Massangana (1) - (parte 1)
(de "Minha Formação" - 1900)
O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança
esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...
Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro
ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, em
certo sentido, os de minha formação, instinto ou moral, definitiva...
Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente
do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal. A
terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... (2) Nunca se me
retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha
vida. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer
ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de
escravos, distribuídos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro
ao lado da casa da morada, e de rendeiros, ligados ao proprietário pelo
benefício da casa de barro que os agasalhava ou da pequena cultura que ele lhes
consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se
a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por trás,
em uma ondulação do terreno, a capela sob a invocação de São Mateus. Pelo
declive do pasto árvores isoladas abrigavam sob sua umbela impenetrável grupos
de gado sonolento. Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda
tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado
a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água quase dormente sobre os seus
largos bancos de areia que se embarcava o açúcar para o Recife; ela alimentava
perto de casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam
caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe começavam os mangues que
chegavam até à costa de Nazaré...Durante o dia, pelos grandes calores,
dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes
tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros
da planície transformavam-se em uma poeira d’ouro; a boca da noite, hora das
boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus
estrelados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em
mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias
da praia e ouvirão o ruído da vaga. EU por vezes acredito pisar a espessa
camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes
carros de bois...
Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos
antes dela nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra.
Eu sinto a ideia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e
querido de diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há
espíritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que
outros tivessem criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar
inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporte
cativeiros contrários, e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixada
como herança. Foi na pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.
As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que
profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin (3) escreveu
esta variante do pensamento de Cristo sobre a infância: “A criança sustenta
muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda
sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o
privilégio de carregar”. Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda
a simbólica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas
reminiscências miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras tiragens da alma. Pela
perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão causada. Assim
eu vi a Criação de Miguel Ângelo na Sixtina e a de Rafael nas Loggie (4), e,
apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do
primeiro paraíso que fizeram passar diante de meus olhos em um vestígio de
antigo Mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha romana, mas o muezzin (5) íntimo, o timbre que
soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos
escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é o Millet (6) inalterável que se
gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me
dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga
que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de
esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças
dos jangadeiros, mas achei à beira da praia e tive a revelação súbita,
fulminante, da terra líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais
sensível do meu kodak infantil, que
ficou sendo para mim o eterno cliché
do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa! (7)
Meus moldes de ideias e de sentimentos datam quase todos
dessa época. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer
reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as
primeiras hastes da alma aparecem tão frescas como se tivessem sido calcadas
nesta mesma manhã... O encanto que se encontra nesses cidoli (8) grosseiros e ingênuos da infância não vem senão de
sentirmos que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada. Eles
são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento
que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião, e a natureza, assim os
grandes fatos morais em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição
e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da
religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas
as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana
do Pai Tomás (9), no original da
dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro
inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo,
do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da
escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido,
de cerca de dezoito anos, o qual abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de
Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das
vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque, o dele, dizia-me, o castigava,
e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me
descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então
familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.
Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das
primeiras vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não
poderiam mais tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer
senão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas
forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da
criatura, e na hora em que vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria,
dizer o meu nunc dimittis (10), por
ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e,
no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que
muito espantaria um Garrison (11) ou um John Brown (12): a saudade do escravo.
É que tanto da parte do senhor era inscientemente egoísta,
tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por
muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas
vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que
recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o, como
se fosse uma religião natural e viva; como os seus mitos, sua legendas, seus
encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas
lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa,
sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao
luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me
amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância;
aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro
presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e eles deve
ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e
reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. Este
pareceu-me, por contraste com o instinto mercenário da nossa época,
sobrenatural à força de naturalidade humana, e, no dia em que a escravidão foi
abolida, senti distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o
coração humano se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o
tornaram possível.
Notas:
1 – Massangana era o nome do engenho em Pernambuco onde
Nabuco passou os primeiros anos de sua vida aos cuidados de sua madrinha Dona
Ana Rosa Falcão de Carvalho. Sua família residia no Rio de Janeiro (onde seu
pai foi deputado e ministro).
2 – Cabo de Santo Agostinho.
3 – John Ruskin, escritor inglês que se dedicou especialmente
a assuntos de estética em que teve grande influência na era vitoriana.
4 – Célebres galerias no Palácio do Vaticano, pintadas por
Rafael.
5 – Árabe anunciador muçulmano da hora da oração.
6 – Jean-François Millet (1814-1875), pintor francês, autor
do célebre quadro l’Angelus, representando camponeses em oração ao por do sol.
7 – Exclamação de alegria dos dez mil gregos dirigidos por
Xenofonte quando viram o mar, após dezesseis meses de retirada.
8 – Grego. Plural de cidolon:
figura, imagem.
9 – Cabana do Pai Tomás, Uncle Tom’s Cabin, romance de
Harriet Beecher-Stowe sobre a escravidão nos Estados Unidos, do qual o
Presidente Lincoln teria dito que provocou a guerra entre os Estados.
10 – Nunc dimittis servum Domine: “Agora despede o teu servo,
Senhor”. Palavras do velho Simeão ao ver no templo o infante Jesus que
reconheceu como o salvador de Israel.
11 – William Lloyd Garrison, célebre abolicionista americano.
12 – Abolicionista americano. Condutor de uma escaramuça
contra Harper’s Ferry em 1859 que foi o início da Guerra da Secessão. Preso
pelos Sulistas, foi enforcado em Charlestown, West Virginia.
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