com seu bom senso leigo, engenheiro com a sua mecânica rudimentar, calculista com as mãos e os dedos? Astrólogo, pajé, adivinho ou teólogo?
Nesse enciclopedismo inculto, formado de pensamentos elementares, de emoção e de inteligência, é que consiste a alma popular.
Essa psicologia coletiva ou étnica, alma do grupo, alma da raça, é o fundo comum e a camada primigênia que explica e define o caráter especial de cada povo, no seu tríplice aspecto físico, antropológico e histórico.
A diferença essencial entre o rústico e o civilizado, entre o letrado e o analfabeto, é que as noções de um representam a camada das ideias étnicas antigas e de repouso; as de outro, a camada nova instável que lhe foi acrescida pela cultura.
A ciência quantificou o enciclopedismo grosseiro e rústico; a poesia estilizou os versos populares; a medicina originou-se da magia e das superstições; a astronomia da astrologia, etc. . Em resumo, o progresso do espírito precisou e quantificou as noções ingênuas do povo.

Bibliografia:
João Ribeiro – trechos escolhidos. Coleção Nossos Clássicos. Livraria Agir Editora, 1960.


                              

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Aspectos biográficos do escritor João Ribeiro


João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes, mais conhecido como João Ribeiro, nasceu em 1860 em Laranjeiras, Sergipe.
Em 1881 chegou ao Rio de Janeiro onde foi professor no Colégio S. Pedro de Alcântara e no Colégio Alberto Brandão. Também trabalhou em jornais abolicionistas e republicanos, como “O Globo” de Quintino Bocaiuva, “A Gazeta da Tarde” de José do Patrocínio, “A Época” de Zeferino Cândido, “A Semana” de Valentim Magalhães, “O Correio do Povo” de Sampaio Ferraz, “O País” de Quintino Bocaiuva.
Em 15 de Janeiro de 1889 começou a ser publicada a “Revista Sul Americana” do Centro Bibliográfico Brasileiro. Três sergipanos eram os seus redatores: João Ribeiro, Silvio Romero e Felisbelo Freire, além da colaboração de Araripe Junior. Nessa revista João Ribeiro publicou grande parte de suas poesias, além de crítica, filologia e história.
Com a República em 15 de Novembro, um dos redatores da “Revista Sul Americana” foi escolhido para ser o governador de Sergipe. Assim, a revista suspendeu sua publicação. Aparentemente, João Ribeiro torna-se mais escritor e menos político.
Nesse mesmo ano ele se casa e chega a ter 16 filhos.
Em 1890 foi nomeado Professor de História Universal no Colégio Pedro II.
Em 1894 formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro.
Viajou pela Europa em 1895, visitando Alemanha, Itália, Inglaterra e França. Em Berlim cursou aulas de pintura com Prof. Wildebold Winck. Nessa ocasião foi comissionado para estudar a instrução pública dos países que percorria.
Em 1896 editou em Berlim, em português, a revista “O Novo Mundo”.
Em 1898 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na primeira vaga ocorrida na instituição, a de Luiz Guimarães Junior.
Em 1900 fez exposição de seus quadros no Rio de Janeiro.
Em 1901 viajou novamente à Europa. Na Itália teve aulas de pintura com Prof. Bertezzago. Foi adido à Comissão de Limites, chefiada por Joaquim Nabuco.
Em 1913 viajou à Europa e acabou fixando-se na Suíça.
Em 1927 foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, mas renunciou imediatamente ao cargo.
Em 13 de Abril de 1934 faleceu no Rio de Janeiro.     
Na poesia João Ribeiro segue o movimento parnasiano. Embora bem considerado, como poeta ele ficou bastante esquecido, talvez por depreciar-se a si mesmo nesse aspecto. Em outros itens ficou mais conhecida e marcante sua produção em filologia, história, ficção, crítica, folclore, ensaios. Dos seus 16 ensaios, 10 nunca foram  publicados.

Bibliografia: João Ribeiro – trechos escolhidos. Coleção Nossos Clássicos. Livraria Agir Editora, 1960, Rio de Janeiro.

domingo, 6 de outubro de 2013

Poesia de Mário Pederneiras

De “Rondas Noturnas” (1901)

Sonho

Da tua branca e solitária Ermida,
Por caminhos de Céu que a Lua esmalta –
Desces – banhada dessa Luz cobalta –
O linho d’Asa abrindo sobre a Vida.

Nada, teu Passo calmo, sobressalta
E quando a Mágoa as Almas intimida
Das Ilusões, a turba renascida,
Em ronda espalhas pela Noite alta.

E a claridade que se faz é tanta
Que logo a Terra fica cheia dessa
Sonora e estranha Luz que alegra e canta.

