segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Basílio da Gama – Situação histórica – Estudo Crítico


Baseado em texto de Mário Camarinha da Silva

Situação Histórica

     Vivendo na segunda metade do século XVIII, Basílio da Gama é contemporâneo de três acontecimentos que transformaram o mundo ocidental: a Revolução Americana, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial. Esta Age of Reason dos filósofos racionalistas ingleses, que é a Crítica da Razão de Kant, foi também a época do riso Candide apenas em aparência que Voltaire (como Basílio educado pelos jesuítas) atacou a ordem de coisas herdada do século anterior.
     “A Liberdade parece ser o espírito do nosso século”, disse Diderot, um dos iniciadores da Enciclopédia Francesa, repositório de ideias revolucionárias. Nela colaboraram Voltaire e Rousseau, este um anti-Voltaire que acreditava no bom selvagem, que queria educar o homem pela volta à Natureza e advogava na sua teoria do Contrato Social o sistema representativo como base para o Estado organizado.
     A Constituição Americana adotou esse sistema. E logo depois da Queda da Bastilha (no mesmo ano da Inconfidência Mineira), a Declaração dos Direitos do Homem, feita pela Assembleia Nacional Francesa, dava universalidade à ideia da igualdade pregada na Declaração da Independência Americana em 1776. Ideias e teorias sociais, classificações e sistemas científicos, invenções e aperfeiçoamentos técnicos, eis o quadro dessa época em que a Revolução Francesa entronaria a deusa Razão. A Marselhesa, canto heroico da Revolução, é contemporânea de minuetos de Mozart e Bocherini; o liberalismo econômico de Adam Smith, que retira o comércio da tutela do Estado, é desse tempo; também Pombal, o homem de ferro que expulsa os jesuítas de Portugal e trama a extinção da Companhia de Jesus.   
     Essa é uma época de contrastes e dela Sebastião José de Carvalho é figura representativa. Inicialmente diplomata em Londres e Viena, é um daqueles iluministas que, em pleno esplendor do reinado de D. João V (tempo do ouro e dos diamantes das Minas Gerais), souberam interessar o monarca e a nobreza no que ia além dos Pirineus: o rei sempre hesitou entre a renovação e a tradição: ao mesmo tempo em que chamava a Portugal os oratorianos, cujos métodos revolucionariam a pedagogia formal dos jesuítas, fazia-se em Roma membro da Arcádia, academia muito ligada aos jesuítas, chegando a dotá-la com sede permanente no Monte Janículo.
     Elevado Pombal a ministro todo poderoso de D. José I, esforça-se por fazer a adaptação do iluminismo ao absolutismo, criando o despotismo esclarecido em Portugal. É férrea a sua determinação. Tem contra si os nobres, tradicionalistas por natureza: reforma-lhes a educação, criando o Colégio dos Nobres; tem contra si a tradição pedagógica dos jesuítas: expulsa-os e restaura a Universidade de Coimbra com estrangeiros ilustrados, dotando-a de laboratórios e recursos científicos. Funda companhias de comércio. Dedica sua atenção aos problemas brasileiros. Atrai iluministas. Persegue e encarcera ou desterra quem não concorde com suas ideias. Frequenta com o rei a Arcádia Lusitana, fundada por Antônio Dinis e outros poetas em 1757.
