De um texto de Octavio de Faria
Conforme Octavio de Faria parece totalmente impossível filiar
Coelho Neto a uma escola literária. E talvez essa tenha sido uma de suas
maiores forças: pairou sempre acima das escolas e dos grupos literários,
absolutamente fiel a si mesmo e ao seu destino de escritor, ao mesmo tempo
chefe incontestável de toda uma geração e isolado no seu esplendor de exemplar
único de sua espécie no Brasil.
Nesse sentido, foi talvez o mais autêntico de nossos
escritores: vivendo da pena e para a pena, jamais se curvou à sedução das
capelas literárias ou ao incenso das academias. Escrevendo por destinação, por
força da lei íntima da sua natureza de artista e de escritor, não podia,
naturalmente, prender-se ao rótulo que a posteridade lhe gostaria de reservar.
Um romântico? Um realista? Um simbolista? Um eclético?
É praticamente impossível classificá-lo. Daí as variações, as
discussões inúmeras. Dele dirá Péricles de Morais: “O último dos românticos e o
primeiro dos realistas” (1). E atenuará José Maria Belo: “Um romântico inatual”
(2). E investirá José Veríssimo: “Mistura incoerente de tendências estéticas” (3).
Opiniões divergentes, variações, pontos de vista indefinidamente discutíveis. E
com que proveito, aliás? Ainda conforme sugere Octavio de Faria, fiquemos com a
fórmula sintética de Sílvio Romero que fala, simplesmente, em “ecletismo individualista”.
Sua difícil vida foi um exemplo de permanente amor à arte e
desassombrada fidelidade à condição de escritor. Se, ao fim da existência, a
fama lhe sorriu, se logrou viver da pena, sustentando-se e à numerosa família,
convém desde logo lembrar que tudo isso como que lhe foi dado “por acréscimo”,
isto é, sem que jamais fraquejasse em seus propósitos. Foi realmente um exemplo
sobre o qual os homens de letras de hoje (dizia Octavio de Faria em 1963) devem
ter os olhos fixos. Sua jamais desmentida fidelidade pode servir de lema a
todos nós que vivemos o drama de um mundo contaminado por escritores “comprometidos”
ou infiéis a si mesmo e à Verdade.
Escritor, essencialmente escritor, não se deixou, no entanto,
encerrar na “torre de marfim” de sua imaginação absolutamente invulgar. De
olhos voltados para o Brasil e para os problemas nacionais, sofrendo com eles e
através deles, ansiando por resolvê-los ou vê-los resolvidos, legou-nos uma
obra na qual, seja nos diversos livros educacionais ou nos breviários cívicos,
seja nos romances, contos, apólogos, lendas ou peças teatrais, reflete-se
constantemente a sua preocupação com os destinos do país – esse “instinto de
nacionalidade” no qual, já em 1873, Machado de Assis encontrava o principal
característico de nossa literatura (4).
Ao lado de qual de nossos grandes vultos literários colocá-lo?
A quem irmaná-lo? Também não é questão fácil de resolver, pois não há caminho
direto que leve a conclusão segura.
Pela trilha das influências e das leituras de formação,
dificilmente progrediremos. Pois é à sombra de inúmeros altares que se processa
a sua “iniciação”. De um lado temos a Bíblia, de outro Shakespeare. A um ângulo
vemos os clássicos gregos, notadamente Ésquilo e Sófocles. Em outro, as Mil e
Uma Noites. Tanto lê Camilo Castelo Branco como Eça de Queiroz. Tanto admira
Flaubert e Maupassant quanto Théophile Gauthier e os Goncourt. Onde a síntese?
E como aproximá-lo de qualquer outro dos nossos escritores da época?
Octavio de Faria via Coelho Neto bem próximo dos grandes
vultos da corrente naturista, como Gonçalves Dias, José de Alencar, Castro
Alves ou Euclides da Cunha. Se o seu entusiasmo mais profundo caminhava no
sentido da beleza clássica ou do realismo da nova escola francesa, isto não
impedia que seu vulto global se avizinhasse impressionantemente desses grandes “eloquentes”
(5) da nossa literatura, “verdadeiros homens rios, extensos e caudalosos, ricos
e possantes como a nossa natureza, seres quase descomunais, que pareciam não
saber falar baixo nem se calar por um instante e que, a cada uma de suas
palavras, testemunhavam a natureza extraordinária que os condicionava e como
que os empurrava para a frente na ânsia de que a reproduzissem, fixando-a,
consagrando-a numa grande estátua barroca...”
Aliás, é nesse mesmo sentido que Coelho Neto depõe. São
palavras suas essas que, afastando de sua formação qualquer influência direta,
desse ou daquele livro, dessa ou daquela corrente, decisivamente esclarecem: “Para
a minha formação literária, não contribuíram autores, contribuíram pessoas. Até
hoje sofro a influência do primeiro período de minha vida no sertão. Foram as
histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheios
de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens
brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados...
Nunca mais essa mistura de ideais e de raças deixou de predominar, e até hoje
se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos
negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente entre esse fundo
complexo e a cultura literária que decorre toda a minha obra” (6). .
