Buriti Perdido
Velha palmeira
solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de
tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos!
No meio da campina
verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas
douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as
palmas tesas – velho guerreiro petrificado em meio da peleja!
Tu me apareces
como o poema vivo de uma raça quase extinta, como a canção dolorosa dos
sofrimentos das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida
das pugnas, contra os homens de além! Por que ficaste de pé, quando teus coevos
já tombaram?
Nem os rapsodistas
antigos, nem a lenda cheia de poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que tu, vegetal ancião, cantor mudo da vida
primitiva dos sertões!
Atalaia grandioso
dos campos e das matas – junto de ti pasce tranquilo o touro selvagem e as
potrancas ligeiras, que não conhecem o jugo do homem.
São teus
companheiros, de quando em quando, os patos pretos que arribam das lagoas longínquas
em demanda de outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha palmeira,
com tua figura ereta, quêda e majestosa, como a de um velho guerreiro
petrificado.
As varas de
queixadas bravios atravessam o campo e, ao passarem junto de ti, talvez por
causa do ladrido do vento em tuas palmas, redemoinham e rangem os dentes
furiosamente, como o rufar de tambores de guerra.
O corcel lubuno,
pastor da tropilha, à sombra de tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça para
arrojar fora da testa a crina basta do topete, que lhe encobre a vista;
relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da tropilha, que morde o
capim mimoso da margem da lagoa.
Junto de ti, à
noite, quando os outros animais dormem, passa o canguçu em montaria; quando
volta, a carne da presa lhe ensanguenta a fauce e seu andar é mais lento e
ondulante.
Talvez passassem
junto de ti, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras; o guerreiro tupi,
escravo dos de Piratininga, parou então extático diante da velha palmeira e
relembrou os tempos de sua independência, quando as tribos nômadas vagavam
livres por esta terra.
Poeta dos desertos,
cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé!
Gerações e
gerações passarão ainda, antes que seque esse tronco pardo e escamoso.
A terra que te
circunda e os campos adjacentes tomaram teu nome, ó epônimo, e o conservarão.
Se algum dia a
civilização ganhar essa paisagem longínqua, talvez uma grande cidade se levante
na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os
hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade
enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos
sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição,
comprando o teu direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes
tão bem comunicar.
Então, talvez uma
alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia,
não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça, como um
monumento às gerações extintas, uma página sempre aberta de um poema que não
foi escrito, mas que referve na mente de cada de cada um dos filhos desta
terra.
Fonte bibliográfica:
Afonso Arinos – Prosa. “Buriti Perdido”. Trecho de “Pelo
Sertão”. Por Herman Lima. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso
Lima, Roberto Avim Correa, Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro,
1971.
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