E iluminada de um Luar de Outono
A Alma feliz e impávida, atravessa
A vasta e longa escuridão do Sono.


sábado, 5 de outubro de 2013

Alguns dados biográficos sobre Mário Pederneiras

Mário Pederneiras nasceu em 1867, na cidade do Rio de Janeiro, na casa nº 254 da Rua Senador Pompeu, rua essa que desapareceu com o alargamento do leito da Estrada de Ferro Central do Brasil. Era filho do Dr. Manuel Veloso Paranhos Pederneiras, médico e redator do Jornal do Comércio, e de Dona Isabel França e Leite Pederneiras.
Entre 1877 e 1888, Mário fez estudos secundários no Colégio Pedro II. Depois chegou a matricular-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde cursou apenas até o segundo ano. Durante a revolta de 1893, alistou-se, como voluntário, em um batalhão patriótico.
De 1895 a 1908, juntamente com Gonzaga Duque e Lima Campos, fundou, dirigiu e redigiu, entre outras, as publicações: Rio-Revista, Galáxia, Mercúrio, Fon-Fon. Foi também redator da Gazeta de Notícias, taquígrafo do Senado Federal e funcionário da Companhia Sul-América.
Em 25 de fevereiro de 1897 casou-se com Júlia Meier.
Em 1900 publicou seu primeiro livro de versos intitulado “Agonia”, com capa de Raul Pederneiras.
Em 1901 publicou “Rondas Noturnas”, com capa e ilustrações de Raul Pederneiras e em 1906 “Histórias do Meu Casal”, também com capa do mesmo autor anterior. Em 1912 publicou “Ao Léu do Sonho e à Mercê da Vida”.
Em 1913 foi classificado em terceiro lugar, após Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, em um concurso para príncipe dos poetas brasileiros.
Em 8 de fevereiro de 1915 faleceu na cidade do Rio de Janeiro em uma casa na Rua das Palmeiras, nº 93.
Em 1921 ocorreu a publicação do livro póstumo “Outono” (com versos de 1914), ilustrado por Maurício Jobim, Calisto J. Carlos, Luís Peixoto e Lucílio de Albuquerque.
Mário Pederneiras viveu em período de transformações políticas e sociais – fim da escravidão e início da República –, o que pode tê-lo influenciado. Conforme estudiosos, custa-se pensar nele armado envolvendo-se com revoltosos em 1893; na verdade ele sempre teria sido principalmente um poeta. Conforme Ronald de Carvalho em sua “Pequena História da Literatura Brasileira”, Mário Pederneiras ainda é um poeta pouco considerado. Na época em que apareceu sua poesia, ela não correspondia ao que se escrevia então, nos moldes parnasianos. Após 1890 fez parte de um trio de escritores com Gonzaga Duque e Lima Campos, trio esse que se opunha a outro trio formado por Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Raimundo Correia. Em carta a João do Rio, Mário confessa-se atraído pela nova escola, de modo que passa a ler sofregamente os simbolistas belgas e franceses. Ainda conforme Ronald de Carvalho, ele foi o mais pessoal, o mais humano e o mais duradouro poeta de seu tempo.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A poesia da banda “O Terço” – Parte 2.

Assim como em “Criaturas da Noite”, “O Terço” dos anos 1970 tem em seu repertório outras músicas cujas letras têm um simbolismo semelhante, embora de autores variados.
Como em “Criaturas da Noite” há um jogo de contrastes, ou também de complementaridades, entre luz e sombra.
Em “Luz de Velas”, de autoria de Cesar das Mercês, há um contraponto entre o mundo externo e o mundo interno do poeta, ao mesmo tempo em que há uma intersecção entre esses mundos. Assim começa a letra:

Quando eu cheguei em casa
Estava tudo no escuro
Porque não tinha energia pra acender a luz.
Então eu fiquei pensando
Nos milagres deste século
Enquanto a luz de vela iluminava o papel.
A noite é tão escura quanto natural
E a luz é a projeção do que você procura entender.
A primeira estrofe fala de uma observação, uma constatação simples, direta, cotidiana. Já a segunda estrofe é um desdobramento da primeira, a partir de uma reflexão proveniente da luz de vela (o nome da música).
Dessa reflexão decorre um salto para uma visão do mundo externo que vai além do usual: “A noite é tão escura quanto natural”. E um salto para uma visão do mundo interno: “E a luz é a projeção do que você procura entender”.
Como em “Criaturas da Noite” (de outro autor) há uma divisão em três etapas que caminha do exterior para o interior da pessoa.
A constatação de que a escuridão da noite é algo natural parece ser uma descoberta forçosamente feita a partir da falta de energia elétrica que seria um “milagre deste século”. No entanto, paradoxalmente, embora milagre, fez-se ausente e deixou espaço à “luz de vela”, algo aparentemente mais primitivo, porém mais “esclarecedor”, trazendo certo insight. A escuridão da noite, quando natural, deixa de ser amedrontadora. O escuro noturno, que comumente simboliza o temor de energias desconhecidas do inconsciente, quando encarado de outra forma, passa a ser fonte de energias positivas que permitem detectar um paradoxo próprio do interior do indivíduo: enquanto a escuridão pode ser natural, a luz pode ser algo indireto como uma “projeção” de outra coisa, ou seja, torna-se algo intermediário. No entanto, como a luz associa-se à noção de consciência, essa função intermediária aponta para aquilo que “se quer entender”.
Esse jogo de contrastes é a própria indicação de um insight, um “enxergar dentro” a partir de “um novo enxergar fora”.
O pêndulo entre dentro e fora da pessoa continua:

