sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um texto de Coelho Neto

Texto de “A Capital Federal” de Coelho Neto, com comentários e notas por Octavio de Faria (1963).

A CAPITAL FEDERAL: A Capital Federal (1893) narra os primeiros contatos de Anselmo Ribas (entenda-se Coelho Neto) com o Rio de Janeiro. Encontra-se ele em visita à casa de seu abastado tio, Serapião Ribas, que se propõe fazê-lo conhecer a Cidade. E, logo ao primeiro passeio, é diante da famosa Rua do Ouvidor que é colocado. Assistimos à sua “reação” que não será senão uma amostra da decepção que o trará de volta à terra natal, desfazendo-se assim ante seus olhos críticos a “miragem” da Capital Federal.

   O cocheiro inglês, magro, raspado, retesou-se na boleia tenteando as rédeas para sofrear o cavalo negro que pinoteava.
   – S. Francisco[1] – disse secamente meu tio e logo rodamos[2].
   Estiquei as pernas mergulhando os pés no pelego[3] felpudo.
   – Não fumas, Anselmo? E as mãos papudas ofereciam-me charutos.
   Esgazeado e hirto de espanto entalei-me no fundo do carro. Pois meu tio... a oferecer-me charutos...! “É uma cilada”, disse comigo.
   Meu pai, com a sua moral primitiva, entende que fumar é um vício execrando para os moços, principalmente em presença dos mais velhos. Em casa, quando me tenta o desejo de tragar uma fumaça, corro ao meu quarto e fecho-me ou desço ao pomar para não ir de encontro ao preceito paterno, que é uma herança dos maiores. Educado em princípios de tanta austeridade, agradeci os charutos. Meu tio, porém, insistiu:
   – Fuma, homem; já não és criança – disse em tom cheio de sinceridade, que varreu do meu espírito o resto de escrúpulos – Fuma. – E entregou-me um charuto.
   Ainda assim, senti certo vexame, ele, porém, insistiu novamente, animando-me.
   – Não tem fósforos?
   – Sim, meu tio; tenho aqui.
   Acendi o charuto e baforei para o mar a primeira fumaça dando as primícias do meu havana ao respeito, como os antigos pastores ofereciam a Deus as primícias de seus rebanhos, depois recostei-me, fumando ante as barbas grisalhas do irmão de meu pai.
   O Rio começava a aparecer-me. A vitória corria cruzando-se com os outros carros elegantes, onde iam senhoras faustosamente vestidas. Dos bondes espiavam-nos com interesse curioso. Eu encolhia-me para que me não vissem; ia ali assim como um deus num nicho, apenas visível para os que, como eu, passavam luxuosamente em carruagens e que nos procuravam reconhecer. Meu tio, habituado ao luxo, ia indiferente, todo preocupado com o seu charuto; eu não: mostrava-me, queria que as mulheres olhassem para o meu rosto rosado e fresco, para os meus olhos femininos, para os meus lábios purpúreos e carnudos, para os meus bigodes sedosos, para o meu largo peito forte, e que reconhecessem em mim um modelo de homem, um remanescente da idade morta, quando a força era divinizada e o músculo merecia poemas; um sólido e másculo exemplar de sertanejo capaz de amá-las com mais ardência e com mais impetuosidade do que esses rapazes pálidos, de olhos tristes, que passavam acabrunhados e exaustos, sem viço, sem entusiasmo, frouxos e melancólicos, sugados pelo vampiro da anemia, derreados pelas vigílias devassas.
   A vitória parou. Saltamos e eu, curioso de ver e de admirar maravilhas, olhei em volta. Era uma grande praça quadrada e clara, murada pelos edifícios que reverberavam à luz radiante do sol. Ao meio, sobre pedestal negro, a estátua tosca de um homem, em atitude cheia de solenidade, a mão estendida em gesto clássico de tribuna, como a alegoria icônica do meeting que é, em nossos dias, cultos e morigerados, o escoadouro da inofensiva indignação das massas. Meu tio, indicando-me a efígie escura, disse:
   – José Bonifácio, o patriarca da nossa independência e da tribuna dos comícios.
   Admirei reverente o patriarca, rijo, inflexível, imóvel no seu molde perpétuo de bronze, como a imagem do patriotismo isolada na vasta ágora[4], para exemplo das gerações. Meu tio, descrevendo com o seu unicórnio[5] um hemiciclo no ar, falou para despertar o meu civismo:
   – Olha, Anselmo, de um lado a religião, Deus e o mistério. É a ala santa do perímetro do nosso patriota – e levantou a bengala.
