domingo, 26 de junho de 2016

Poesia de Gonçalves de Magalhães

Invocação ao Anjo da Poesia

A voz de minha alma

Quando da noite o véu caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um sutil vapor no aéreo espaço;
Uma angélica voz misteriosa
Em torno de mim soa,
Como o som de uma flauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas reboa.

Donde vem esta voz? – Não é de virgem,
Que ao prazo dado o bem-amado aguarda,
E mavioso canto ao céu envia:
Esta voz tem mais grata melodia!
Donde vem esta voz? – Não é dos Anjos,
Que leves no ar adejam,
E com hinos alegres festejam,
Quando uma alma inocente
Deixa do barro a habitação escura,
E na sidérea altura,
Como um astro fulgente
Penetra de Adonai o aposento;
A voz que escuto tem mais triste acento.

Como d’ara turícrema se exalça
Nuvem de grato aroma que a circunda,
E lenta vai subindo
Em faixas ondeantes,
Nos ares espargindo
Partículas fragrantes,
E sobe, e sobe, até no céu perder-se,
Tal de mim esta voz parece erguer-se.

Sim, esta voz do peito meu se exala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
É minha alma que geme e que murmura,
Como um órgão no templo solitário;
Minha alma, que o infinito só procura,
E em suspiros de amor a seu Deus se ala.

Como surdo até hoje
Fui eu tão angélica harmonia?
Porventura minha alma muda esteve?
Ou foram porventura meus ouvidos
Até hoje rebeldes?
Perdoa-me, oh meu Deus, eu não sabia!
Eram Anjos do céu que me inspiravam,
E outras vozes meus lábios modulavam.

Castas Virgens da Grécia,
Que os sacros bosques habitais do Pindo!
Oh Numes tão fagueiros,
Que o berço me embalastes
Com risos lisonjeiros,
Assaz a infância minha fascinastes.
Guardai os louros vossos,
Guardai-os, sim, qu’eu hoje os renuncio.

Adeus, ficções de Homero!
Deixai, deixai minha alma
Em seus novos delírios engolfar-se.
Sonhar co’as terras do seu pátrio Rio.
Só de suspiros coroar-me quero,
De saudades, de ramos de cipreste;
Só quero suspirar, gemer só quero.
E um cântico formar co’os meus suspiros.
Assim pela aura matinal vibrado
O Anemocórdio, ao ramo pendurado,
Em cada corda geme,
E a selva peja de harmonia estreme.

Já nova Musa
Meu canto inspira;
Não mais empunho
Profana Lira.

Minha alma imita
A Natureza;
Quem vencer pode
Sua beleza?

De dia, e noite
Louva o Senhor;
Canta os prodígios
Do Criador.

Tu não escutas
Essa harmonia,
Que ao trono excelso
A terra envia?

Tu não reparas
Como o mar geme,
Como entre as folhas
O vento freme?

Como a ave chora,
A ovelha muge,
O trovão brama,
O leão ruge?

Cada qual canta
Ao seu teor;
Mas louvam todos
O seu autor.

Da grande orquestra
Aumente o brilho
O canto humano,
Da razão filho.

Minha alma aprende,
Louva a teu Deus;
Os teus suspiros
Envia aos céus.

Oh como é belo o céu azul sem nódoa!
Que puro amor nos corações ateia;
Como a pupila de engraçada virgem,
Que serena nos olha, e nos enleia.

Mas que imagem sublime a mim se antolha,
Com largas asas brancas como o cisne,
E roçagante toga, que se ondeia,
Como flocos de neve alabastrina!

Uma harpa de ouro em suas mãos sustenta!
Oh que voz suavíssima e divina!
Oh que voz, que as paixões n’alma adormenta!

Vem, oh Gênio do céu filho!
Vem, oh Anjo d’harmonia!
Cuja voz é mais suave,
Mais fragrante que a ambrosia!

Teu rosto vence em beleza
Ao sol no zênite luzente;
Teu largo manto é mais puro
Do que a lua alvinitente.

As asas que te suspendem,
São mais ligeiras que o vento;
São mais terríveis que os raios,
Que giram no firmamento.

Tua fronte não se adorna
Com flores que o prado gera;
Sobre teus cabelos de ouro
Brilha de fogo uma esfera.

Teus pés a terra não tocam,
A teus pés a terra é dura;
Sobre aromas te equilibras,
Recendentes de frescura.

O sol, a lua, as estrelas
São fanais que te iluminam,
São corpos a quem dás vida,
E ante teus passos se inclinam.

Os acordes de tua harpa
Todos os astros ecoam;
Reanima-se o Universo,
Quando as suas cordas soam.

Vem, oh Anjo, ungir meus lábios;
Traze-me uma harpa dos céus;
Ao som dela subir quero
Meus suspiros até Deus!

Quando no Oriente roxear a aurora,
Como um purpúreo, auribordado manto,
Que ao Rei da luz o pavilhão decora,
E as saltitantes aves pelos ramos
Da madrugada o hino gorjearem,
Tua voz oh minha alma, une a seu canto,
E as graças do Senhor cantando exora.

Quando a noite envolver a Natureza
Em tenebroso crepe; e sobre a terra
As asas desdobrar morno silêncio;
Nessas plácidas horas de repouso,
Em que tudo descansa, exceto o Oceano,
Que arqueja, e espuma em solitária praia,
Vizinhos ermos com seus ais pejando,
Como um preso que geme, e que debalde
Da prisão contra os muros se arremessa;
Tu também, como a lua, vigilante
Nessas propícias horas, oh minha alma,
Tua voz gemebunda exala, e une
A voz do Oceano, à voz d’ave noturna.

Enquanto estás sobre a terra,
Como no exílio o proscrito,
Canta como ele, que o canto
Refrigera o peito aflito.

Canta, que os Anjos se alegram,
E os Anjos à terra descem,
A escutar esses hinos,
Que para Deus almas tecem.

Canta a todos os momentos,
Canta co’a noite, e co’o dia;
E o teu derradeiro expiro
Seja ainda uma harmonia.

Fonte bibliográfica:
De Suspiros Poéticos e Saudades, edição de Sousa da Silveira, págs. 17-27, conforme reproduzido em “Gonçalves de Magalhães – trechos escolhidos”. Por José Aderaldo Castello. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa, Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961.

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