No meu abrigo noturno
Eu procuro ler meus sonhos
Mas sei que o que eu preciso é enxergar no escuro.
E me acostumar com o espaço
Que o meu próprio corpo ocupa
E ver com a clareza independente da luz.
Na quarta estrofe, o “abrigo noturno” pode ser sua casa sem energia, mas também pode ser concomitantemente o próprio interior do poeta, onde ele procura “ler os sonhos”. Ler os sonhos implica em entendê-los, em compreender sua simbologia, sejam sonhos enquanto se dorme, ou sejam os sonhos que correspondem aos anseios e expectativas. No entanto, conclui-se que “no abrigo noturno”, embora se tente ler os sonhos, impõe-se uma necessidade, a necessidade de “enxergar no escuro”. Ora, nesse sentido “enxergar no escuro” parece ser mais difícil do que “ler os sonhos”, ou talvez ainda seja a pré-condição para que essa leitura seja possível. Enxergar no escuro remete-se a uma capacidade menos comum, a uma habilidade refinada, a uma capacidade de “vislumbrar o inconsciente”, embora seja um vislumbre no escuro, ou seja, as sombras continuam presentes, pois esse é um escuro que comporta no máximo uma luz de vela.
Na estrofe seguinte o acostumar-se com o espaço que o próprio corpo ocupa parece ser uma constatação de algo que sempre esteve presente junto à pessoa, mas que passava despercebido. Esse acostumar-se com o espaço do corpo também implica em uma percepção de seus próprios limites. Essa percepção pode permitir uma nova visão, um novo alcance dos sentidos, de modo que pode-se ver “com clareza” independentemente da luz. Aqui há um jogo de palavras entre “clareza”, que vem de “claro”, ou seja, iluminado, e o ser capaz de ver “sem a luz”. Ora, sabe-se que, fisicamente, sem a luz é impossível ver o que quer que seja. Portanto, esse “ver com clareza” implica em outro tipo de visão, diferente de visão física, constatação essa associada à percepção dos próprios limites físicos do corpo.
Dessa percepção física, passa-se à reflexão teórica da ciência física. O poeta compara-se a um elétron, ou seja, uma partícula associada á noção de energia, e assim também á noção de luz (composta de fótons), mas ao mesmo tempo da energia elétrica miraculosa do século XX que trafega por elétrons.

Vou me tocando e chocando
Feito um elétron doido
Até bater no teu peito
Querendo mesmo é repouso
Eu preciso é enxergar no escuro.
Mas esse elétron não é apenas uma partícula racional e fria, mas é uma partícula cheia de energia emocional que o faz tocar e chocar feito doido até bater “no peito”, o peito símbolo do lado emocional da pessoa. Ao atingir esse lado emocional, o poeta quer repouso. Parece ter sido difícil chegar a bater no peito, chegar a constatar a emoção além da razão, a constatar que a emoção também é parte importante no desenvolvimento interior e não só o entendimento racional. Como paralelo e desfecho disso tudo repete-se que “Eu preciso é enxergar no escuro”, ou seja, há necessidade de “enxergar dentro”, de se descobrir, ao perceber o que se revela a partir de uma “luz de vela”.







quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Poesia de “Criaturas da Noite” da banda “O Terço”

A Música Brasileira é riquíssima em termos de poesia presente em suas letras. Muitas delas são consideradas até mesmo como obras clássicas que servem inclusive para estudo e ensino da própria língua portuguesa. Apesar disso, há diversas músicas que após certo sucesso tornam-se quase esquecidas. Em se falando de “sucesso”, deve-se levar em conta variados fatores que polemizam esse termo e pode-se eventualmente encaminhar-se o debate para o conceito de “indústria cultural” na linha do pensamento de Adorno.
A indústria cultural, o consumismo, o marketing são elementos que reforçam as diferenças entre os com “muito sucesso” e os com “pouco sucesso”, sendo que o mesmo artista, ou a mesma obra, pode flutuar entre um e outro grupo. Mas aqui pretendo me referir à “memória coletiva” e à “memória cultural” e também a certa “amnésia cultural”. Assim, no transcorrer temporal da história, pode haver “lapsos” de memória cultural, de modo que uma determinada comunidade humana pode ter um tipo de “esquecimento cultural”. Há quem diga, em certo tom de ironia, que o brasileiro só tem memória do passado até 15 anos para trás... Talvez seja um pouco assim, mas na verdade esse fenômeno é próprio do ser humano individualmente e coletivamente, como um mecanismo de defesa, ou como efeito de mudança de paradigmas, entre outros fatores.
A segunda metade do século XX corresponde ao período “pós-moderno”. Esse período se caracteriza pela valorização de pragmatismo, eficiência e resultados no campo político e econômico. O campo cultural nem sempre acompanha esses outros campos de forma harmônica, mas muitas vezes em oposição; de certo modo é o que ocorreu com o movimento de contracultura dos anos 1960, que depois foi parcialmente absorvido pela estrutura formal capitalista. Nesse período entre o ano 1950 e o ano 2000, a década de 1970 é uma década um tanto “esquecida”. No que diz respeito à música brasileira, em relação a esta década, a maioria dos artistas que ficaram na memória coletiva foram os que apareceram nas duas décadas anteriores, inclusive atravessando os anos 1970 e prosseguindo pelas décadas seguintes. A partir dos anos 1980 surgiram outros artistas da música que também ficaram na memória.
Pode-se fazer certa analogia desse processo com o ocorrido em relação à Arte Gótica e ao Período Renascentista. No início do Renascimento, houve certa “perda da memória” da linguagem artística gótica, de modo que essa forma de arte passou a ser considerada sem estética, estranha, rudimentar... Somente no século XIX, com o Romantismo, ocorreu revalorização da Arte Gótica cuja obra corria risco de ser destruída ou perdida.
Voltando aos anos 1970, talvez tenhamos que revalorizar, recuperar a música produzida no Brasil nessa década, além daquela dos já anteriormente consagrados que (certamente com grande mérito) mantiveram-se criativos.
Feitos esses preâmbulos, falemos então da música “Criaturas da Noite” da banda “O Terço”. “O Terço” trabalhava com uma música que ficava entre rock progressivo, rock rural e MPB, com refinada produção.
A música “Criaturas da Noite” foi gravada no álbum de 1974 do Terço e corresponde ao nome do próprio álbum, sendo de autoria de Flávio Venturini e Luís Carlos Pereira de Sá (o Sá de Sá, Rodrix e Guarabyra).
Como quero falar da poesia, não vou me deter na música, embora ela permita uma melhor compreensão da letra. Apenas como breve menção, podemos dizer que a melodia e a harmonia têm nuances de música clássica.
A divisão a seguir dos versos não necessariamente acompanha a divisão original dos autores. Neste sentido, faço uma divisão que permita uma análise, com algum risco de parcialmente comprometer a intenção lírica.