   Meus olhos seguiram a sua indicação e viram no alto da torre um galo rutilante. Tive ímpetos de pedir a significação emblemática. Seria, por acaso, a figuração do bicho que cantou três vezes despertando a consciência de Pedro na grande noite de Getsêmani? Mas meu tio já havia baixado a bengala.
   – Aquilo que ali vês ao fundo, Anselmo, é a ciência.
   Um casarão alvadio com terraço à frente. Mal tive tempo de admirar porque a voz grave do cicerone já pronunciava:
   – À direita, o comércio, a indústria, o movimento.
   Com efeito a vida parecia decorrer do ponto indicado – bondes chegavam despejando gente, partiam cheios; carros cruzavam-se: era um vozear confuso, indistinto – pregões, apelos, silvos, tilintar de campainhas, brados. Olhei atordoado. Meu tio voltara-se para a estátua e contemplava-a extático.
   – Grande homem! – disse eu.
   – Grande patriota! – acrescentou meu tio e voltou-se com a bengala a fundo, risonho, mostrando-me uma rua em frente:
   – Conheces?
   – Não, meu tio, mas noto que está cheia de gente – parece que vem por aí abaixo um oceano popular para revinditas.
   – É sempre assim – disse e, com lentidão, abriu a sobrecasaca e tirou do bolso profundo maço de papéis.
   O sol abrasava pondo-me pruridos na carne e meu tio, calmo e tranquilamente, suando e resfolgando [6], consultava os papéis. Por fim atafulhou[7] com o maço no bolso e, vagarosamente, desdobrou diante de meus olhos uma folha de papel azul e, indicando-me uma frase com o dedo grosso, sorriu mirando-me. Era uma carta minha e o que ali estava debaixo do pesado e úmido indicador, era apenas isto: – “ver a Rua do Ouvidor”. Sem ler mais, estremecendo, cravei os olhos na rua... E, sem uma palavra, mudo, abatido, como se me tivessem dado uma notícia de morte, suspirei.
   – Uma surpresa, hem?
   – Uma desilusão, meu tio – disse eu, murcho.
   Mas o sol ardia. Quase torrados fomos caminhando para a desilusão, porque ali, ao menos, havia sombra e fresco. Eu ia consternado.
   – Mas então... que te parece?
   – A mim?
   – Sim...?!
   – Ah! Meu tio... Pode ser que esta rua seja uma maravilha, mas infelizmente, antes de vê-la, antes de pisá-la, eu a sonhara... e o sonho, que é a visão do mistério, vai sempre além da realidade.
   – Então... que esperavas tu?
   – Eu? Uma avenida como as que tenho admirado em gravuras, como as que tenho visto descritas: com grandes casas apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas de mármore... arquitetura e gosto, arte e elegância, e largueza, sobretudo, meu tio; largueza, muita largueza.
   Um velhinho magro, esgrouviado[8] com um amplo casaco cor de castanha, surrado, tomou a frente a meu tio, estendendo-lhe ambas as mãos, pálidas como as de um cadáver. Encostaram-se a uma vitrina. O velho sacou do bolso enorme carteira e foi desdobrando papéis, cochichando, com risinhos. Meu tio aprovava com ar digno, coçando o papo.
   Parado em meio da rua, olhando, eu sentia caírem dentro de mim, um a um, todos os meus sonhos ingênuos de roceiro. A multidão cruzava-se em formigamento ativo; grupos chocavam-se. Havia constantemente um chapinhar[9] de solas, frufru de sedas e, de longe, como hausto[10] perene e sôfrego, vinha um aaah surdo. De vez em vez parecia-me ouvir o rumor cadenciado e longínquo do desfilar de exércitos.
   Sentia-me atraído pelo luxo dos mostradores. Meus olhos esmerilhavam, rebuscavam, examinando as casas, da soleira à cimalha, penetrando-as, varejando-as indiscretamente com ânsia de imprevistos, com avidez de novidades... Ó divinos jardins suspensos! Ó avenidas de loureiros e de anêmonas! Como estais longe da esplêndida passagem que meus olhos viam em arroubos, quando me punha a pensar nesta viagem ao Rio e realizava, embevecido, de olhos fechados, deitado na relva, tamborinando no ventre, o meu passeio elegante pela calçada de mármore branco, refrescada, duas vezes ao dia, com esguicho de água de rosas. Não, decididamente eu não tinha razão – o que eu estranhava não era a Rua do Ouvidor. Todo o pungitivo sentimento que me oprimia vinha da morte de uma ilusão. Para os que não viram, para os que não sonharam coisa melhor, a rua é admirável; mas para os que podem estabelecer confrontos, perdoa-me, artéria da civilização patrícia; perdoa-me, avenida da elegância e do espírito fluminense, não passas de viela atarracada e sórdida.
