quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A poesia da banda “O Terço” – Parte 2.

Assim como em “Criaturas da Noite”, “O Terço” dos anos 1970 tem em seu repertório outras músicas cujas letras têm um simbolismo semelhante, embora de autores variados.
Como em “Criaturas da Noite” há um jogo de contrastes, ou também de complementaridades, entre luz e sombra.
Em “Luz de Velas”, de autoria de Cesar das Mercês, há um contraponto entre o mundo externo e o mundo interno do poeta, ao mesmo tempo em que há uma intersecção entre esses mundos. Assim começa a letra:

Quando eu cheguei em casa
Estava tudo no escuro
Porque não tinha energia pra acender a luz.
Então eu fiquei pensando
Nos milagres deste século
Enquanto a luz de vela iluminava o papel.
A noite é tão escura quanto natural
E a luz é a projeção do que você procura entender.
A primeira estrofe fala de uma observação, uma constatação simples, direta, cotidiana. Já a segunda estrofe é um desdobramento da primeira, a partir de uma reflexão proveniente da luz de vela (o nome da música).
Dessa reflexão decorre um salto para uma visão do mundo externo que vai além do usual: “A noite é tão escura quanto natural”. E um salto para uma visão do mundo interno: “E a luz é a projeção do que você procura entender”.
Como em “Criaturas da Noite” (de outro autor) há uma divisão em três etapas que caminha do exterior para o interior da pessoa.
A constatação de que a escuridão da noite é algo natural parece ser uma descoberta forçosamente feita a partir da falta de energia elétrica que seria um “milagre deste século”. No entanto, paradoxalmente, embora milagre, fez-se ausente e deixou espaço à “luz de vela”, algo aparentemente mais primitivo, porém mais “esclarecedor”, trazendo certo insight. A escuridão da noite, quando natural, deixa de ser amedrontadora. O escuro noturno, que comumente simboliza o temor de energias desconhecidas do inconsciente, quando encarado de outra forma, passa a ser fonte de energias positivas que permitem detectar um paradoxo próprio do interior do indivíduo: enquanto a escuridão pode ser natural, a luz pode ser algo indireto como uma “projeção” de outra coisa, ou seja, torna-se algo intermediário. No entanto, como a luz associa-se à noção de consciência, essa função intermediária aponta para aquilo que “se quer entender”.
Esse jogo de contrastes é a própria indicação de um insight, um “enxergar dentro” a partir de “um novo enxergar fora”.
O pêndulo entre dentro e fora da pessoa continua:

No meu abrigo noturno
Eu procuro ler meus sonhos
Mas sei que o que eu preciso é enxergar no escuro.
E me acostumar com o espaço
Que o meu próprio corpo ocupa
E ver com a clareza independente da luz.
Na quarta estrofe, o “abrigo noturno” pode ser sua casa sem energia, mas também pode ser concomitantemente o próprio interior do poeta, onde ele procura “ler os sonhos”. Ler os sonhos implica em entendê-los, em compreender sua simbologia, sejam sonhos enquanto se dorme, ou sejam os sonhos que correspondem aos anseios e expectativas. No entanto, conclui-se que “no abrigo noturno”, embora se tente ler os sonhos, impõe-se uma necessidade, a necessidade de “enxergar no escuro”. Ora, nesse sentido “enxergar no escuro” parece ser mais difícil do que “ler os sonhos”, ou talvez ainda seja a pré-condição para que essa leitura seja possível. Enxergar no escuro remete-se a uma capacidade menos comum, a uma habilidade refinada, a uma capacidade de “vislumbrar o inconsciente”, embora seja um vislumbre no escuro, ou seja, as sombras continuam presentes, pois esse é um escuro que comporta no máximo uma luz de vela.
Na estrofe seguinte o acostumar-se com o espaço que o próprio corpo ocupa parece ser uma constatação de algo que sempre esteve presente junto à pessoa, mas que passava despercebido. Esse acostumar-se com o espaço do corpo também implica em uma percepção de seus próprios limites. Essa percepção pode permitir uma nova visão, um novo alcance dos sentidos, de modo que pode-se ver “com clareza” independentemente da luz. Aqui há um jogo de palavras entre “clareza”, que vem de “claro”, ou seja, iluminado, e o ser capaz de ver “sem a luz”. Ora, sabe-se que, fisicamente, sem a luz é impossível ver o que quer que seja. Portanto, esse “ver com clareza” implica em outro tipo de visão, diferente de visão física, constatação essa associada à percepção dos próprios limites físicos do corpo.
Dessa percepção física, passa-se à reflexão teórica da ciência física. O poeta compara-se a um elétron, ou seja, uma partícula associada á noção de energia, e assim também á noção de luz (composta de fótons), mas ao mesmo tempo da energia elétrica miraculosa do século XX que trafega por elétrons.

Vou me tocando e chocando
Feito um elétron doido
Até bater no teu peito
Querendo mesmo é repouso
Eu preciso é enxergar no escuro.
Mas esse elétron não é apenas uma partícula racional e fria, mas é uma partícula cheia de energia emocional que o faz tocar e chocar feito doido até bater “no peito”, o peito símbolo do lado emocional da pessoa. Ao atingir esse lado emocional, o poeta quer repouso. Parece ter sido difícil chegar a bater no peito, chegar a constatar a emoção além da razão, a constatar que a emoção também é parte importante no desenvolvimento interior e não só o entendimento racional. Como paralelo e desfecho disso tudo repete-se que “Eu preciso é enxergar no escuro”, ou seja, há necessidade de “enxergar dentro”, de se descobrir, ao perceber o que se revela a partir de uma “luz de vela”.







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