Criaturas da Noite
(Flávio Venturini e Luís Pereira de Sá)

As criaturas da noite
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno.

Os habitantes da noite
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol.

Eu te espero chegar
Vendo os bichos sozinhos na noite.
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.

Me sinto triste de noite
Atrás da luz que não acho
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol.

Podemos talvez dividir em três partes essa letra. Uma primeira parte correspondente às duas primeiras estrofes que vou chamar de “observação externa”. Uma segunda parte correspondente à terceira estrofe que vou chamar e “observação intermediária” e uma terceira parte com a quarta estrofe correspondente a uma “observação interna”.
Na primeira parte o artista observa à distância (ou seja, não se envolve) que “as criaturas da noite procuram luz”. Sendo criaturas noturnas, devem ter características lunares, a luz que procuram é uma luz lunar, uma luz das sombras, do inconsciente, em uma região em que as coisas são gestadas. Em antigas tradições o dia foi gestado na noite; no início do Universo primeiro teria vindo a noite e depois o dia. O sol é mais forte e mais brilhante, mas ele precisou da noite para que fosse gestado.
As criaturas com “voo calmo e pequeno” parecem ser insetos, como as mariposas de Adoniran Barboza que “roda em volta da lâmpida pra sisquentar”. Mas as criaturas da noite precisam de outra coisa, precisam secar o peso do sereno em suas asas. O sereno é outro símbolo noturno. O nome “sereno” evoca serenidade, calma, tal como o calmo voo das criaturas. No entanto, embora voo “calmo” as criaturas têm um excesso do “sereno” que lhes pesa sobre as asas. O sereno é o mistério invisível da noite que, quase imperceptível, se faz sentir quase como uma garoa, ou um quase orvalho. Essas criaturas também poderiam ser anjos com os mistérios noturnos pesando sobre as asas. Talvez o voo noturno não seja como o diurno, à luz do dia. O voo noturno tem mais riscos.
Na segunda estrofe o artista ainda é um observador externo, mas agora ele está mais próximo das criaturas, ele se envolve com elas até certo ponto e as recebe em sua casa. É interessante que sua reação não é de levantar-se e espantar os visitantes voadores; não os vê como intrusos. Mais de perto, ele sabe que as criaturas “são viajantes”, passageiros, sem lugar fixo, vagam, procuram, mas precisam chegar antes dos raios de sol. Eles não pertencem ao mundo solar, do plenamente visível, do consciente, do evidente. São da “pequena” energia que percorre os símbolos do inconsciente.
Na terceira estrofe passa-se para um estágio de interlocução com alguém, que parece estar ausente nesse momento, mas que é uma pessoa esperada, aguardada na noite, de modo que condiciona uma vigília. Essa vigília, ao mesmo tempo em que se entretém com os bichos da noite, implica em uma tentativa de esquecer o próprio destino. Se assim é, pode tratar-se de um destino doloroso, ou incerto, obscuro, talvez mais passível de ser esquecido na penumbra da noite, do que à plena luz do sol.
Se no fim da estrofe anterior o artista percebe querer esquecer seu destino, na quarta estrofe ele mergulha em seu próprio interior e percebe-se “triste de noite”, constatando que procura uma luz que não consegue encontrar. Talvez essa luz seja uma lanterna que guie e ilumine o caminho até o self, o seu eu mais íntimo, através das sendas obscuras do inconsciente.
No final então o artista constata que ele também é uma criatura da noite, pois ele também é um viajante querendo chegar antes dos raios de sol. Mas se ele tem uma varanda, então essa viagem é uma viagem interior. Quando vierem os raios de sol ele já quer ter chegado ao seu destino. Convém que a luz do sol, da plena consciência, já encontre o viajante “chegado”, encontrado consigo mesmo.
Mas todo o conjunto dos versos configura um momento de observação e de espera, de percepção e de insight que implica em certa incerteza e nostalgia, sugerindo um senso de busca que também se apresenta em outra letra de Sá para a música “Caçador de mim”. 

domingo, 14 de julho de 2013

Três Sonetos de Paulo Bomfim

Estes são os três primeiros Sonetos da obra de Paulo Bomfim de 1951 intitulada “Transfiguração”.

