Baseado em texto de Mário Camarinha da Silva
Situação Histórica
Vivendo na segunda
metade do século XVIII, Basílio da Gama é contemporâneo de três acontecimentos
que transformaram o mundo ocidental: a Revolução Americana, a Revolução
Francesa, a Revolução Industrial. Esta Age
of Reason dos filósofos racionalistas ingleses, que é a Crítica da Razão de Kant, foi também a
época do riso Candide apenas em
aparência que Voltaire (como Basílio educado pelos jesuítas) atacou a ordem de
coisas herdada do século anterior.
“A Liberdade
parece ser o espírito do nosso século”, disse Diderot, um dos iniciadores da Enciclopédia Francesa, repositório de
ideias revolucionárias. Nela colaboraram Voltaire e Rousseau, este um anti-Voltaire
que acreditava no bom selvagem, que queria educar o homem pela volta à Natureza
e advogava na sua teoria do Contrato Social o sistema representativo como base
para o Estado organizado.
A Constituição
Americana adotou esse sistema. E logo depois da Queda da Bastilha (no mesmo ano
da Inconfidência Mineira), a Declaração dos Direitos do Homem, feita pela
Assembleia Nacional Francesa, dava universalidade à ideia da igualdade pregada
na Declaração da Independência Americana em 1776. Ideias e teorias sociais,
classificações e sistemas científicos, invenções e aperfeiçoamentos técnicos,
eis o quadro dessa época em que a Revolução Francesa entronaria a deusa Razão.
A Marselhesa, canto heroico da Revolução, é contemporânea de minuetos de Mozart
e Bocherini; o liberalismo econômico de Adam Smith, que retira o comércio da
tutela do Estado, é desse tempo; também Pombal, o homem de ferro que expulsa os
jesuítas de Portugal e trama a extinção da Companhia de Jesus.
Essa é uma época
de contrastes e dela Sebastião José de Carvalho é figura representativa.
Inicialmente diplomata em Londres e Viena, é um daqueles iluministas que, em
pleno esplendor do reinado de D. João V (tempo do ouro e dos diamantes das
Minas Gerais), souberam interessar o monarca e a nobreza no que ia além dos
Pirineus: o rei sempre hesitou entre a renovação e a tradição: ao mesmo tempo
em que chamava a Portugal os oratorianos, cujos métodos revolucionariam a
pedagogia formal dos jesuítas, fazia-se em Roma membro da Arcádia, academia
muito ligada aos jesuítas, chegando a dotá-la com sede permanente no Monte
Janículo.
Elevado Pombal a
ministro todo poderoso de D. José I, esforça-se por fazer a adaptação do
iluminismo ao absolutismo, criando o despotismo esclarecido em Portugal. É
férrea a sua determinação. Tem contra si os nobres, tradicionalistas por
natureza: reforma-lhes a educação, criando o Colégio dos Nobres; tem contra si
a tradição pedagógica dos jesuítas: expulsa-os e restaura a Universidade de
Coimbra com estrangeiros ilustrados, dotando-a de laboratórios e recursos
científicos. Funda companhias de comércio. Dedica sua atenção aos problemas
brasileiros. Atrai iluministas. Persegue e encarcera ou desterra quem não
concorde com suas ideias. Frequenta com o rei a Arcádia Lusitana, fundada por
Antônio Dinis e outros poetas em 1757.
