Trecho extraído de “O Coronel Sangrado” em “Cenas da Vida do
Amazonas” do escritor Inglês de Sousa
(S. Paulo, 1882)
Miguel, que viveu
cinco anos na cidade de Belém com a sociedade mais culta do Pará, tinha todos
os exteriores do homem civilizado, mas ainda conservava muito do antigo
pescador do Paranamery. A vida da cidade conseguira modificar-lhe o caráter, e
abrandar-lhe o gênio, mas não o curou radicalmente.
O rapaz,
diferentemente de outros tempos, almejava agora a paz e a tranquilidade e
queria esquecer as injúrias outrora recebidas, mas isto não era mais que uma
vitória ganha pela cabeça sobre o coração. Homem ilustrado hoje, ele abjurava
as mesquinhas ideias de outras eras, mas, mau grado seu, o coração ainda sentia
o espinho de um ressentimento vago, que Miguel não ousava confessar a si mesmo.
O que dissera ao Coronel Sangrado, o que fizera ver em Óbidos era o que queria
sentir, mas não era o que verdadeiramente sentia.
Pensando que teria
de encontrar-se sem falta com o seu antigo inimigo, lembrava-se das antigas
inimizades, e reabria-se-lhe a ferida que a vaidade espezinhada tinha feito.
Mas o rapaz prometia dentro em si colocar-se superior a isto.
No meio deste
turbilhão de ideias, uma ideia aparecia-lhe de vez em quando límpida e clara,
mas amargurada e terna ao mesmo tempo.
O moço pensava na
afilhada do Tenente Ribeiro, na mulher do Alferes Moreira, na sua companheira
de infância. E o seu pensamento podia resumir-se em um nome: Rita!
Rita!
Todo o passado
desenrolava-se diante de Miguel, com as dores e as raras alegrias. O acre
sofrer do amor próprio espezinhado, da vaidade amesquinhada, do orgulho
ofendido, o desejo rebelde de vingança, todas as tristes recordações de um
passado amargurado. As esperanças mortas, os projetos dourados desaparecidos ao
menor sopro da adversidade, os desenganos todos lhe reviviam n’alma, como se
tudo fosse agora!
Por aquela que
recordava agora quase a medo teria feito em outro tempo as maiores loucuras.
Pelo desprezo com que ela o tratara mais do que por outra qualquer razão,
abandonara a mãe, o sítio, a terra natal, e fora viver entre estranhos, do suor
do seu rosto.
E o rapaz
perguntava a si mesmo se seria hoje capaz do que fizera pela filha do Tenente.
Hesitava em responder.
Durante os quatro
anos passados no Pará, por mais que fizesse Miguel, não conseguiu banir da
mente a ideia de Rita. Em toda parte por onde andava aquele nome lhe estava
presente à lembrança. Não o esquecera nunca durante todo aquele tempo de
afanoso lidar.
E não era isto que
o rapaz havia projetado.
A ideia que o
levara à capital do Pará fora uma ideia de vingança. Completamente ludibriado
pelo Tenente Ribeiro, enganado nas suas mais caras afeições, Miguel julgou que
aquilo era devido ao seu estado, de então, de criança ignorante, desamparada e
pobre. Quando seu orgulho imenso debatia-se em convulsões tremendas pela
derrota, considerada vergonhosa, encontrara um amigo que o aconselhara e
dirigira. Dos vagos projetos do primeiro momento saiu então uma resolução firme
e pensada. Foi por isso que Miguel fugiu para Belém no vapor “Ligeiro”.
Projetava ganhar
pelo trabalho e pela ilustração forças bastantes para realizar a vingança. Era
a sua ideia dominante no meio da árdua tarefa de caixeiro.
Mas pouco a pouco,
com o viver da capital, foram-se-lhe modificando as ideias, à medida que se ia
ilustrando mais o seu espírito.
No Pará, Miguel
fora empregado na casa de um excelente homem que o tratou como filho. O rapaz
teve, pois, tempo de instruir-se lendo alguma coisa.
O resultado desta
instrução e da convivência com o patrão e os seus amigos, foi a resolução que o
vimos tomar e que tanto desapontamento causou ao Coronel Sangrado, e em geral à
gente de Óbidos. E isto porque, em vista de seu antigo proceder, não se podia
esperar outra coisa.
O rapaz tomara,
muito antes de voltar a Óbidos, e logo ao projetar essa volta, a resolução de
esquecer tudo o que se passara com a família Ribeiro.
Queria esquecer as
injúrias recebidas. Era isto efeito do poderoso impulso da civilização, que lhe
alargara a órbita estreita das ideias. Mas, já dissemos que se a civilização
lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre os seus
sentimentos.
Fonte bibliográfica: Inglês de Sousa - textos escolhidos. Por Bella Josef. Coleção Nossos Clássicos. Sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963.
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