Soneto I

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha,
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Soneto II

Embora ainda pressinta em lucidez
A forma estranha deste pesadelo,
Não culpo a vida pela viuvez
Das mãos que pousam sobre o meu cabelo.
Na noite em que me abismo, bailam vultos,
Rostos antigos que não reconheço,
Fantasmas que em meu ser estão sepultos,
Vozes que já ouvi e desconheço.
Embora em pesadelo minha sorte
Oscile como um pêndulo no abismo,
Não culpo a vida pela minha morte,
Nem culpo o estranho vulto em que hoje cismo:
Em toda lucidez vive a loucura,
Rosa de sangue sobre a desventura.

Soneto III

Ponte suspensa sobre o grande abismo,
Dentro de mim caminho passo a passo;
Há luas que se agitam quando cismo
Em outras dimensões fora do espaço.
Neste caminho imerso em solidão,
Carrego apenas do que fui a ânsia
De prender junto ao peito esta intuição:
Rosa mística, ideal da minha infância.
Ponte arrojadamente construída
Sobre esse velho abismo mal desperto,
Retenho junto à morte minha vida,
Sempre suspensa num caminho incerto.
Transporto ao meu encontro, sobre os ombros,
Meu destino flutuando entre os escombros. 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Dois Sonetos de Paulo Bomfim

Do Mormaço

Este céu de mormaço que carrego
Lona cinzenta, capa de derrotas,
Habita-se do voo das gaivotas
E armaduras de sal onde me nego.

E das contradições que sou e lego
Às ondas porta-vozes de ignotas
Solidões, descaminhos que são grotas,
O cansaço do olhar de um dia cego.

Este céu de mormaço que acompanha
A sombra debruçada sobre o muro
E o meu passeio numa terra estranha

Modela em mim a solidão mais rica,
Pois nela sou a chuva do futuro,
A água que me apaga e que me explica.

Do viver

Urge viver. Minutos audaciosos
Armam cilada aos passos repetidos.
Qualquer coisa acontece nestes idos
De tempo estranho, e nós, seres porosos,

De argila e sangue,tristes e jocosos,
Com lágrimas e risos ressentidos,
Sacudimos os guisos comovidos
Como sinal de luz sobre danosos

Desertos de aquiescência e de rotina.
Urge viver. O tempo nos apela
No fim de cada rua. Em cada esquina

Há um encontro fatal, o gesto incrível
Do pintor produzindo em nossa tela,
Algo de cotidiano e de terrível.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Biografia de Paulo Bomfim

Paulo Lébeis Bomfim nasceu em São Paulo em 30 de Setembro de 1926. É descendente de bandeirantes e de fundadores de cidades.
Iniciou atividades jornalísticas em 1945, no “Correio Paulistano”. Depois foi convidado por Assis Chateaubriand para integrar o “Diário de São Paulo”, onde escreveu “Luz e Sombra” por dez anos. Redigiu “Notas Paulistas” para o “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro.
Foi Diretor de Relações Públicas da “Fundação Cásper Líbero”. Fundou a Galeria Atrium com Clóvis Graciano. Produziu “Universidade na TV” no Canal 2 de São Paulo, juntamente com Heraldo Barbuy e Oswald de Andrade Filho. No antigo Canal 4, TV Tupi, produziu “Crônica da Cidade” e “Mappin Movietone”. Na Rádio Gazeta apresentou “Hora do Livro” e “Gazeta é Notícia”.
Seu livro de estreia foi “Antônio Triste”, publicado em 1947, com prefácio de Guilherme de Almeida e ilustrações de Tarsila do Amaral. Essa obra foi premiada em 1948 pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Olavo Bilac. Fizeram parte da comissão julgadora Manuel Bandeira, Olegário Mariano e Luiz Edmundo.
Sua publicação seguinte foi “Transfiguração” (1951), depois “Relógio do Sol” (1952), onde lançou cantigas musicadas por Dinorah de Carvalho, Camargo Guarnieri, Theodoro Nogueira, Sérgio Vasconcelos, Oswaldo Lacerda e outros.
Em 1954 publicou “Cantiga de Desencontro”, “Poema do Silêncio” e “Armorial”. Cassiano Ricardo chamou esta obra de “volta proustiana ao passado paulista”, onde o autor se volta miticamente ao bandeirismo de seus ancestrais.
Em 1958 lançou “Quinze Anos de Poesia” e “Poema da Descoberta”.
Suas obras seguintes são: “Sonetos” (1959); “Colecionador de Minutos” e “Ramos de Rumos” (1961); “Antologia Poética” (1962); “Sonetos da Vida e da Morte” (1963); “Tempo Reverso” (1964); “Canções” e “Calendário” (1966); “Poemas Escolhidos” (1973), com prefácio de Nogueira Moutinho; “Praia de Sonetos” (1981), com prefácio de Almeida Salles e ilustrações de Celina Lima Verde; “Sonetos do Caminho (1983), com prefácio de Gilberto de Mello Kujawski; “Súdito da Noite” (1992), com prefácio de Ignácio da Silva Telles e capa de Dudu Santos; “50 anos de Poesia” (1997), com prefácio de Rodrigo Leal Rodrigues e “Sonetos” pela Universitária Editora de Lisboa; “Aquele menino” (2000); “O Caminheiro” (2001); A Academia Paulista de Magistrados lança “Tributo a Paulo Bomfim” (2003); “Tecido de Lembranças” (2004); “Rituais” (2005), com ilustrações de Dudu Santos; “Livro dos Sonetos” e “Janeiros de Meu São Paulo” (2006); “Navegante” e “Cancioneiro” (2007), com desenhos de Adriana Florence; “Café com Leite” (2008), com Juarez de Oliveira; “Diário do Anoitecer”  e “Antologia Lírica” (2012); “Insólita Metrópole” (2013).    
Suas obras foram traduzidas para o alemão, o francês, o inglês, o italiano e o castelhano.
Em 1963 entrou para a Academia Paulista de Letras.
Em 1981 foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores, recebendo o troféu Juca Pato.
Em 1991 recebeu o título de “Príncipe dos Poetas Brasileiros” pela Revista de Brasília.
Em seus 50 anos de Poesia (1997) recebeu o prêmio da União Brasileira de Escritores.
Em 2004 foi criado o “Prêmio Paulo Bomfim de Poesia” pelo Governo do Estado de São Paulo.
Em 2008 recebeu o Prêmio Literário “Fundação Bunge”, pelo conjunto de sua obra.
Em 2012 recebeu o Colar do Mérito Judiciário.
Em 2013 celebrou 50 anos de Academia Paulista de Letras.
É o decano da Academia Paulista de Letras.
Fontes Bibliográficas:
Site da Academia Paulista de Letras

