quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um texto de João Ribeiro


O Folclore (publicado em 1919)

Mais de setenta anos há que apareceu pela primeira vez a palavra folk-lore, em um artigo do Athenaeum de Londres. Propunha-o W. Thoms, como expressão técnica apropriada ao estudo das lendas, tradições e da literatura popular.
A palavra teve a boa fortuna de se difundir igualmente pelos povos latinos, cujas línguas não possuem a faculdade plástica de criar neologismos senão em condições raras. Em geral, recorremos ao grego em tais casos e o termo demologia seria o correspondente literal de folk-lore. O alemão seguiu a mesma corrente inglesa com os vocábulos Volkslehre e Volkskunde. Conhecemos a distinção estabelecida por R. Kohler e K. W. Weinhold que dá ao folk-lore uma área mais limitada que o Volkskunde que abrange todo o estado do homem social, sem excluir certas feições físicas, a alimentação, o vestuário, os gêneros da vida, profissões, o direito, a religião, a linguagem, etc.
A palavra folk-lore, empregada no Athenaeum de 22 de agosto de 1846 sob a assinatura de Ambrose Merton, pseudônimo de William John Thoms, é usada principalmente no mundo com o sentido e equivalência de Traditions populares, Tradizione populare e Volksüberliefcrungen. Estas tradições constituem o material de Volkskunde que se preza de ciência histórico-comparativa.
Entre nós, o vocábulo folk-lore tanto se aplica à coleta de materiais de estudos como ao próprio estudo metódico, da história e da comparação.
Folk-lore, ou Volkslehre ou Volkskunde, significa mais ou menos a ciência ou o saber popular. O estudo era necessitado pela exigência das histórias, contos de fadas, fábulas, apólogos, superstições, provérbios, poesias e mitos recolhidos da tradição oral.
Uma vez ordenados estes documentos da literatura popular, nenhuma expressão conviria melhor que aquela.
Muito antes de achada a denominação comum, era já o folclore uma ciência histórica com os seus métodos próprios de pesquisa, rica de confrontos, paralelismos e de resultados comparativos, colhidos na tradição de todos os países.
A existência dessa literatura não escrita explica-se pelo enciclopedismo ingênito de todos os povos e pela sua psicologia coletiva (Volkerpsychologie), base e antecedente da psicologia individual.
Todos os povos, desde os mais incapazes, têm ciência, arte e literatura, como têm direito ou religião. São coisas e funções humanas, em qualquer grau.
Os rústicos, os campônios, os elementos humanos de qualquer gregário, tribo ou sociedade possuem em comum certas ideias e doutrinas elementares acerca das coisas. Selvagens, bárbaros ou civilizados, homens enfim, possuem uma alma coletiva onde repousam as próprias superstições, crendices, as suas formas de arte ou de ciência elementares que lhes dão a intuição do mundo, anterior, preliminar e precedente às criações pessoais mais tardias da ciência abstrata ou da arte culta.
Quem do povo não é médico com as suas mezinhas? Jurista com seu bom senso leigo, engenheiro com a sua mecânica rudimentar, calculista com as mãos e os dedos? Astrólogo, pajé, adivinho ou teólogo?
Nesse enciclopedismo inculto, formado de pensamentos elementares, de emoção e de inteligência, é que consiste a alma popular.
Essa psicologia coletiva ou étnica, alma do grupo, alma da raça, é o fundo comum e a camada primigênia que explica e define o caráter especial de cada povo, no seu tríplice aspecto físico, antropológico e histórico.
A diferença essencial entre o rústico e o civilizado, entre o letrado e o analfabeto, é que as noções de um representam a camada das ideias étnicas antigas e de repouso; as de outro, a camada nova instável que lhe foi acrescida pela cultura.
A ciência quantificou o enciclopedismo grosseiro e rústico; a poesia estilizou os versos populares; a medicina originou-se da magia e das superstições; a astronomia da astrologia, etc. . Em resumo, o progresso do espírito precisou e quantificou as noções ingênuas do povo.

Bibliografia:
João Ribeiro – trechos escolhidos. Coleção Nossos Clássicos. Livraria Agir Editora, 1960.


                              

Nenhum comentário:

Postar um comentário