   O velhinho inclinou-se de novo com as mãos estendidas e meu tio voltou a ocupar junto a mim o seu posto de elucidário.
   – Então, Anselmo?
   – Estou procurando o encanto, meu tio.
   – Descansa, descansa, – disse-me tomando-me o braço – ele é que há de procurar-te.   
   – E, estacando, mostrou-me a rua com o mesmo gesto com que, em casa, do alto da casinhola, me havia mostrado o seu jardim: – Então isto não te impressiona?
   – Não, meu tio... e digo-o com sentimento.
   – Esperavas alguma coisa como o boulevard des Italiens[11], como a calle Florida[12] – acudiu Serapião, versado em guias.
   – Coisa melhor! Muito melhor!
   O elucidário lançou-me um olhar carregado de pasmo.
   – Contaram-me tantas maravilhas desta rua que não é muito que me confesse desiludido, porque o sentimento que, em verdade, subjugo é de indignação, a mais justa indignação contra todos quantos me atordoaram o espírito com exageradas fantasias e soberbas descrições de um fastígio incomparável. Em casa de Mariano Gomes, o Dr. Gusmão, promotor, que parava, de vez em quando, alguns níqueis no seu feminino palpite – a sota[13] – durante uma longa noite de azar e chuva, encurralando-me no vão de uma janela, falou-me, com sua eloquência de júri, longamente, calorosamente, acerca da Rua do Ouvidor, contando-me aventuras que havia gozado , em companhia de certo desembargador, homem culto e de gosto. Foi quem mais alarmou meu espírito ingênuo, foi esse órgão da justiça pública o mais perverso e cruel dos mistificadores.  O Pe. Coriolano que, de longe em longe vem gozar no Rio um mês de inverno, disse-me uma vez, em casa na Maria Balbina, que isto era como a Suburra[14] de que fala Horácio[15]: um lugar de vícios. Mariano Gomes, mais franco, explicou-me em frase sóbria e devassa: “Que para a pândega não havia igual...!” Mentiram todos: a lei, a religião e a batota. Isto é uma miséria! Nem aventuras, nem Suburra, nem pândega!
   – Espera, atende, acalma a fúria, Anselmo. Se ainda não a conheces! – disse meu tio com malicioso sorriso – a Rua do Ouvidor tem o seu segredo de atração e de enlevo como certas mulheres que, apesar de feias e avelhantadas, vivem perseguidas pelos admiradores. Hás de concordar: há mulheres tais. A razão? O motivo? Dize...
   Dei de ombros e meu tio explicou com arreganho:
   – Encantos particulares, Anselmo, coisas ...
   Depois recompondo-se voltou a falar com gravidade, fitando a rua:
   – Não é bela, concordo. Vê-se que não foi traçada por um Haussmann[16], mas lá encantos isso tem ela. É preciso viver, conhecê-la, penetrar-lhe o segredo. Não estou longe de pensar contigo. Isto é um beco.
   Um beco! – corroborei com desprezo.
   – Mas queres saber a razão principal da sua nomeada? – inclinou-se olhando-me vesgo – É que ela é o centro da vida nacional. – Descolamo-nos para respirar, ele, porém, puxou-me de novo: – Todos os grandes fatos da nossa política e da nossa literatura derivam da Rua do Ouvidor – ela é o estuário que recebe todas as correntes, o centro para onde convergem todas as forças ativas da nação e donde se escoa a seiva intelectual.
   – A seiva intelectual!... – exclamei recuando, e meu tio, impassível, acastelado na sua convicção, repetiu abanando com a cabeça:
   – Pois não... pois não, seiva intelectual. – E continuou: – Tens ali a imprensa, – e levantou a bengala para uma sacada onde havia uma comprida tabuleta negra com grandes letras brancas e, passeando a bengala como um ponteiro, prosseguiu: – o comércio, a indústria. – Firmou-se passando o lenço pela fronte gotejante: – O câmbio, as leis, tudo quanto orienta e desorienta o Brasil sai daqui.
   – É o laboratório – comentei com ironia, e meu tio aceitou:
   – O laboratório, pois não. Mais ainda, vou mais longe. A meu ver a nossa forma de governo é a Rua do Ouvidor; a nossa religião é a Rua do Ouvidor – as constituições, os figurinos e os atos de fé saem deste beco. Isto é a pia lustral que consagra os fatos e os homens. Esta rua ecoa todos os sucessos do mundo como na vida fisiológica o cérebro, por um fenômeno de repercussão nervosa, reflete todas as sensações do corpo. – Cansado do rasgo científico, aspirou largamente e tossiu, mas a facúndia[17] voltou: – As mulheres, para imporem a formosura, descem e sobem a rua várias vezes. Há um talento prodigioso por aí além... Quem o conhece? Ninguém! Quantos poetas vivem ignorados por esses recantos, sem jamais alcançarem a glória da publicidade?