www.paulobomfim.com

domingo, 12 de maio de 2013

Sobre o artigo "No Rumo das Trevas" de A.P. Quartim de Moraes


Em 29 de Abril de 2013 foi publicado um artigo de A.P. Quartim de Moraes no jornal O Estado de São Paulo, artigo esse intitulado “No Rumo das Trevas”.
Ele inicia o texto comentando sobre comercial de TV no qual um pai, “empenhado na educação do filho pequeno”, chega com três grossos livros e coloca-os sobre a cadeira. O filho senta sobre os livros para ficar na altura adequada para acessar o computador. Quartim de Moraes adverte então que quem não ficou chocado com essa história pode parar de ler seu artigo imediatamente, pois ele vai falar de “coisas fora de moda, como o livro”. Acrescenta que considera irresponsabilidade a aprovação de tal comercial pela empresa de telecomunicações.
O autor refere não ter dúvidas que esse comercial é perfeitamente compatível com a “ética empresarial” do mundo dos negócios em que “acima de qualquer valor humano predomina a implacável razão de mercado”. Diz que algumas corporações conseguem disfarçar sua obsessão por metas de faturamento sob certa “responsabilidade social” à qual destinam “alguns trocados das verbas de marketing e vendas.
Ele considera então imperdoável a irresponsabilidade de desqualificar o livro, que considera como “o maior símbolo de saber e conhecimento”. Tal desqualificação ele acha até pior do que a queima de livros por motivos políticos.
Diz que as conquistas tecnológicas das últimas décadas são valorizáveis, mas que historicamente ainda não substituem plenamente o livro. Recorda então o lançamento no fim do século XX do CD-ROM, que supostamente viria a substituir o livro. Atualmente o e-book é esse candidato, mas acrescenta: quem pode garantir que não surja amanhã um novo gadget que transforme o e-book em peça de museu?  
Assim, cita Umberto Eco que diz que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher”.
Frisa a importância do livro para o saber e para o que significa o ser humano, embora aqueles que ele chama de “fundamentalistas do mercado” considerem o supra sumo da ambição humana “ter uma casa com um carro na garagem”.
Acentua que essa visão humanística “fora de moda” só estará sepultada no dia em que acabarem com o livro. Critica o big business editorial para o qual livro bom é livro que vende bem. Desse modo, o publicitário e seu cliente daquele comercial logo atingirão seu intento. Conclui assim, com brilhante ironia, dizendo que “estaremos então penetrando as trevas depois de termos percorrido vários tons de cinza”.