     Os árcades queriam submeter a poesia ao império da razão, segundo os moldes estéticos do racionalismo francês. Faziam predominar o critério da utilidade, que já Horácio fazia alternar com o do prazer estético. O racionalista Verney afirmava, na Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar Para Ser Útil à República e à Igreja que “a Poesia não é coisa necessária na República: é faculdade arbitrária e de divertimento”. Em resposta, Francisco José Freire, “Cândido Lusitano” na Arcádia, escreveu uma Arte Poética em 1748 (com segunda edição em 1759) em que, à maneira italiana de Muratori e Metastasio, dois ídolos de então, une na poesia o útil ao agradável. Para ele o que mais agrada são os elementos que surpreendem e maravilham o leitor. A imaginação, a inspiração, o “furor poético” do autor deve, no entanto, submeter-se à razão.  A beleza torna-se assim fruto do artesanato, elemento racional da forma que “não é outra coisa senão a brevidade ou clareza, a energia, a utilidade e outras circunstâncias”; paralelamente, a doçura dá à obra poética “as qualidades que podem mover os aspectos de nosso ânimo”. Ao afirmar, porém, que “a beleza poética está fundada na verdade e compõe-se de perfeições reais, não de desconcertos ou ilusões aéreas”, recai na tradição aristotélica da poesia como mimesis, que Verney sintetizara, a bem dizer, da seguinte forma: “Um conceito que não é justo, nem fundado sobre a natureza das coisas, não pode ser belo: porque o fundamento de todo conceito engenhoso é a verdade; nem se deve estimar algum quando não se reconheça nele vestígio de bom juízo. E como os antigos observam muito isto, por isso neles se observa certa maneira natural de escrever e certa simplicidade nobre, que os faz tanto admiráveis”.
     Ao tempo de Basílio da Gama, pois, mantinha-se a imitação dos antigos (inclusive dos renascentistas), com um maior equilíbrio entre a razão e o sentimento, entre a realidade e a fantasia, a informação e a invenção. Quando cai Pombal, com a Viradeira que se dá ao subir ao trono a filha de D. José I, em 1777, já a Arcádia Lusitana se havia dissolvido. E com D. Maria I voltaram os nobres, muitos deles egressos das superlotadas prisões pombalinas. O antigo ministro conhece, então, o ostracismo, a sátira dos inimigos e a deserção dos amigos. Basílio é, apesar de atacado também, dos poucos que lhe permanecem fiéis. Abrem-se os salões. O Duque de Lafões, o novo mecenas das letras, funda a Academia Real das Ciências de Lisboa, a que ainda pertenceria como membro correspondente o poeta do Uraguai. Mas é Domingos Caldas Barbosa, que Gomes Freire desterrara como soldado para a Colônia do Sacramento, quem brilha. Com a Viola de Lereno tornara-se o poeta favorito da nova corte e agora, em casa do Conde de Pombeiro, seu protetor, funda a Nova Arcádia, tão atacada por Bocage, Nicolau Tolentino e José Agostinho de Macedo, que dela fizeram parte. Quem já não o fez foi Basílio da Gama: os tempos eram outros.

Estudo Crítico

     Em 1769, sob suspeita de jesuitismo, e já com compromisso firmado de partir para Angola, exilado, Basílio da Gama encontra o seu destino: aproxima-se de Pombal. No Epitalâmio, que escreve para a filha do Marquês, pede-lhe que o livre do degredo, esperando tocar o coração do pai com o canto da filha; chega, a propósito da nubente, a cantar a grandeza de Sebastião José de Carvalho e seus irmãos; porém, faz mais que apelar para o amor de pai e para a vaidade do homem, adula o ódio do ministro pelos jesuítas: pinta-os alegoricamente como a Soberba, a Ambição, a Inveja, a Ignorância e a Hipocrisia, monstros horrendos. Ao fazê-lo relacionava a grandeza pombalina com a guerra aos missionários junto aos guaranis. Foi esquecida a pena do degredo. A partir de 1769 seus poemas são preitos de gratidão. A Pombal começou a agradecer com O Uraguai.
     O Uraguai é um canto de louvor à política pombalina, com a detração de seus inimigos e a dedicatória ao Ministro Mendonça Furtado, irmão de Pombal e antigo chefe da Comissão demarcadora dos limites setentrionais entre o Brasil e a América espanhola, segundo havia fixado o Tratado de Madrid. No Sul funcionara outra Comissão chefiada pelo Governador Gomes Freire de Andrada, que Basílio da Gama transformou no Herói do seu poema.