Os árcades queriam
submeter a poesia ao império da razão, segundo os moldes estéticos do
racionalismo francês. Faziam predominar o critério da utilidade, que já Horácio
fazia alternar com o do prazer estético. O racionalista Verney afirmava, na
Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar
Para Ser Útil à República e à Igreja que “a Poesia não é coisa necessária
na República: é faculdade arbitrária e de divertimento”. Em resposta, Francisco
José Freire, “Cândido Lusitano” na Arcádia, escreveu uma Arte Poética em 1748 (com segunda edição em 1759) em que, à maneira
italiana de Muratori e Metastasio, dois ídolos de então, une na poesia o útil
ao agradável. Para ele o que mais agrada são os elementos que surpreendem e
maravilham o leitor. A imaginação, a inspiração, o “furor poético” do autor
deve, no entanto, submeter-se à razão. A
beleza torna-se assim fruto do artesanato, elemento racional da forma que “não
é outra coisa senão a brevidade ou clareza, a energia, a utilidade e outras
circunstâncias”; paralelamente, a doçura dá à obra poética “as qualidades que
podem mover os aspectos de nosso ânimo”. Ao afirmar, porém, que “a beleza
poética está fundada na verdade e compõe-se de perfeições reais, não de
desconcertos ou ilusões aéreas”, recai na tradição aristotélica da poesia como mimesis, que Verney sintetizara, a bem
dizer, da seguinte forma: “Um conceito que não é justo, nem fundado sobre a
natureza das coisas, não pode ser belo: porque o fundamento de todo conceito
engenhoso é a verdade; nem se deve estimar algum quando não se reconheça nele
vestígio de bom juízo. E como os antigos observam muito isto, por isso neles se
observa certa maneira natural de escrever e certa simplicidade nobre, que os
faz tanto admiráveis”.
Ao tempo de
Basílio da Gama, pois, mantinha-se a imitação dos antigos (inclusive dos
renascentistas), com um maior equilíbrio entre a razão e o sentimento, entre a
realidade e a fantasia, a informação e a invenção. Quando cai Pombal, com a
Viradeira que se dá ao subir ao trono a filha de D. José I, em 1777, já a
Arcádia Lusitana se havia dissolvido. E com D. Maria I voltaram os nobres,
muitos deles egressos das superlotadas prisões pombalinas. O antigo ministro
conhece, então, o ostracismo, a sátira dos inimigos e a deserção dos amigos.
Basílio é, apesar de atacado também, dos poucos que lhe permanecem fiéis.
Abrem-se os salões. O Duque de Lafões, o novo mecenas das letras, funda a
Academia Real das Ciências de Lisboa, a que ainda pertenceria como membro
correspondente o poeta do Uraguai. Mas
é Domingos Caldas Barbosa, que Gomes Freire desterrara como soldado para a
Colônia do Sacramento, quem brilha. Com a Viola
de Lereno tornara-se o poeta favorito da nova corte e agora, em casa do
Conde de Pombeiro, seu protetor, funda a Nova Arcádia, tão atacada por Bocage,
Nicolau Tolentino e José Agostinho de Macedo, que dela fizeram parte. Quem já
não o fez foi Basílio da Gama: os tempos eram outros.
Estudo Crítico
Em 1769, sob
suspeita de jesuitismo, e já com compromisso firmado de partir para Angola,
exilado, Basílio da Gama encontra o seu destino: aproxima-se de Pombal. No Epitalâmio, que escreve para a filha do
Marquês, pede-lhe que o livre do degredo, esperando tocar o coração do pai com
o canto da filha; chega, a propósito da nubente, a cantar a grandeza de
Sebastião José de Carvalho e seus irmãos; porém, faz mais que apelar para o
amor de pai e para a vaidade do homem, adula o ódio do ministro pelos jesuítas:
pinta-os alegoricamente como a Soberba, a Ambição, a Inveja, a Ignorância e a
Hipocrisia, monstros horrendos. Ao fazê-lo relacionava a grandeza pombalina com
a guerra aos missionários junto aos guaranis. Foi esquecida a pena do degredo.
A partir de 1769 seus poemas são preitos de gratidão. A Pombal começou a
agradecer com O Uraguai.
O Uraguai é um canto de louvor à
política pombalina, com a detração de seus inimigos e a dedicatória ao Ministro
Mendonça Furtado, irmão de Pombal e antigo chefe da Comissão demarcadora dos
limites setentrionais entre o Brasil e a América espanhola, segundo havia
fixado o Tratado de Madrid. No Sul funcionara outra Comissão chefiada pelo
Governador Gomes Freire de Andrada, que Basílio da Gama transformou no Herói do
seu poema.