sábado, 20 de abril de 2013

O exercício cognitivo do ditado

Até aproximadamente 30 a 40 anos atrás o exercício do "ditado" era uma atividade quase diária nos cursos de primeiro grau das escolas públicas. No início o criança escrevia ditados de palavras isoladas. Posteriormente passava a frases simples. Depois vinham frases associadas em um texto simples. Assim, gradativamente, a criança aprendia a seguir ditados cada vez mais complexos, sempre recebendo depois as devidas correções em seus próprios textos. 
Essa atividade do "ditado" pode parecer muito simples para alguns, ou ainda antiquada para outros, mas o fato é que se trata de um complexo e bem articulado exercício cognitivo.
Um primeiro aspecto desse exercício que podemos citar é a "atenção". A atenção é uma das funções cognitivas básicas; é essencial ao trabalho cognitivo, ao desenvolvimento cognitivo, ao processo cognitivo cotidiano. Ao ter que ficar atenta às palavras ditas pelo professor/professora a criança exercita focar sua atenção auditiva, chegando mesmo a reduzir o uso dos outros sentidos, para concentrar-se na recepção do estímulo auditivo. Além disso, trata-se da recepção de um estímulo verbal, uma ou várias palavras, concatenadas ou não; esse é um exercício de atenção específico dirigido à linguagem verbal, com suas variáveis, intonações, etc. 
Um outro aspecto do exercício do ditado é o aprendizado da linguagem verbal percebida (o exercício da linguagem verbal expressada ocorria na leitura oral e na redação). O entendimento da linguagem verbal percebida compreende uma série de nuances que se aprimoram na medida em que   aumenta a variedade de palavras e agrupamento de frases, de modo que a criança aprende a diferenciar sutilezas que implicam na complexidade de discursos e textos. 
Outro aspecto exercitado no ditado é "memória de curto prazo", também chamada "memória anterógrada". Na medida em que os textos ditados se tornam (ou se tornavam) cada vez mais extensos e complexos, mais distante ficava a "fala" do professor/professora e a "escrita" da criança, de modo que, nessa distância de tempo entre a expressão da palavra e sua recepção, exercita-se essa memória de curto prazo.
As correções repetidas dos textos, devidamente assinaladas, vão compor uma memória de longo prazo (ou anterógrada) para linguagem verbal, que permitirá à pessoa escrever corretamente.
Ora, todos esses itens são fundamentais para o entendimento de textos literários ou mesmo de textos técnicos. 
Hoje em dia no Brasil fala-se em uma grande porcentagem de pessoas com "analfabetismo funcional", ou seja, mesmo tendo frequentado escola essas pessoas não entendem textos, mesmo que sejam de média ou mesmo baixa complexidade. Uma importante causa disso é que provavelmente essas pessoas não fizeram ditados. Essas pessoas não treinaram sua cognição nos aspectos de atenção, linguagem verbal, memória de curto prazo, memória de longo prazo para linguagem verbal, de modo que não têm condições de exercer essa prática. 
Assim, deve-se ter cuidado ao propor mudanças no sistema de ensino. Nem tudo que é antigo é sem valor. Deve-se rever antigos métodos e reabilitar aquilo que ainda pode funcionar, sendo que isso pode caminhar ao lado de novos meios de ensino.
Fazendo uma analogia, mesmo que se aprimore a forma de se alimentar, ou ainda o conhecimento sobre os alimentos, ainda assim todo ser humano precisa se alimentar.
De modo similar, mesmo que se aprimore formas de aprender, algumas coisas são inerentes ao fato de sermos seres humanos. É inevitável que se tenha que memorizar palavras, coisas, objetos etc. é inevitável que se tenha que "decorar" algumas coisas. Um dia cada um teve que "decorar" seu endereço, ou outros dados essenciais a sua vida. A  capacidade de memorizar, a capacidade de usar essa memória para, por exemplo, operar uma máquina simples, ou até mesmo "dirigir" uma espaçonave, ou ainda aprender uma língua estrangeira, um dia passou por ter que "decorar" alguma coisa.
O antigo "ditado" é uma forma quase imperceptível de preparar o cérebro para "decorar" de uma maneira mais fácil coisas inerentes ao aprendizado, ou ao interesse de cada um, ou ainda de manter o cérebro mais preparado para o dia e dia e até mesmo para prevenir problemas cognitivos que podem surgir com a idade. 
Portanto, viva o ditado!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Literatura: cultura inútil ? – Parte 3


Em 29 de Dezembro de 2012, na seção “Ilustrada” do jornal “A Folha de São Paulo” foi publicado um artigo intitulado “Área Vip”.
Tal artigo refere-se a um procedimento que tem sido cada vez mais comum no Brasil há uma década, que é o aluguel de espaços privilegiados nas livrarias, aluguel esse pago por editoras, para a exposição de seus títulos. 
Ainda conforme o artigo, a disputa cada vez mais acirrada entre grandes editoras fez esse mercado sofrer reajustes muito acima da inflação.
Em reportagem da “Ilustrada” em 2006 consta que as editoras pagavam dois mil reais para exporem as obras por 15 dias. O valor hoje pode chegar a dez mil reais, ou seja, um aumento de 400% concomitante a menos de 40% da inflação no mesmo período. 
Com isso, conforme as palavras de um entrevistado na reportagem, a exposição do livro, que se devia mais ao gosto ou ao relacionamento do livreiro, passou a virar “Um negócio à parte”.
Todo esse processo está sendo chamado de “profissionalização” das livrarias. 
Isso nos leva a perguntar: será que antes disso elas não eram “profissionais”?
Dessa forma, – este é comentário nosso – leitores passam abismados entre pilhas e pilhas de exemplares do mesmo livro; passam por gôndolas, mesas e estantes com exemplares do mesmo livro... Assim, de certa forma, acaba por “constatar” que se torna “irresistível” ter que dar uma espiada no que parece ser uma obra “espetacular”... Torna-se quase “inevitável” comprar um exemplar...
Em outro texto, junto a esse da “Ilustrada” de dezembro de 2011, há comentários dos editores pequenos que se queixam de que esse modelo sufoca a diversidade e a possibilidade de divulgar suas obras diante dessa ferrenha concorrência. Há a menção de compras de editoras por outras que lembram o sucedido no filme de 1998 “You’ve got mail”, embora se trate de livrarias. Será que a permanência daquela livraria menor, tradicional, seria apenas um romantismo perdido?
Diante disso tudo, será que ainda importa a literatura em si? 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Literatura: cultura inútil? – Parte 2