     Publicado 20 anos antes da Revolução e 18 depois do primeiro volume da Enciclopédia, O Uraguai é obra em que as inovações correm parelhas com as normas tradicionais, o que a torna bem representativa daquele momento.
     A literatura, arte da linguagem com que o indivíduo significa o mundo, via-se no dilema entre a imitação daquele “mundo criado” e a criação de “novos mundos imaginários”, entre a beleza revelada pelos antigos e a beleza novamente descoberta pelo próprio indivíduo, entre a arte clássica, sem surpresas, e a arte atormentada dos que buscavam seus caminhos. Daí o dilema entre a natureza racional e a natureza sentimental, que rege a arte de Basílio da Gama no Uraguai. Neste, a Razão do poeta esconde sentimentos que nem ele próprio confessa.
     Há desde logo uma manifesta ambiguidade do poeta quanto ao assunto. O Uraguai narra a expedição do Governador do Rio de Janeiro às missões jesuíticas espanholas da banda oriental do Rio Uruguai, cujos índios haviam se rebelado contra a entrega dos seus Sete Povos (São Borja, Santo Ângelo, São João, São Lourenço, São Luís, São Miguel, São Nicolau) em troca da colônia portuguesa do Sacramento, praça militar que os portugueses haviam fundado em 1680 na margem cisplatina, em frente a Buenos Aires.
     Essa troca fora determinada pelo Tratado de Madrid, que corrigia os limites fixados anteriormente em Tordesilhas, de acordo com a situação que apresentavam em 1750. Reconhecia-se assim a soberania espanhola sobre as Filipinas e a de Portugal sobre vastas áreas amazônicas e mato-grossenses de que haviam se apossado os brasileiros; mas a colônia seria permutada pelas missões uruguaias: desta maneira, Don José de Carvajal y Lancaster, principal negociador do tratado, pretendia ocupar uma praça forte (tanta mais incômoda quanto quebrava com seus contrabandistas cariocas o monopólio comercial da coroa espanhola) em troca de um território cujos habitantes teriam a mesma sorte de seus antepassados nas reduções de Guaíra, arruinadas pelos bandeirantes predadores e escravagistas.
     Não escapavam tais objetivos ao paulista Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V e grande defensor do Tratado, que encontrou séria oposição, assim que foi dado a conhecer. Mas a visão do estadista brasileiro ia além, porque naquela troca via garantida por lei a expansão de seus conterrâneos. Morto D. João V no mesmo ano do Tratado, desapareceu de cena Gusmão. Porém Pombal, que sobe com D. José I, leva tão a sério o Tratado de Limites que nomeia o próprio irmão para cuidar da sua execução nas terras inóspitas da Amazônia, e não cessa de corresponder-se com Gomes Freire, a quem instrui minuciosamente sobre a permuta de terras.
     Gomes Freire não aceitava entregar a Colônia que seu antecessor, Manuel Lobo, tinha fundado. A Colônia resistira heroicamente aos castelhanos com ajuda dos índios das missões; duas vezes haviam tomado pelas armas e os portugueses reconquistaram diplomaticamente. Aí está o dilema do herói. A entrega não podia estar em seu coração, como não estava no do poeta, que adotou o nome de seus descendentes maternos, gente ligada ao passado da colônia. Gomes Freire insistia com o Marquês de Valdelírios, chefe da Comissão espanhola, que se intensificassem os trabalhos de demarcação. Ao saber que os missioneiros ligados ao líder guarani Sepé se haviam oposto às demarcações, assume atitude enérgica e força o General Andonaegue, Governador de Buenos Aires (contrário à entrega das Missões), a formar exército que as invadiria. Por isso, Gomes Freire se põe à frente do exército auxiliar português que iria encontrar-se com o espanhol no rio Jacuí e aí se enfurece ao saber que seu aliado retrocedera. Por isso, Gomes Freire assina com os caciques que se lhe opunham. Nesse pacto, os caciques deram-lhe o direito de ocupação das terras em que avançara.