Publicado 20 anos
antes da Revolução e 18 depois do primeiro volume da Enciclopédia, O Uraguai é obra em que as inovações
correm parelhas com as normas tradicionais, o que a torna bem representativa
daquele momento.
A literatura, arte
da linguagem com que o indivíduo significa o mundo, via-se no dilema entre a
imitação daquele “mundo criado” e a criação de “novos mundos imaginários”,
entre a beleza revelada pelos antigos e a beleza novamente descoberta pelo
próprio indivíduo, entre a arte clássica, sem surpresas, e a arte atormentada dos
que buscavam seus caminhos. Daí o dilema entre a natureza racional e a natureza
sentimental, que rege a arte de Basílio da Gama no Uraguai. Neste, a Razão do poeta esconde sentimentos que nem ele
próprio confessa.
Há desde logo uma
manifesta ambiguidade do poeta quanto ao assunto. O Uraguai narra a expedição do Governador do Rio de Janeiro às
missões jesuíticas espanholas da banda oriental do Rio Uruguai, cujos índios
haviam se rebelado contra a entrega dos seus Sete Povos (São Borja, Santo
Ângelo, São João, São Lourenço, São Luís, São Miguel, São Nicolau) em troca da
colônia portuguesa do Sacramento, praça militar que os portugueses haviam
fundado em 1680 na margem cisplatina, em frente a Buenos Aires.
Essa troca fora
determinada pelo Tratado de Madrid, que corrigia os limites fixados
anteriormente em Tordesilhas, de acordo com a situação que apresentavam em
1750. Reconhecia-se assim a soberania espanhola sobre as Filipinas e a de
Portugal sobre vastas áreas amazônicas e mato-grossenses de que haviam se
apossado os brasileiros; mas a colônia seria permutada pelas missões uruguaias:
desta maneira, Don José de Carvajal y Lancaster, principal negociador do
tratado, pretendia ocupar uma praça forte (tanta mais incômoda quanto quebrava
com seus contrabandistas cariocas o monopólio comercial da coroa espanhola) em
troca de um território cujos habitantes teriam a mesma sorte de seus
antepassados nas reduções de Guaíra, arruinadas pelos bandeirantes predadores e
escravagistas.
Não escapavam tais
objetivos ao paulista Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V e grande
defensor do Tratado, que encontrou séria oposição, assim que foi dado a
conhecer. Mas a visão do estadista brasileiro ia além, porque naquela troca via
garantida por lei a expansão de seus conterrâneos. Morto D. João V no mesmo ano
do Tratado, desapareceu de cena Gusmão. Porém Pombal, que sobe com D. José I,
leva tão a sério o Tratado de Limites que nomeia o próprio irmão para cuidar da
sua execução nas terras inóspitas da Amazônia, e não cessa de corresponder-se
com Gomes Freire, a quem instrui minuciosamente sobre a permuta de terras.
Gomes Freire não
aceitava entregar a Colônia que seu antecessor, Manuel Lobo, tinha fundado. A Colônia
resistira heroicamente aos castelhanos com ajuda dos índios das missões; duas
vezes haviam tomado pelas armas e os portugueses reconquistaram
diplomaticamente. Aí está o dilema do herói. A entrega não podia estar em seu
coração, como não estava no do poeta, que adotou o nome de seus descendentes maternos,
gente ligada ao passado da colônia. Gomes Freire insistia com o Marquês de
Valdelírios, chefe da Comissão espanhola, que se intensificassem os trabalhos
de demarcação. Ao saber que os missioneiros ligados ao líder guarani Sepé se
haviam oposto às demarcações, assume atitude enérgica e força o General
Andonaegue, Governador de Buenos Aires (contrário à entrega das Missões), a
formar exército que as invadiria. Por isso, Gomes Freire se põe à frente do
exército auxiliar português que iria encontrar-se com o espanhol no rio Jacuí e
aí se enfurece ao saber que seu aliado retrocedera. Por isso, Gomes Freire
assina com os caciques que se lhe opunham. Nesse pacto, os caciques deram-lhe o
direito de ocupação das terras em que avançara.
