sábado, 29 de novembro de 2014

Coelho Neto – Estudo Crítico de sua Obra – Parte 2

(conforme texto de Octavio de Faria)

Essa obra enorme – mais de cento e vinte volumes, dos quais ainda alguns inéditos – tinha de ser, naturalmente, desigual. Nem há nada de espantar nisso. (É o exemplo dos grandes mestres, chamem-se eles Shakespeare, Balzac, Tolstoi, Dostoievski ou Camilo). Tanto mais quanto, como sabemos, foi quase toda ela realizada em condições de vida difíceis que obrigavam a uma produção intensiva e contínua, onde, muitas vezes, as correções, as supressões, o burilamento, a escolha, tornavam-se impossíveis.
Obra desigual, portanto, onde há que distinguir o essencial do que não o é, obras primas de livros simplesmente comuns, contribuições fundamentais para a literatura brasileira do que é apenas circunstancial, momentâneo: certos contos e apólogos, crônicos, sainetes, etc.
Não é aqui o momento de fazê-lo. Apenas, de afirmar que nenhum desses senões invalida, nem de longe que seja, o peso da obra total. (Como outros pequenos senões não conseguem atingir a grandeza das obras de Sheakespeare, Balzac, Tolstoi, Dostoievski ou Camilo). São “momentos”, pequenos fenômenos em si absolutamente naturais, desprovidos de significação maior, a que interessam apenas aos estudiosos, aos críticos, aos exegetas da obra de Coelho Neto.
Fiquemos, portanto, com as dezenas de obras de primeira qualidade, que nos legou e não nos deixemos também seduzir pelas acusações que contra elas foram formuladas, no tocante ao estilo.
Nenhuma dúvida: Coelho Neto não é um autor “fácil”. E não o é, sobretudo, para a nossa comum e moderna ignorância de língua portuguesa. Dono de um prodigioso vocabulário – calculado em mais de vinte mil palavras – sabendo manejá-lo e manejando-o com plena convicção do acerto com que o fazia, não podia deixar de se tornar “difícil de entender”, às vezes mesmo misterioso para a ignorância de muitos.
Um empolado? Um gongórico? Um cego apologista do culto do estilo pelo estilo? Um escravo da forma? Todas essas acusações foram formuladas, exploradas. Fizeram delas mesmo o cavalo de batalha de mil condenações, às vezes levianas, às vezes ridículas. E foi preciso que o tempo e o bom senso dos críticos as dissipassem estrepitosamente para que a verdade enfim se restabelecesse a respeito do estilo de Coelho Neto.
É que, nesse estilo, ao longo de uma obra cuja publicação se estira por mais de quarenta anos, verifica-se uma verdadeira ascese literária que não é possível deixar de reconhecer ou não levar em consideração fundamental. De Rapsódias (1891) a, digamos, Fogo Fátuo (1928), toda uma alteração se processa que tem de ser vista, essencialmente, sob o prisma da depuração, da ascese estilística. E, de fato, os que não perdoam ao estreante de 1891 a gritante profissão de fé formalista: “Por ela o meu sangue, toda minha alma para resguardá-la – é o meu amor, é o meu ídolo, é o meu ideal – a Forma” (12), todos esses esquecem (propositadamente ou não) que foi em reação a esse fanatismo juvenil pela forma pura – quase sempre tingido de orientalismo e de fanatismo – (13) que Coelho Neto partiu para isso que podemos chamar as suas teorias básicas: a teoria da palavra e a teoria do “termo exato”.
Ouçamo-lo se explicar, pois melhor que ninguém o fez quando declarou, na entrevista concedida a João do Rio, no início do século XX: “Tenho a respeito da palavra uma teoria: a palavra falada é a palavra viva, livre, solta de todas as cadeias, capaz de por si só definir, pintar, colorir; a palavra escrita é a palavra agrilhoada, morta, sem a expressão imediata. A primeira tem a intenção que é tudo e a inflexão que é a realidade da intenção. (...) A palavra escrita vive do adjetivo, que é a sua inflexão. Daí a grande necessidade de disciplinar o vocabulário” (14). E um pouco mais adiante completa o seu pensamento: “A questão não é de vocabulário; é de disciplina. Os russos têm uma porção de dicionários de soldados e para nada lhes serve o possuí-los. Eu consegui disciplinar o vocabulário. Dada uma certa impressão, concluída uma ideia, posso sentar-me e escrever. A ideia sai vestida e os termos exatos juntam-se no perfeito reflexo da impressão. Estou a tomar uns ares dogmáticos... Perdoa. É quase uma confissão. Vem desse esforço que foi pouco a pouco desbastando do meu estilo os guizos de muitos adjetivos para substituí-los por um só, exato” (15).
O termo exato... Eis, sem a menor dúvida, o eixo básico da evolução de Coelho Neto como escritor. Consciente da insuficiência da palavra escrita, tentou animá-la, colori-la, vivificá-la, dar-lhe a inflexão sem a qual jamais poderia exprimir adequada, exata, perfeitamente, o que ia na sua mente prodigiosamente rica e variada. Para tudo e em todas as ocasiões, buscou a palavra exata diante dela não recuou, usando termos raros, absolutamente inusitados, terrivelmente difíceis. Que importava? Não estava sendo fiel, integralmente fiel ao princípio de um de seus grandes mestres, do Maupassant que ensinava: “Seja o que for que se pretenda exprimir, não há senão uma palavra para o dizer, um verbo para o animar, e um adjetivo para o qualificar”?
Se não conseguimos acompanhar Coelho Neto, se muito frequentemente não conhecemos o “termo exato” de que se serve – como também não conhecemos muitos dos “termos exatos” de Camilo, de Euclides da Cunha, de Rui Barbosa, de Aquilino Ribeiro, de outros – de quem a culpa senão nossa que tão mal conhecemos o que é nosso – essa língua que tão bem devíamos “possuir” porque a recebemos como herança sagrada  e a deixamos ficar, quase abandonada, quase esquecida, quase como alguma coisa que não fosse o legado supremo dos Camões e dos Vieiras?
E, para remediar um pouco esse erro, essa culpa, essa fuga, que solução melhor do que volver um pouco os olhos para o que Coelho Neto escreveu e lê-lo, realmente lê-lo, sem o preconceito do que preferiram renegá-lo ou a má fé do que, não podendo compreendê-lo, resolveram ignorá-lo?

12 – Coelho Neto. Rapsódia.
13 – Nesse sentido, vejam-se os depoimentos fundamentais do próprio autor, em A Conquista, págs. 287 e 294-7.
14 – João do Rio. “Coelho Neto”, em Momento Literário, pág. 54.
15 – João do Rio, idem, pág. 55. 

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