     Mais preocupado com a incorporação do Continente rio-grandense do que com glória militar, este protótipo de grão-senhor oitocentista, cantado por poetas cariocas ao partir para a campanha sulina, acompanhado nesta por seus músicos de câmara, protelou durante sete anos a entrega da Colônia. Morreu do coração no Rio de Janeiro, ao saber que sua Colônia foi tomada e arrasada pelos castelhanos de Buenos Aires, devido ao Tratado de Madrid e rompimento entre as nações ibéricas, quando em 1762 tomaram parte na Guerra dos Sete Anos.
     Basílio da Gama, havendo-se proposto cantar uma expedição militar de um general ilustre, deu-nos apenas a figura do Herói cívico, administrador, civilizador. Na verdade a Guerra Guaranítica foi operação que não interessou a Gomes Freire.
     Esse acontecimento histórico, no entanto, projetara a sombra do Herói na juventude guanabarina do poeta, além de guerreiros, índios e jesuítas. Portanto, o tema central foge ao assunto e aparece ao leitor como uma representação da eterna luta da civilização contra a barbárie, num mundo em que tanto quanto Gomes Freire, importam os bons selvagens que o poeta imagina vivendo numa natureza amena, quase idílica, mas presas da superstição e do fanatismo que lhes incutiam os bons padres espanhóis. À visão do poeta árcade, exposta em termos clássicos, sobrepõe-se o racionalismo do iluminista português da era de Pombal, característico até nos preconceitos.
     Mas que mundo é esse em que se movem as personagens do Uraguai? Inicialmente é o mundo civilizado, com seu Herói racionalista e os seus guerreiros plasticamente dispostos nas ocasiões festivas como na ordem de batalha; ao contato da civilização até os supostos “bárbaros” podem conter os seus impulsos e apresentar razões e contra-razões ao Herói, mas quando a ela se opõem pela força, levados pelos instintos, não há bravura que lhes substitua, na desordem em que se movem, a razão perdida.
     Liberado momentaneamente pela derrota frente à civilização que avança, o índio missioneiro volta à natureza, e ao contato acolhedor desta se revigora e retempera para a ação em que tem como aliados os elementos naturais: é o bom selvagem movendo-se no seu habitat natural. Acompanhando-o em seu retorno desse mundo natural ao mundo missioneiro, eis que aí vemos por toda parte a sombra da autoridade teocrática, que paga a bravura com a prisão e o assassínio; que priva do livre arbítrio a viuvez desprotegida; que assegura o triunfo do rapazola néscio e presumido; que não se enternece nem ante as mais comoventes e desesperadas demonstrações de amor conjugal e fraterno; que se compraz na vingança na hora em que lhe resistem ou se vê vencida.
     Quando o Herói entra em contato com esse Estado teocrático, sente-se conturbado: esse é um mundo de decadência e ruínas, que não justifica os pecados que mancham a alegoria da grandeza que se atribui à própria Companhia que nele impera. À sombra generosa do Herói, porém, reintegram-se no mundo dos índios do Uraguai os valores humanos, acarretando a vitória formal da civilização e a restauração real.
     Apesar da intenção panfletária e de intentar ser o mais factual possível, o Uraguai  se salva graças ao sentimento artístico de Basílio da Gama, que faz funcionar as notas como válvulas de escape da matéria mais obviamente prosaica e contrabalança as estereotipias do Herói de do Vilão com as personagens de seus índios, especialmente Sepé, Cacambo, Lindoia e Caititu. Na realidade os seres que inventa este poeta de parca imaginação superam no poema os que existiram historicamente.