Mais preocupado
com a incorporação do Continente rio-grandense do que com glória militar, este
protótipo de grão-senhor oitocentista, cantado por poetas cariocas ao partir
para a campanha sulina, acompanhado nesta por seus músicos de câmara, protelou
durante sete anos a entrega da Colônia. Morreu do coração no Rio de Janeiro, ao
saber que sua Colônia foi tomada e arrasada pelos castelhanos de Buenos Aires,
devido ao Tratado de Madrid e rompimento entre as nações ibéricas, quando em
1762 tomaram parte na Guerra dos Sete Anos.
Basílio da Gama,
havendo-se proposto cantar uma expedição militar de um general ilustre, deu-nos
apenas a figura do Herói cívico, administrador, civilizador. Na verdade a
Guerra Guaranítica foi operação que não interessou a Gomes Freire.
Esse acontecimento
histórico, no entanto, projetara a sombra do Herói na juventude guanabarina do
poeta, além de guerreiros, índios e jesuítas. Portanto, o tema central foge ao assunto
e aparece ao leitor como uma representação da eterna luta da civilização contra
a barbárie, num mundo em que tanto quanto Gomes Freire, importam os bons
selvagens que o poeta imagina vivendo numa natureza amena, quase idílica, mas
presas da superstição e do fanatismo que lhes incutiam os bons padres
espanhóis. À visão do poeta árcade, exposta em termos clássicos, sobrepõe-se o racionalismo
do iluminista português da era de Pombal, característico até nos preconceitos.
Mas que mundo é
esse em que se movem as personagens do Uraguai?
Inicialmente é o mundo civilizado, com seu Herói racionalista e os seus
guerreiros plasticamente dispostos nas ocasiões festivas como na ordem de
batalha; ao contato da civilização até os supostos “bárbaros” podem conter os
seus impulsos e apresentar razões e contra-razões ao Herói, mas quando a ela se
opõem pela força, levados pelos instintos, não há bravura que lhes substitua,
na desordem em que se movem, a razão perdida.
Liberado
momentaneamente pela derrota frente à civilização que avança, o índio
missioneiro volta à natureza, e ao contato acolhedor desta se revigora e
retempera para a ação em que tem como aliados os elementos naturais: é o bom
selvagem movendo-se no seu habitat natural. Acompanhando-o em seu retorno desse
mundo natural ao mundo missioneiro, eis que aí vemos por toda parte a sombra da
autoridade teocrática, que paga a bravura com a prisão e o assassínio; que
priva do livre arbítrio a viuvez desprotegida; que assegura o triunfo do
rapazola néscio e presumido; que não se enternece nem ante as mais comoventes e
desesperadas demonstrações de amor conjugal e fraterno; que se compraz na
vingança na hora em que lhe resistem ou se vê vencida.
Quando o Herói
entra em contato com esse Estado teocrático, sente-se conturbado: esse é um
mundo de decadência e ruínas, que não justifica os pecados que mancham a
alegoria da grandeza que se atribui à própria Companhia que nele impera. À
sombra generosa do Herói, porém, reintegram-se no mundo dos índios do Uraguai os valores humanos, acarretando
a vitória formal da civilização e a restauração real.
Apesar da intenção
panfletária e de intentar ser o mais factual possível, o Uraguai se salva graças ao
sentimento artístico de Basílio da Gama, que faz funcionar as notas como
válvulas de escape da matéria mais obviamente prosaica e contrabalança as estereotipias
do Herói de do Vilão com as personagens de seus índios, especialmente Sepé,
Cacambo, Lindoia e Caititu. Na realidade os seres que inventa este poeta de
parca imaginação superam no poema os que existiram historicamente.
