terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Um texto de Humberto de Campos


Trecho do livro “Memórias” (1933)

Fim de século

     Costumava-se dizer que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século XX trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes das outras.
     A minha passagem pelos jornais, como tipógrafo, quer em Parnaíba, quer no Maranhão, tinha-me dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do Tempo. Eu estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce, não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a culminância do fato de que eu ia ser testemunha.
     O mês de dezembro de 1899 decorreu, na verdade, na esfera em que eu passava a exercer a minha atividade, festivo e animado. Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir! Que nome se lhe devia dar, no nascedouro! Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da Humanidade alvoroçada. As minhas funções de obscuro empregado de uma casa destinada a satisfazer as fantasias da gula humana, contribuíam, igualmente, para acentuar no meu espírito o modo por que os homens felizes interpretavam aquele salto imaginário no rio imenso dos tempos. Desde novembro o depósito da mercearia se abarrotava de barris e de caixas, recebidas diretamente da Europa ou do Sul. Eram ameixas, fiambre, azeitonas, mortadela, tâmaras, figos, queijos holandeses, conservas francesas e do Porto, e vinhos da mesma procedência. As minhas mãos, calejadas na lavagem das garrafas no tanque da casa, tinham-se tornado roxas, e engrelhadas, ao contato do Colares e do Bordeaux. E tudo isso ia sair, nos últimos dias do ano, para a alegria dos homens abastados.
     Na véspera do Natal o movimento das vendas fora considerável. O estabelecimento enchera-se de fregueses, que saíam carregados de embrulhos, ou que deixavam as suas notas de sortimento. Formiga diligente e pobre, eu me sentia feliz, e contente, servindo as cigarras. Carregadores partiam com caixões e cestos, em que iam pacotes e garrafas. Do andar superior, onde a Emília multiplicava a atividade e os cuidados, desciam fiambres louros e tostados, com a sua gargalheira de papel recortado farfalhante, ornando o osso que fora a perna do porco. E assim fomos até a meia-noite, quando se fechou a casa para recomeçar a faina no dia seguinte às cinco e meia da manhã.
     O 31 de dezembro foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um “bar”, em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Transmontana ficava, às vezes, com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceção: ficamos a servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram.
     Através das sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu áspero ruído de ferragens, ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo.
     Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr. Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou:
     - Vamos dar balanço nas mercadorias... Comecemos pelas bebidas.
     E tomando um caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas.
     Sem um protesto ou um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortaleza de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de cognac ou de vermouth, eram contadas, e anunciadas, em voz alta.
     - Trinta e seis garrafas de cognac Macieira!
     - Trinta e seis de Macieira... – confirmava o patrão, escrevendo.
     - Vinte e duas de Colares nº 1!
     - Vinte e duas de Colares nº 1!... – repetia o Sr. Dias de Matos.  
     - Quatorze meias ditas, idem!
     - Quatorze meias ditas, idem...
     De repente, reboa, longe, o apito de uma fábrica de tecidos. Um foguete estronda. Outras fábricas acompanham a primeira. Trepado em uma escada, eu conto, nesse momento, em uma prateleira alta, que fica sobre uma porta, algumas filas de latas de azeite de oliveira:
     Um, dois, três... quatorze... vinte... trinta... trinta e oito.
     O buzinar das fábricas, o estrondar dos foguetes, a gritaria que vem das ruas, o Hino Nacional atacado ao piano em uma casa próxima, interrompem a minha conta, detendo-me o dedo sobre a tampa de uma das latas. Aquele momento é excepcional na História da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que emoções lhe reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa pelo pensamento. Ao fim, porém, de um minuto, continua a conta:
     - Trinta e nove, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois...
     E é ainda com a buzina de algumas fábricas retalhando o céu com o estilete sonoro, que anuncio, do alto da escada, para o patrão:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes!
     E ele, com a mesma fleuma, sem levantar a cabeça do papel em que escreve:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes...
     Foi assim que, humilde caixeiro do século XIX, penetrei o século XX.


Fonte bibliográfica: idem ao texto anterior.


Nenhum comentário:

Postar um comentário