   – Simão Carreira...
   – Sim, o Simão... Há por acaso alguém que conheça o Simão?
   – Eu, meu tio. Conheço-o e admiro a sua inspiração, sempre nova e fértil.
   – Mas... tu és uma parcela insignificante. Para imortalizar um homem só o sufrágio coletivo, e a urna aqui está. Tenho certeza de que o Simão, com um dia de Rua do Ouvidor, faria mais pela glória do seu estro do que tem feito com 28 anos de trabalho modesto no canto obscuro do Tamanduá, entre os milhos. Bastava que recitasse dois ou três sonetos. – E meu tio alongou o braço: – O caminho da glória é este, Anselmo.
   – Não é feito de rosas, meu tio!
  Davam três horas e o calor escaldava. Meu tio propôs um grog[18] gelado, no Pascoal[19]. Íamos caminhando lentamente quando dei com os olhos em uma esplêndida mulher loura, alva e rosada, de preto. Nos cabelos dourados uma espécie de diadema régio, com duas cristas de penas vermelhas, como no gorro do Mefistófeles[20], que eu vira, em tempos, numa ilustração do Natal.
   – Linda mulher, meu tio!
   – Divina! – concordou ele estacando para admirar.
   A loura aproximava-se coleando[21] por entre a multidão, atraindo os olhos lúbricos, altiva, indiferente, com um andar soberbo de rainha, o colo farto escondido por enorme leque de plumas escuras, que ela agitava com languidez, como uma grande asa.
   Passou por nós e tive apenas o tempo de ver a cor inocente e doce de suas pupilas azuis, mais claras do que a celagem[22] da altura e ainda mais suaves, a boca, pequenina e vermelha, uma curva sanguínea e úmida. E o aroma que ficou à sua passagem, que delicioso!...
   – Linda mulher! – tornei voltando-me para admirar o airoso passo cheio de majestade e graça.
   – É uma escultura.
   – Uma escultura, meu tio. – E, trincando o beiço, nervoso, tornei à frase: – Linda mulher! Com efeito...
   Mas meu tio, que adiantara alguns passos, vendo-me parado a olhar, absorvido no vulto que desaparecia, chamou-me:
   – Vem daí. Vamos ao grog, que está quente a valer[23]



[1] Largo de S. Francisco, um dos pontos fundamentais, na época, de acesso ao centro da “Cidade”.
[2] O romance é escrito na 1ª pessoa – coisa rara na obra de Coelho Neto. Do mesmo modo: O Morto – que traz, aliás, o significativo subtítulo: Memórias de um Fuzilado. Seu herói não é, no entanto, Anselmo Ribas (isto é: o próprio Coelho Neto), mas Josefino Santos.
[3] Pele de carneiro.  
[4] Praça pública onde os gregos realizavam assembleias e distribuíam justiça.
[5] Que tem uma só ponta ou chifre – a bengala de Serapião Ribas.
[6] O mesmo que resfolegando, respirando. 
[7] Introduziu desordenadamente.
[8] Com o cabelo em desalinho.
[9] O bater da chapa em substância líquida ou pastosa, agitando-a.
[10] Sorvo, tirado para fora de lugar profundo.
[11] Uma das principais artérias de Paris.
[12] Idem, em relação a Buenos Aires.
[13] Nome popular dado à Dama nos baralhos.
[14] Via e bairro de Roma antiga, sobre o monte Esquilino, habitado pelo que era considerado de pior na Cidade – centro de prostituição romana.  
[15] Grande poeta latino (65-8 a.C.).
[16] Político e administrador francês (1809-1891) a quem Paris deve grande parte da sua remodelação urbana.
[17] Facilidade oratória, eloquência.
[18] Termo inglês significando uma mistura alcoólica (Hoje: grogue).
[19] Célebre confeitaria da época.
[20] Figura do Fausto, de Goethe, que personifica o demônio.
[21] Mover-se fazendo ziguezagues.
[22] Cor do céu ao nascer e ao por do sol, aparência atmosférica.
[23] O trecho reproduzido ocupa, em A Capital Federal, as págs. 59-73, parte do Capítulo V, da 5ª edição (1924), Lelo e Irmão.  

Fonte bibliográfica: "Coelho Neto - romance" por Octavio de Faria, da Coleção Nossos Clássicos, publicada sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena, 2ª edição, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963. 

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