A Música Brasileira é riquíssima em termos de poesia presente
em suas letras. Muitas delas são consideradas até mesmo como obras clássicas
que servem inclusive para estudo e ensino da própria língua portuguesa. Apesar
disso, há diversas músicas que após certo sucesso tornam-se quase esquecidas. Em
se falando de “sucesso”, deve-se levar em conta variados fatores que polemizam
esse termo e pode-se eventualmente encaminhar-se o debate para o conceito de “indústria
cultural” na linha do pensamento de Adorno.
A indústria cultural, o consumismo, o marketing são elementos
que reforçam as diferenças entre os com “muito sucesso” e os com “pouco sucesso”,
sendo que o mesmo artista, ou a mesma obra, pode flutuar entre um e outro
grupo. Mas aqui pretendo me referir à “memória coletiva” e à “memória cultural”
e também a certa “amnésia cultural”. Assim, no transcorrer temporal da história,
pode haver “lapsos” de memória cultural, de modo que uma determinada comunidade
humana pode ter um tipo de “esquecimento cultural”. Há quem diga, em certo tom
de ironia, que o brasileiro só tem memória do passado até 15 anos para trás...
Talvez seja um pouco assim, mas na verdade esse fenômeno é próprio do ser
humano individualmente e coletivamente, como um mecanismo de defesa, ou como
efeito de mudança de paradigmas, entre outros fatores.
A segunda metade do século XX corresponde ao período “pós-moderno”.
Esse período se caracteriza pela valorização de pragmatismo, eficiência e
resultados no campo político e econômico. O campo cultural nem sempre acompanha
esses outros campos de forma harmônica, mas muitas vezes em oposição; de certo
modo é o que ocorreu com o movimento de contracultura dos anos 1960, que depois
foi parcialmente absorvido pela estrutura formal capitalista. Nesse período
entre o ano 1950 e o ano 2000, a década de 1970 é uma década um tanto “esquecida”.
No que diz respeito à música brasileira, em relação a esta década, a maioria dos
artistas que ficaram na memória coletiva foram os que apareceram nas duas
décadas anteriores, inclusive atravessando os anos 1970 e prosseguindo pelas
décadas seguintes. A partir dos anos 1980 surgiram outros artistas da música
que também ficaram na memória.
Pode-se fazer certa analogia desse processo com o ocorrido em
relação à Arte Gótica e ao Período Renascentista. No início do Renascimento,
houve certa “perda da memória” da linguagem artística gótica, de modo que essa
forma de arte passou a ser considerada sem estética, estranha, rudimentar...
Somente no século XIX, com o Romantismo, ocorreu revalorização da Arte Gótica
cuja obra corria risco de ser destruída ou perdida.
Voltando aos anos 1970, talvez tenhamos que revalorizar,
recuperar a música produzida no Brasil nessa década, além daquela dos já anteriormente
consagrados que (certamente com grande mérito) mantiveram-se criativos.
Feitos esses preâmbulos, falemos então da música “Criaturas
da Noite” da banda “O Terço”. “O Terço” trabalhava com uma música que ficava
entre rock progressivo, rock rural e MPB, com refinada produção.
A música “Criaturas da Noite” foi gravada no álbum de 1974 do
Terço e corresponde ao nome do próprio álbum, sendo de autoria de Flávio
Venturini e Luís Carlos Pereira de Sá (o Sá de Sá, Rodrix e Guarabyra).
Como quero falar da poesia, não vou me deter na música,
embora ela permita uma melhor compreensão da letra. Apenas como breve menção,
podemos dizer que a melodia e a harmonia têm nuances de música clássica.
A divisão a seguir dos versos não necessariamente acompanha a
divisão original dos autores. Neste sentido, faço uma divisão que permita uma
análise, com algum risco de parcialmente comprometer a intenção lírica.
Criaturas da Noite
(Flávio Venturini e Luís Pereira de Sá)
As criaturas da noite
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno.
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno.
Os habitantes da noite
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol.
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol.