Colocando-se acima das escolas e das correntes literárias,
sempre fiel à verdade artística que ao longo de toda uma ascese logrou firmar.
Coelho Neto nos legou um panorama completo de nossa realidade mais íntima desde
os anos que antecederam a República (7) até o fim da terceira década do século
XX (8). Panorama completo, extraordinário mesmo, que não creio tenha sido
igualado por nenhum dos nossos melhores ficcionistas da época. E, falando
assim, não me esqueço nem dos instantâneos admiráveis que um Aluísio Azevedo
fixou – impressionantes de verdade imediata, sem dúvida, mas sensivelmente
limitados em consequência da escravidão do romancista a fórmulas literárias por
demais apertadas e transitórias – nem das análises profundas que devêssemos a
Machado de Assis – poderosas em detalhe psicológico, em sensibilidade humana,
mas infelizmente circunscritas a um mundo íntimo por demais tímido e limitado.
Impossível seria fazer aqui uma análise detalhada da obra de
Coelho Neto. A descrição dos romances básicos e das principais peças de teatro,
a simples enumeração dos contos a reter (9), dos apólogos a isolar, das
crônicas a destacar, das conferências a sintetizar, levaria para além dos
limites desta apresentação crítica.
Nesse sentido, Octavio de Faria refere que a obra de Coelho
Neto parece a ele um imenso retrato da vida nacional no curioso e difícil
período entre o último quartel do século XIX até o fim do primeiro quartel do
século XX.
O sonho inicial do romancista tinha sido mais vasto. Ele
próprio, ao ser sagrado Príncipe dos Prosadores Brasileiros, confessou que o
seu ideal de mocidade tinha sido escrever uma vasta e uniforme História do
Brasil (10) e nós sabemos que Anselmo Ribas (o Coelho Neto de A Capital Federal, de A Conquista e de Fogo Fátuo) sonha com uma “obra monumental”: “toda a história da
Pátria condensada em uma série de romances” (11).
Mas, se não chegou a realizar esse vasto e talvez utópico
sonho de mocidade, o que nos legou não deixa de ser um retrato total,
verdadeira síntese de nossa existência como povo em determinada época. Retrato
total, insiste Octavio de Faria, porque não circunscrito ao aspecto histórico
social – como se poderia concluir das leituras isoladas de A Capital Federal, A Conquista, Fogo Fátuo, Miragem (parte relativa
à Proclamação da República), O Morto
(parte relativa á revolta da Esquadra). Retrato total, volta a insistir Faria,
porque também não limitado pelas coordenadas psicológicas – como se poderia
inferir da leitura dos romances: Turbilhão,
Inverno em Flor, Tormenta, Esfinge, ou dos contos: “Água de Juventa”, “Desapontamento”,
“Confidências”, “Viúvas”, etc., ou das peças de teatro: Quebranto, Neve ao Sol, A Muralha, O Dinheiro, etc. Retrato total, persiste Faria, porque, não se
contentando com a vida intensa e complexa das nossas cidades, e especialmente
da Capital Federal (Rio de Janeiro), invadiu a nossa selva e a nossa alma
primitiva, não só no romance perfeitamente conseguido que é Rei Negro e na grandiosa tentativa que é
o Rajá de Pendjab, como numa série de contos famosos, de que citarei apenas os
principais: “Os Velhos”, “Praga”, “Bom Jesus da Mata”, “Banzo”, “A Tapera”, “Mau
Sangue”, “Assombramento”, “Firmo, o Vaqueiro”, e que formam o encanto básico da
trilogia já hoje clássica: Sertão, Treva e Banzo, obras de seguro e
indiscutível cunho nacional, mas felizmente indenes de regionalismo
sistemático.
1 – Péricles de Morais. Coelho
Neto e a sua obra, pág. 260.
2 – José Maria Belo. As
Margens dos Livros.
3 – José Veríssimo. Estudos
de Literatura Brasileira. 1ª série.
4 – Machado de Assis. “Instinto
de Nacionalidade” em Crítica
Literária. Ed. Jacson, t.29, pág. 125.
5 – De Coelho Neto disse Manuel de Souza Pinto, que é “no
mais nobre, no mais sóbrio, e no mais belo significado do termo, um eloquente”
(“Coelho Neto” em Terra Moça, pág. 281).
6 – João do Rio. “Coelho
Neto” em O Momento Literário,
pág. 53.
7 - ... de cuja estranha Proclamação nos dá um magnífico
instantâneo em Miragem, cap. VII, págs.
205 et seq.
8 - ... uma vez que, dessa época em diante, sua obra começa a
declinar em consequência da morte dos entes mais queridos e da própria doença
final (1932-1934).
9 – num total de aproximadamente 720.
10 – Humberto de Campos. Crítica.
1ª série. Págs. 75-76.
11 – Fogo Fátuo. Pag.
281, e, no mesmo sentido, A Conquista,
pag. 228. – E a indagar até que ponto O
Rajá do Pendjab e Rei Negro
estão nessa linha de pensamento...
Fonte bibliográfica: Coelho Neto – romance, por Octavio de
Faria, da Coleção Nossos Clássicos, 2ª edição; direção de Alceu Amoroso Lima,
Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro,
1963.
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