     Na figura de Sepé sintetiza-se com clareza essa luta entre a realidade histórica e a fantasia, que está na gênese de toda arte; rigorosamente histórica na hora da morte, a arte ganha em seguida foros do caudilho folclórico com que a sonha o habitante dos pampas. No céu, de tocha na mão, já não será a primeira aparição de São Sepé, estrela e guia de gaúchos? É que o poeta, eliminando racionalmente da sua imitação dos clássicos os deuses maravilhosos, sentiu, não obstante, o que de transcendente havia na figura do herói americano e, em sonhos, o transfigurou. Neste poema do avanço da civilização sobre as terras dos bárbaros, Sepé é um símbolo cristão: derrotado, subiu aos céus. Nele fala o sentimento desde o início, quando interrompe a troca de razões entre o General  e Cacambo, com aquela promessa de devolver as setas que lhe dava o primeiro; o próprio leitor é afetado pela bravata que depois, na hora da ação, vê não ser bravata; até nisso é Sepé homem do Rio Grande. E, ante as razões imperialistas do General, perfeitas para a época, são mais vibrantes os sentimentos do índio (Cacambo) que discursa em defesa da terra natal.
     De Sepé o poeta teve boa informação. De Cacambo soube algo mais que o nome. De Pindó só o nome, dos demais bárbaros idealizou a figura com a lembrança dos índios que conheceu quando vira o Herói regressar ao Rio de Janeiro, havia dez anos. Surgindo no poema com categoria de “homem natural”, “bárbaro”, “rude americano”, alguns desses índios não passam de mera representação da ideia que o autor formava, por exemplo, de um bravo (Tatu-Guaçu), uma feiticeira (Tanajura), um jovem gabola (Baldetta).
     Assim aparecem também Sepé e Cacambo, mas enquanto um se transfigura, surgindo ao outro em sonhos, este se humaniza por completo. Cacambo, efetivamente, não é apenas o “homem natural”, servindo-se em seu habitat dos “elementos naturais”; é antes o indivíduo Cacambo, que transforma em aliados o pátrio rio e o vento, que faz fogo roçando paus no mato e vai visitar ao fundo do rio a areia, que o passo estende e na quarta aurora vê de longe a doce pátria e os conhecidos montes; é aquele que, tornando não esperado e vitorioso à presença do Vilão, encontra não a esposa amada, mas a morte: diante dele nos sentimos como na presença de um homem, exatamente aquele que melhor conhecemos no poema, e não ante um mero arquétipo do bom selvagem.
     Não tão bem caracterizada em seu mundo, muito mais clássico, é a senhoril Lindoia que só conhecemos quando, desvairada com a notícia da morte do marido, busca por todos os meios a morte e já morta voltamos a encontrar num bosque de amenidade bucólica. No entanto, desde sua patética apresentação, cativando o afeto do poeta, a esposa de Cacambo não cessa de crescer na imaginação do leitor. Vulto de mulher apenas entrevisto, é personagem de assombrosa vivência. Antes mesmo de sua morte, não sensacional ao modo de Cleópatra, Dido ou Moema, nem trágica como a de Inês de Castro, começamos a sentir o seu sofrimento. De todas essas heroínas mortas por amor, só a ela a morte, antes, lhe roubara o amado. Por isso, pressentimos tão infeliz. Com os poucos traços dela comentados à maneira de contraponto pela adjetivação e outros processos de tom elegíaco, Basílio da Gama, no auge de sua virtuosidade técnica incontestada, nos sugere – mais que descreve – o triste destino da infausta indiana: dentro de nós, leitores, os sentimentos ficam assim em liberdade para completar à nossa maneira a mulher que foi Lindoia, essa que depois de morta não foi rainha nem teve mais túmulo que a floresta, mas que há mais de duzentos anos continua viva na imaginação do brasileiro letrado.
