sábado, 15 de setembro de 2018

Um texto do escritor Afonso Arinos


Buriti Perdido

     Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos!
     No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas – velho guerreiro petrificado em meio da peleja!
     Tu me apareces como o poema vivo de uma raça quase extinta, como a canção dolorosa dos sofrimentos das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida das pugnas, contra os homens de além! Por que ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram?
     Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda cheia de poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que tu, vegetal ancião, cantor mudo da vida primitiva dos sertões!
     Atalaia grandioso dos campos e das matas – junto de ti pasce tranquilo o touro selvagem e as potrancas ligeiras, que não conhecem o jugo do homem.
     São teus companheiros, de quando em quando, os patos pretos que arribam das lagoas longínquas em demanda de outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha palmeira, com tua figura ereta, quêda e majestosa, como a de um velho guerreiro petrificado.
     As varas de queixadas bravios atravessam o campo e, ao passarem junto de ti, talvez por causa do ladrido do vento em tuas palmas, redemoinham e rangem os dentes furiosamente, como o rufar de tambores de guerra.
     O corcel lubuno, pastor da tropilha, à sombra de tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça para arrojar fora da testa a crina basta do topete, que lhe encobre a vista; relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da tropilha, que morde o capim mimoso da margem da lagoa.
     Junto de ti, à noite, quando os outros animais dormem, passa o canguçu em montaria; quando volta, a carne da presa lhe ensanguenta a fauce e seu andar é mais lento e ondulante.
     Talvez passassem junto de ti, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras; o guerreiro tupi, escravo dos de Piratininga, parou então extático diante da velha palmeira e relembrou os tempos de sua independência, quando as tribos nômadas vagavam livres por esta terra.  
     Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé!
     Gerações e gerações passarão ainda, antes que seque esse tronco pardo e escamoso.
     A terra que te circunda e os campos adjacentes tomaram teu nome, ó epônimo, e o conservarão.
     Se algum dia a civilização ganhar essa paisagem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição, comprando o teu direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes tão bem comunicar.
     Então, talvez uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça, como um monumento às gerações extintas, uma página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na mente de cada de cada um dos filhos desta terra.

Fonte bibliográfica:
Afonso Arinos – Prosa. “Buriti Perdido”. Trecho de “Pelo Sertão”. Por Herman Lima. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Avim Correa, Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1971.

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