Eu te espero chegar
Vendo os bichos sozinhos na noite.
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.
Vendo os bichos sozinhos na noite.
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.
Me sinto triste de noite
Atrás da luz que não acho
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol.
Atrás da luz que não acho
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol.
Podemos talvez dividir em três partes essa letra. Uma
primeira parte correspondente às duas primeiras estrofes que vou chamar de “observação
externa”. Uma segunda parte correspondente à terceira estrofe que vou chamar e “observação
intermediária” e uma terceira parte com a quarta estrofe correspondente a uma “observação
interna”.
Na primeira parte o artista observa à distância (ou seja, não
se envolve) que “as criaturas da noite procuram luz”. Sendo criaturas noturnas,
devem ter características lunares, a luz que procuram é uma luz lunar, uma luz
das sombras, do inconsciente, em uma região em que as coisas são gestadas. Em
antigas tradições o dia foi gestado na noite; no início do Universo primeiro
teria vindo a noite e depois o dia. O sol é mais forte e mais brilhante, mas
ele precisou da noite para que fosse gestado.
As criaturas com “voo calmo e pequeno” parecem ser insetos,
como as mariposas de Adoniran Barboza que “roda em volta da lâmpida pra
sisquentar”. Mas as criaturas da noite precisam de outra coisa, precisam secar
o peso do sereno em suas asas. O sereno é outro símbolo noturno. O nome “sereno”
evoca serenidade, calma, tal como o calmo voo das criaturas. No entanto, embora
voo “calmo” as criaturas têm um excesso do “sereno” que lhes pesa sobre as
asas. O sereno é o mistério invisível da noite que, quase imperceptível, se faz
sentir quase como uma garoa, ou um quase orvalho. Essas criaturas também
poderiam ser anjos com os mistérios noturnos pesando sobre as asas. Talvez o
voo noturno não seja como o diurno, à luz do dia. O voo noturno tem mais
riscos.
Na segunda estrofe o artista ainda é um observador externo,
mas agora ele está mais próximo das criaturas, ele se envolve com elas até
certo ponto e as recebe em sua casa. É interessante que sua reação não é de
levantar-se e espantar os visitantes voadores; não os vê como intrusos. Mais de
perto, ele sabe que as criaturas “são viajantes”, passageiros, sem lugar fixo,
vagam, procuram, mas precisam chegar antes dos raios de sol. Eles não pertencem
ao mundo solar, do plenamente visível, do consciente, do evidente. São da “pequena”
energia que percorre os símbolos do inconsciente.
Na terceira estrofe passa-se para um estágio de interlocução
com alguém, que parece estar ausente nesse momento, mas que é uma pessoa
esperada, aguardada na noite, de modo que condiciona uma vigília. Essa vigília,
ao mesmo tempo em que se entretém com os bichos da noite, implica em uma
tentativa de esquecer o próprio destino. Se assim é, pode tratar-se de um
destino doloroso, ou incerto, obscuro, talvez mais passível de ser esquecido na
penumbra da noite, do que à plena luz do sol.
Se no fim da estrofe anterior o artista percebe querer
esquecer seu destino, na quarta estrofe ele mergulha em seu próprio interior e
percebe-se “triste de noite”, constatando que procura uma luz que não consegue
encontrar. Talvez essa luz seja uma lanterna que guie e ilumine o caminho até o
self, o seu eu mais íntimo, através das sendas obscuras do inconsciente.
No final então o artista constata que ele também é uma criatura
da noite, pois ele também é um viajante querendo chegar antes dos raios de sol.
Mas se ele tem uma varanda, então essa viagem é uma viagem interior. Quando
vierem os raios de sol ele já quer ter chegado ao seu destino. Convém que a luz
do sol, da plena consciência, já encontre o viajante “chegado”, encontrado
consigo mesmo.
Mas todo o conjunto dos versos configura um momento de
observação e de espera, de percepção e de insight que implica em certa
incerteza e nostalgia, sugerindo um senso de busca que também se apresenta em
outra letra de Sá para a música “Caçador de mim”.
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