     Tão comovente é essa criatura que a sua condição humana passa para o irmão, que inquieto a vai buscar no bosque fatal. Até então inteiramente enquadrado como chefe guerreiro, nada o distinguira dos demais caciques que batalharam em Caibaté ou tomaram parte no desfile por ocasião do casamento de Lindoia. Ao vê-lo entrar no bosque não podemos pois suspeitar que para sempre viverá conosco naquelas hesitações que o transformam em homem, quando busca a irmã com a vista e teme encontrá-la, quando três vezes dobra as pontas do arco e três vezes vacila entre a ira e o temor para afinal fazer voar a aguda seta e deixar cravados no tronco vizinho a boca e os dentes da verde serpente (o objeto da figura é que é inovação do poeta) sem tocar o peito da Lindoia (efeito semelhante ao que celebrizou Guilherme Tell): porém ela, coitada, já estava morta (eis a novidade surpreendente). Não admira que comovidos sintamos nos braços desse pobre irmão o peso do corpo inanimado que leva pelo bosque.
     Não sendo da natureza do poema épico caracterizar a fundo as personagens, como conseguiria o poeta tanto nos impressionar com essas criaturas? A resposta requer o estudo dos recursos estilísticos do poeta. E quem o empreenda não pode deixar de considerar inicialmente a posição do poeta em relação ao gênero do poema: Basílio era poeta menor, de fôlego breve, pouca imaginação e curtas intenções. Resolver a ambiguidade de sua economia de meios com o tradicional esbanjamento das epopeias foi o seu triunfo.  E só conseguiu devido à inexcedível maestria com que dominou a língua portuguesa, magnífico veículo expressivo em sua pena. Concisão, clareza, expressividade, variedade e eufonia, eis o resultado qualitativo da segurança com que distribui a massa linguística do poema, segundo o hábil emprego dos recursos de estilo que lhe permitem repetir, eliminar, transpor, intercalar ou alternar termos, segundo as necessidades.
                                                               XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX    ---    XXX
     Utilizando-se no Uraguai do decassílabo, verso tradicional da épica nas línguas neolatinas, Basílio acumulou nele efeitos simultâneos, de som, cor e imagem intimamente ligados ao significado. Some-se ainda o efeito suspensivo do acavalgamento, provocador de emoção ou surpresa, e compreender-se-á porque tantas vezes se tem dito que são brilhantes e sonoros os decassílabos de Basílio. Contudo o poeta não chega a perder de vista a unicidade de propósito, elemento fundamental no seu poema: raramente deixa esse propósito de se manifestar por cima dos efeitos estilísticos que o acentuam, comentam ou acompanham. Escapa assim, quase sempre, ao obscurantismo formal em que se afundaram os poetas barrocos ao tentar reproduzir simultaneamente a multiplicidade dos reflexos oriundos de uma só causa.
     Sua clareza é, pois, fruto da ânsia de adequação. Manifesta-se pela exclusão do que não seja ideia, a palavra, a construção, a figuração exatas em tudo o que for possível. Essa eliminação de termos reforça obviamente a concisão. Raramente, porém, essa concisão e essa clareza obscurecem o sentido; a elipse, por exemplo, que é o recurso de economia expressiva de que mais se serve, poucas vezes o faz. Já os processos de expressividade por transposição ou repetição enfáticas, se ás vezes chegam a reforçar a clareza, outras vezes prejudicam-na; embora seja de notar que tais processos em muitas ocasiões não visam senão efeitos sônicos, de variedade e eufonia.
     Este extraordinário jogo de recursos dá aos versos do Uraguai riqueza acústico-significativa, com o ressoar das vogais repetidas ou a aliteração das consoantes nos trechos mais altamente expressivos; dá-lhes aquele brilho reverberante que corresponde ao aparato bélico nos desfiles e ações militares; ou torna-os suaves e doloridos nos momentos de maior calma e saudade; mostrando-os trêfegos e maliciosos, ou peçonhentos e raivosos, em outras ocasiões.

Fonte bibliográfica: Basílio da Gama – O Uraguai. Mário Camarinha da Silva. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, 3ª edição. Rio de Janeiro, 1976.

 


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