Na figura de Sepé
sintetiza-se com clareza essa luta entre a realidade histórica e a fantasia,
que está na gênese de toda arte; rigorosamente histórica na hora da morte, a
arte ganha em seguida foros do caudilho folclórico com que a sonha o habitante
dos pampas. No céu, de tocha na mão, já não será a primeira aparição de São
Sepé, estrela e guia de gaúchos? É que o poeta, eliminando racionalmente da sua
imitação dos clássicos os deuses maravilhosos, sentiu, não obstante, o que de
transcendente havia na figura do herói americano e, em sonhos, o transfigurou.
Neste poema do avanço da civilização sobre as terras dos bárbaros, Sepé é um
símbolo cristão: derrotado, subiu aos céus. Nele fala o sentimento desde o
início, quando interrompe a troca de razões entre o General e Cacambo, com aquela promessa de devolver as
setas que lhe dava o primeiro; o próprio leitor é afetado pela bravata que
depois, na hora da ação, vê não ser bravata; até nisso é Sepé homem do Rio Grande.
E, ante as razões imperialistas do General, perfeitas para a época, são mais
vibrantes os sentimentos do índio (Cacambo) que discursa em defesa da terra
natal.
De Sepé o poeta
teve boa informação. De Cacambo soube algo mais que o nome. De Pindó só o nome,
dos demais bárbaros idealizou a figura com a lembrança dos índios que conheceu
quando vira o Herói regressar ao Rio de Janeiro, havia dez anos. Surgindo no
poema com categoria de “homem natural”, “bárbaro”, “rude americano”, alguns
desses índios não passam de mera representação da ideia que o autor formava,
por exemplo, de um bravo (Tatu-Guaçu), uma feiticeira (Tanajura), um jovem
gabola (Baldetta).
Assim aparecem
também Sepé e Cacambo, mas enquanto um se transfigura, surgindo ao outro em
sonhos, este se humaniza por completo. Cacambo, efetivamente, não é apenas o “homem
natural”, servindo-se em seu habitat dos “elementos naturais”; é antes o
indivíduo Cacambo, que transforma em aliados o pátrio rio e o vento, que faz
fogo roçando paus no mato e vai visitar ao fundo do rio a areia, que o passo
estende e na quarta aurora vê de longe a doce pátria e os conhecidos montes; é
aquele que, tornando não esperado e vitorioso à presença do Vilão, encontra não
a esposa amada, mas a morte: diante dele nos sentimos como na presença de um
homem, exatamente aquele que melhor conhecemos no poema, e não ante um mero
arquétipo do bom selvagem.
Não tão bem
caracterizada em seu mundo, muito mais clássico, é a senhoril Lindoia que só
conhecemos quando, desvairada com a notícia da morte do marido, busca por todos
os meios a morte e já morta voltamos a encontrar num bosque de amenidade
bucólica. No entanto, desde sua patética apresentação, cativando o afeto do
poeta, a esposa de Cacambo não cessa de crescer na imaginação do leitor. Vulto
de mulher apenas entrevisto, é personagem de assombrosa vivência. Antes mesmo
de sua morte, não sensacional ao modo de Cleópatra, Dido ou Moema, nem trágica
como a de Inês de Castro, começamos a sentir o seu sofrimento. De todas essas heroínas
mortas por amor, só a ela a morte, antes, lhe roubara o amado. Por isso,
pressentimos tão infeliz. Com os poucos traços dela comentados à maneira de
contraponto pela adjetivação e outros processos de tom elegíaco, Basílio da
Gama, no auge de sua virtuosidade técnica incontestada, nos sugere – mais que
descreve – o triste destino da infausta indiana: dentro de nós, leitores, os
sentimentos ficam assim em liberdade para completar à nossa maneira a mulher
que foi Lindoia, essa que depois de morta não foi rainha nem teve mais túmulo
que a floresta, mas que há mais de duzentos anos continua viva na imaginação do
brasileiro letrado.