Artigos na mídia a respeito dos resultados de vendas de livros em 2012 no Brasil apontam que foram vendidos muito mais livros classificados como “não ficção” do que os classificados como “ficção”. Alguns procuram explicar essa diferença dizendo que as pessoas estão mais interessadas em “não ficção” porque acham que lendo esses livros podem aprender alguma coisa... Tal afirmação pode inferir o oposto em relação aos tais de “ficção”, ou seja, sua leitura talvez não traga qualquer aprendizado...
De certa forma, essa noção já está um tanto implícita no uso da palavra “ficção” para referir-se a grande parte da literatura. O termo “ficção” faz pensar-se que se trata apenas de algo “irreal”, “apenas inventado”, “fantasias”, e assim por diante, ou seja, algo “pouco útil”, talvez “inútil”.
Essa é uma expressão, ou mesmo uma impressão de uma sociedade que tem uma cultura ainda em formação, que necessita elaborar essa cultura também através da literatura, ressalvando-se toda a riqueza que a literatura brasileira já apresenta e que pode servir de importante base e ser integrada nessa elaboração.
A sociedade brasileira já passou por diversas instabilidades políticas e econômicas em sua história e tem ainda importante deficiência educacional que reforçam a constatação dessa cultura ainda em formação. A literatura é importante nesse processo; não apenas uma literatura de acadêmicos, mas todas as instâncias dessa forma de produção artística.
A ideia de que nada se aprende com a literatura provém de uma divulgação errônea a respeito dessa forma de arte. Em certos aspectos, podemos dizer que as obras literárias trazem muitas informações presentes diretamente em seu próprio texto, além de indiretamente levarem a outros estudos, seja no sentido de melhor entendimento da obra, quanto no despertar de certos interesses de aprendizado por parte do leitor. Além disso, a literatura traz um profundo e singular aprendizado sobre o ser humano e a sociedade. Obras de Cervantes, Balzac, Victor Hugo, Fernando Pessoa, Machado de Assis, só para dizer esses poucos, podem revelar muito mais sobre a alma humana do que a maioria dos livros de “não ficção” somados juntos. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Literatura: cultura inútil? – Parte 1


Tem surgido um debate em jornais a respeito da baixa venda de livros de literatura brasileira, que, entre outras coisas, pode estar associada a algo como uma procura maior pelo público por livros que “ensinam alguma coisa”, livros esses que são listados entre os de “não ficção”. Indiretamente isso levaria a inferir que literatura talvez seja inútil...
Em nosso meio há certa “cultura da cultura inútil”...
Há décadas a designação “cultura inútil” tornou-se popular a partir de sua utilização em humorismo, procurando fazer piada daqueles que falam de coisas ou ideias que, por serem aparentemente sem qualquer “utilidade”, representariam então apenas uma espécie de tolice, ou perda de tempo com algo “inútil”.
É provável que essa expressão humorística de tal conceito estivesse expondo alguma coisa que já ocorresse na sociedade em torno de uma valorização do “utilitarismo imediatista” daquilo que fosse entendido como Conhecimento.  
Isso não é de estranhar em uma sociedade (cuja língua é latina) que excluiu o estudo do Latim de seu ensino básico, sob a alegação de se tratar de “língua morta”, enquanto países de origem não latina, ainda mantêm essa matéria.
A exclusão dessa e de outras disciplinas do ensino básico demonstra uma forte difusão desse “utilitarismo imediatista” do Conhecimento já há décadas.
Há uma expressão similar a essa que também é usada em situações que se considera como conhecimento inútil: “viajar na maionese”.
Quando em uma aula, palestra ou discurso, o apresentador passa a fazer divagações de natureza filosófica, ou subjetiva, ou que vá um pouco além do tema estrito em questão, frequentemente fala-se que esse indivíduo “viajou na maionese”, ou seja, perdeu seu tempo com “frases inúteis”.
Ora, essa é uma das razões de haver superficialidade conceitual, filosófica e de conhecimento na nossa sociedade, pois as pessoas logo se fecham a informações que lhes parecem, à primeira vista, “inúteis”.
Mas, como determinar o que é “útil” e o que é “inútil”?
A utilidade ou inutilidade de qualquer coisa, sob uma perspectiva geral, é algo que deve ser devidamente contextualizado em tempo e lugar, entre outros fatores.
Se há cultura, então essa cultura nunca é inútil. Não há cultura inútil.
A noção de “cultura inútil” também advém de uma confusão de termos que, eventualmente, podem ser sinônimos. Confunde-se cultura, conhecimento, informação, educação, comunicação. Embora haja intersecção entre essas concepções, cada um desses termos abrange extensos e complexos campos relativos ao ser humano e aos agrupamentos humanos.
Pode ser que o termo “cultura inútil” queira significar “informação inútil”. Mesmo assim ainda pode designar uma forma de restrição, ou mesmo de reducionismo em relação a alguma coisa que nos seja estranha, ou que nos pareça sem finalidade.
Assim, entre as várias atividades humanas, as artes podem parecer algo que se situe em um território de “utilidade duvidosa”, de finalidade duvidosa, e entre elas estaria a literatura, com o acréscimo, para pior, daqueles que nem sabem que literatura é uma forma de arte, além de pintura, escultura, música, etc.
Confunde-se arte com “distração”, “diversão”, “passatempo”. Embora a arte também possa incluir esses aspectos, essa é uma forma superficial de entender o que seja arte.
Se a literatura não me distrai, não me diverte e nem serve para passar o tempo, então talvez essa seja uma literatura “inútil”?
Quando a arte e a literatura levam a um aprofundamento da percepção de si mesmo e do mundo, isso já é algo mais do que apenas distração, diversão, passatempo.