sábado, 20 de abril de 2013

O exercício cognitivo do ditado

Até aproximadamente 30 a 40 anos atrás o exercício do "ditado" era uma atividade quase diária nos cursos de primeiro grau das escolas públicas. No início o criança escrevia ditados de palavras isoladas. Posteriormente passava a frases simples. Depois vinham frases associadas em um texto simples. Assim, gradativamente, a criança aprendia a seguir ditados cada vez mais complexos, sempre recebendo depois as devidas correções em seus próprios textos. 
Essa atividade do "ditado" pode parecer muito simples para alguns, ou ainda antiquada para outros, mas o fato é que se trata de um complexo e bem articulado exercício cognitivo.
Um primeiro aspecto desse exercício que podemos citar é a "atenção". A atenção é uma das funções cognitivas básicas; é essencial ao trabalho cognitivo, ao desenvolvimento cognitivo, ao processo cognitivo cotidiano. Ao ter que ficar atenta às palavras ditas pelo professor/professora a criança exercita focar sua atenção auditiva, chegando mesmo a reduzir o uso dos outros sentidos, para concentrar-se na recepção do estímulo auditivo. Além disso, trata-se da recepção de um estímulo verbal, uma ou várias palavras, concatenadas ou não; esse é um exercício de atenção específico dirigido à linguagem verbal, com suas variáveis, intonações, etc. 
Um outro aspecto do exercício do ditado é o aprendizado da linguagem verbal percebida (o exercício da linguagem verbal expressada ocorria na leitura oral e na redação). O entendimento da linguagem verbal percebida compreende uma série de nuances que se aprimoram na medida em que   aumenta a variedade de palavras e agrupamento de frases, de modo que a criança aprende a diferenciar sutilezas que implicam na complexidade de discursos e textos. 
Outro aspecto exercitado no ditado é "memória de curto prazo", também chamada "memória anterógrada". Na medida em que os textos ditados se tornam (ou se tornavam) cada vez mais extensos e complexos, mais distante ficava a "fala" do professor/professora e a "escrita" da criança, de modo que, nessa distância de tempo entre a expressão da palavra e sua recepção, exercita-se essa memória de curto prazo.
As correções repetidas dos textos, devidamente assinaladas, vão compor uma memória de longo prazo (ou anterógrada) para linguagem verbal, que permitirá à pessoa escrever corretamente.
Ora, todos esses itens são fundamentais para o entendimento de textos literários ou mesmo de textos técnicos. 
Hoje em dia no Brasil fala-se em uma grande porcentagem de pessoas com "analfabetismo funcional", ou seja, mesmo tendo frequentado escola essas pessoas não entendem textos, mesmo que sejam de média ou mesmo baixa complexidade. Uma importante causa disso é que provavelmente essas pessoas não fizeram ditados. Essas pessoas não treinaram sua cognição nos aspectos de atenção, linguagem verbal, memória de curto prazo, memória de longo prazo para linguagem verbal, de modo que não têm condições de exercer essa prática. 
Assim, deve-se ter cuidado ao propor mudanças no sistema de ensino. Nem tudo que é antigo é sem valor. Deve-se rever antigos métodos e reabilitar aquilo que ainda pode funcionar, sendo que isso pode caminhar ao lado de novos meios de ensino.
Fazendo uma analogia, mesmo que se aprimore a forma de se alimentar, ou ainda o conhecimento sobre os alimentos, ainda assim todo ser humano precisa se alimentar.
De modo similar, mesmo que se aprimore formas de aprender, algumas coisas são inerentes ao fato de sermos seres humanos. É inevitável que se tenha que memorizar palavras, coisas, objetos etc. é inevitável que se tenha que "decorar" algumas coisas. Um dia cada um teve que "decorar" seu endereço, ou outros dados essenciais a sua vida. A  capacidade de memorizar, a capacidade de usar essa memória para, por exemplo, operar uma máquina simples, ou até mesmo "dirigir" uma espaçonave, ou ainda aprender uma língua estrangeira, um dia passou por ter que "decorar" alguma coisa.
O antigo "ditado" é uma forma quase imperceptível de preparar o cérebro para "decorar" de uma maneira mais fácil coisas inerentes ao aprendizado, ou ao interesse de cada um, ou ainda de manter o cérebro mais preparado para o dia e dia e até mesmo para prevenir problemas cognitivos que podem surgir com a idade. 
Portanto, viva o ditado!

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