segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Coelho Neto – Estudo Crítico de sua Obra - parte 1

De um texto de Octavio de Faria

Conforme Octavio de Faria parece totalmente impossível filiar Coelho Neto a uma escola literária. E talvez essa tenha sido uma de suas maiores forças: pairou sempre acima das escolas e dos grupos literários, absolutamente fiel a si mesmo e ao seu destino de escritor, ao mesmo tempo chefe incontestável de toda uma geração e isolado no seu esplendor de exemplar único de sua espécie no Brasil.
Nesse sentido, foi talvez o mais autêntico de nossos escritores: vivendo da pena e para a pena, jamais se curvou à sedução das capelas literárias ou ao incenso das academias. Escrevendo por destinação, por força da lei íntima da sua natureza de artista e de escritor, não podia, naturalmente, prender-se ao rótulo que a posteridade lhe gostaria de reservar. Um romântico? Um realista? Um simbolista? Um eclético?
É praticamente impossível classificá-lo. Daí as variações, as discussões inúmeras. Dele dirá Péricles de Morais: “O último dos românticos e o primeiro dos realistas” (1). E atenuará José Maria Belo: “Um romântico inatual” (2). E investirá José Veríssimo: “Mistura incoerente de tendências estéticas” (3). Opiniões divergentes, variações, pontos de vista indefinidamente discutíveis. E com que proveito, aliás? Ainda conforme sugere Octavio de Faria, fiquemos com a fórmula sintética de Sílvio Romero que fala, simplesmente, em “ecletismo individualista”.
Sua difícil vida foi um exemplo de permanente amor à arte e desassombrada fidelidade à condição de escritor. Se, ao fim da existência, a fama lhe sorriu, se logrou viver da pena, sustentando-se e à numerosa família, convém desde logo lembrar que tudo isso como que lhe foi dado “por acréscimo”, isto é, sem que jamais fraquejasse em seus propósitos. Foi realmente um exemplo sobre o qual os homens de letras de hoje (dizia Octavio de Faria em 1963) devem ter os olhos fixos. Sua jamais desmentida fidelidade pode servir de lema a todos nós que vivemos o drama de um mundo contaminado por escritores “comprometidos” ou infiéis a si mesmo e à Verdade.
Escritor, essencialmente escritor, não se deixou, no entanto, encerrar na “torre de marfim” de sua imaginação absolutamente invulgar. De olhos voltados para o Brasil e para os problemas nacionais, sofrendo com eles e através deles, ansiando por resolvê-los ou vê-los resolvidos, legou-nos uma obra na qual, seja nos diversos livros educacionais ou nos breviários cívicos, seja nos romances, contos, apólogos, lendas ou peças teatrais, reflete-se constantemente a sua preocupação com os destinos do país – esse “instinto de nacionalidade” no qual, já em 1873, Machado de Assis encontrava o principal característico de nossa literatura (4).
  