Tão comovente é essa criatura que a sua
condição humana passa para o irmão, que inquieto a vai buscar no bosque fatal. Até
então inteiramente enquadrado como chefe guerreiro, nada o distinguira dos
demais caciques que batalharam em Caibaté ou tomaram parte no desfile por
ocasião do casamento de Lindoia. Ao vê-lo entrar no bosque não podemos pois
suspeitar que para sempre viverá conosco naquelas hesitações que o transformam
em homem, quando busca a irmã com a vista e teme encontrá-la, quando três vezes
dobra as pontas do arco e três vezes vacila entre a ira e o temor para afinal
fazer voar a aguda seta e deixar cravados no tronco vizinho a boca e os dentes
da verde serpente (o objeto da figura é que é inovação do poeta) sem tocar o
peito da Lindoia (efeito semelhante ao que celebrizou Guilherme Tell): porém
ela, coitada, já estava morta (eis a novidade surpreendente). Não admira que
comovidos sintamos nos braços desse pobre irmão o peso do corpo inanimado que
leva pelo bosque.
Não sendo da natureza
do poema épico caracterizar a fundo as personagens, como conseguiria o poeta
tanto nos impressionar com essas criaturas? A resposta requer o estudo dos
recursos estilísticos do poeta. E quem o empreenda não pode deixar de
considerar inicialmente a posição do poeta em relação ao gênero do poema:
Basílio era poeta menor, de fôlego breve, pouca imaginação e curtas intenções.
Resolver a ambiguidade de sua economia de meios com o tradicional esbanjamento
das epopeias foi o seu triunfo. E só
conseguiu devido à inexcedível maestria com que dominou a língua portuguesa,
magnífico veículo expressivo em sua pena. Concisão, clareza, expressividade,
variedade e eufonia, eis o resultado qualitativo da segurança com que distribui
a massa linguística do poema, segundo o hábil emprego dos recursos de estilo
que lhe permitem repetir, eliminar, transpor, intercalar ou alternar termos,
segundo as necessidades.
XXX --- XXX --- XXX --- XXX --- XXX --- XXX
Utilizando-se no Uraguai do decassílabo, verso tradicional
da épica nas línguas neolatinas, Basílio acumulou nele efeitos simultâneos, de
som, cor e imagem intimamente ligados ao significado. Some-se ainda o efeito
suspensivo do acavalgamento, provocador de emoção ou surpresa, e
compreender-se-á porque tantas vezes se tem dito que são brilhantes e sonoros
os decassílabos de Basílio. Contudo o poeta não chega a perder de vista a
unicidade de propósito, elemento fundamental no seu poema: raramente deixa esse
propósito de se manifestar por cima dos efeitos estilísticos que o acentuam,
comentam ou acompanham. Escapa assim, quase sempre, ao obscurantismo formal em
que se afundaram os poetas barrocos ao tentar reproduzir simultaneamente a
multiplicidade dos reflexos oriundos de uma só causa.
Sua clareza é,
pois, fruto da ânsia de adequação. Manifesta-se pela exclusão do que não seja
ideia, a palavra, a construção, a figuração exatas em tudo o que for possível.
Essa eliminação de termos reforça obviamente a concisão. Raramente, porém, essa
concisão e essa clareza obscurecem o sentido; a elipse, por exemplo, que é o
recurso de economia expressiva de que mais se serve, poucas vezes o faz. Já os
processos de expressividade por transposição ou repetição enfáticas, se ás
vezes chegam a reforçar a clareza, outras vezes prejudicam-na; embora seja de
notar que tais processos em muitas ocasiões não visam senão efeitos sônicos, de
variedade e eufonia.
Este
extraordinário jogo de recursos dá aos versos do Uraguai riqueza acústico-significativa, com o ressoar das vogais
repetidas ou a aliteração das consoantes nos trechos mais altamente
expressivos; dá-lhes aquele brilho reverberante que corresponde ao aparato
bélico nos desfiles e ações militares; ou torna-os suaves e doloridos nos
momentos de maior calma e saudade; mostrando-os trêfegos e maliciosos, ou
peçonhentos e raivosos, em outras ocasiões.
Fonte bibliográfica: Basílio da Gama – O Uraguai. Mário
Camarinha da Silva. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima,
Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, 3ª edição. Rio de
Janeiro, 1976.
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