Ao lado de qual de nossos grandes vultos literários colocá-lo? A quem irmaná-lo? Também não é questão fácil de resolver, pois não há caminho direto que leve a conclusão segura.
Pela trilha das influências e das leituras de formação, dificilmente progrediremos. Pois é à sombra de inúmeros altares que se processa a sua “iniciação”. De um lado temos a Bíblia, de outro Shakespeare. A um ângulo vemos os clássicos gregos, notadamente Ésquilo e Sófocles. Em outro, as Mil e Uma Noites. Tanto lê Camilo Castelo Branco como Eça de Queiroz. Tanto admira Flaubert e Maupassant quanto Théophile Gauthier e os Goncourt. Onde a síntese? E como aproximá-lo de qualquer outro dos nossos escritores da época?
Octavio de Faria via Coelho Neto bem próximo dos grandes vultos da corrente naturista, como Gonçalves Dias, José de Alencar, Castro Alves ou Euclides da Cunha. Se o seu entusiasmo mais profundo caminhava no sentido da beleza clássica ou do realismo da nova escola francesa, isto não impedia que seu vulto global se avizinhasse impressionantemente desses grandes “eloquentes” (5) da nossa literatura, “verdadeiros homens rios, extensos e caudalosos, ricos e possantes como a nossa natureza, seres quase descomunais, que pareciam não saber falar baixo nem se calar por um instante e que, a cada uma de suas palavras, testemunhavam a natureza extraordinária que os condicionava e como que os empurrava para a frente na ânsia de que a reproduzissem, fixando-a, consagrando-a numa grande estátua barroca...”
Aliás, é nesse mesmo sentido que Coelho Neto depõe. São palavras suas essas que, afastando de sua formação qualquer influência direta, desse ou daquele livro, dessa ou daquela corrente, decisivamente esclarecem: “Para a minha formação literária, não contribuíram autores, contribuíram pessoas. Até hoje sofro a influência do primeiro período de minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheios de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados... Nunca mais essa mistura de ideais e de raças deixou de predominar, e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente entre esse fundo complexo e a cultura literária que decorre toda a minha obra” (6). .
Colocando-se acima das escolas e das correntes literárias, sempre fiel à verdade artística que ao longo de toda uma ascese logrou firmar. Coelho Neto nos legou um panorama completo de nossa realidade mais íntima desde os anos que antecederam a República (7) até o fim da terceira década do século XX (8). Panorama completo, extraordinário mesmo, que não creio tenha sido igualado por nenhum dos nossos melhores ficcionistas da época. E, falando assim, não me esqueço nem dos instantâneos admiráveis que um Aluísio Azevedo fixou – impressionantes de verdade imediata, sem dúvida, mas sensivelmente limitados em consequência da escravidão do romancista a fórmulas literárias por demais apertadas e transitórias – nem das análises profundas que devêssemos a Machado de Assis – poderosas em detalhe psicológico, em sensibilidade humana, mas infelizmente circunscritas a um mundo íntimo por demais tímido e limitado.
Impossível seria fazer aqui uma análise detalhada da obra de Coelho Neto. A descrição dos romances básicos e das principais peças de teatro, a simples enumeração dos contos a reter (9), dos apólogos a isolar, das crônicas a destacar, das conferências a sintetizar, levaria para além dos limites desta apresentação crítica.
Nesse sentido, Octavio de Faria refere que a obra de Coelho Neto parece a ele um imenso retrato da vida nacional no curioso e difícil período entre o último quartel do século XIX até o fim do primeiro quartel do século XX.
O sonho inicial do romancista tinha sido mais vasto. Ele próprio, ao ser sagrado Príncipe dos Prosadores Brasileiros, confessou que o seu ideal de mocidade tinha sido escrever uma vasta e uniforme História do Brasil (10) e nós sabemos que Anselmo Ribas (o Coelho Neto de A Capital Federal, de A Conquista e de Fogo Fátuo) sonha com uma “obra monumental”: “toda a história da Pátria condensada em uma série de romances” (11).
Mas, se não chegou a realizar esse vasto e talvez utópico sonho de mocidade, o que nos legou não deixa de ser um retrato total, verdadeira síntese de nossa existência como povo em determinada época. Retrato total, insiste Octavio de Faria, porque não circunscrito ao aspecto histórico social – como se poderia concluir das leituras isoladas de A Capital Federal, A Conquista, Fogo Fátuo, Miragem (parte relativa à Proclamação da República), O Morto (parte relativa á revolta da Esquadra). Retrato total, volta a insistir Faria, porque também não limitado pelas coordenadas psicológicas – como se poderia inferir da leitura dos romances: Turbilhão, Inverno em Flor, Tormenta, Esfinge, ou dos contos: “Água de Juventa”, “Desapontamento”, “Confidências”, “Viúvas”, etc., ou das peças de teatro: Quebranto, Neve ao Sol, A Muralha, O Dinheiro, etc.  Retrato total, persiste Faria, porque, não se contentando com a vida intensa e complexa das nossas cidades, e especialmente da Capital Federal (Rio de Janeiro), invadiu a nossa selva e a nossa alma primitiva, não só no romance perfeitamente conseguido que é Rei Negro e na grandiosa tentativa que é o Rajá de Pendjab, como numa série de contos famosos, de que citarei apenas os principais: “Os Velhos”, “Praga”, “Bom Jesus da Mata”, “Banzo”, “A Tapera”, “Mau Sangue”, “Assombramento”, “Firmo, o Vaqueiro”, e que formam o encanto básico da trilogia já hoje clássica: Sertão, Treva e Banzo, obras de seguro e indiscutível cunho nacional, mas felizmente indenes de regionalismo sistemático.  
  
1 – Péricles de Morais. Coelho Neto e a sua obra, pág. 260.
2 – José Maria Belo. As Margens dos Livros.  
3 – José Veríssimo. Estudos de Literatura Brasileira. 1ª série.
4 – Machado de Assis. “Instinto de Nacionalidade” em Crítica Literária. Ed. Jacson, t.29, pág. 125.
5 – De Coelho Neto disse Manuel de Souza Pinto, que é “no mais nobre, no mais sóbrio, e no mais belo significado do termo, um eloquente” (“Coelho Neto” em Terra Moça, pág. 281).
6 – João do Rio. “Coelho Neto” em O Momento Literário, pág. 53.
7 - ... de cuja estranha Proclamação nos dá um magnífico instantâneo em Miragem, cap. VII, págs. 205 et seq.
8 - ... uma vez que, dessa época em diante, sua obra começa a declinar em consequência da morte dos entes mais queridos e da própria doença final (1932-1934).
9 – num total de aproximadamente 720.
10 – Humberto de Campos. Crítica. 1ª série. Págs. 75-76.
11 – Fogo Fátuo. Pag. 281, e, no mesmo sentido, A Conquista, pag. 228. – E a indagar até que ponto O Rajá do Pendjab e Rei Negro estão nessa linha de pensamento...
Fonte bibliográfica: Coelho Neto – romance, por Octavio de Faria, da Coleção Nossos Clássicos, 2ª edição; direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963.


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