quarta-feira, 8 de junho de 2016

Poesia de Raimundo Correia - parte 2



A Cavalgada     (De Sinfonias – 1882 – livro com Introdução de Machado de Assis)
  
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

Fonte bibliográfica: Raimundo Correia - Poesia. Por Ledo Ivo. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1958. 

terça-feira, 7 de junho de 2016

Poesia de Raimundo Correia


(De “Sinfonias” – 1882 – livro com Introdução de Machado de Assis)

As Pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada... (1)

E a tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...


(1) Desse belíssimo verso se apropriou o poeta português Antonio Nobre, cujo “Dezesseis anos”, escrito em 1883, começa assim: “Raia sanguínea e fresca a madrugada clara”.


Fonte bibliográfica: Raimundo Correia – poesia. Por Ledo Ivo. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora. Rio de Janeiro, 1958.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Dados biográficos do escritor Raimundo Correia


1859 – 13 de maio: Nasce nas costas da Província do Maranhão, a bordo do navio brasileiro “S. Luís”, ali ancorado, Raimundo da Mota de Azevedo Correia, filho do Desembargador José da Mota Azevedo Correia e de Maria Clara Vieira da Mota, ambos maranhenses.
1872 – 26 de janeiro: Matricula-se no Imperial Colégio Pedro II, terminando ali seus preparatórios em 1876.
1878 – 25 de março: Em companhia de Silva Jardim, chega a São Paulo para matricular-se na Faculdade de Direito.
1879 – Sua estreia poética com “Primeiros Sonhos”.  
1881 – Colaboração, principalmente de versos humorísticos, em “A Comédia”, jornal no qual colaboram também Machado de Assis e Raul Pompeia.
1881 – Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, deixa São Paulo.
1883 – Lançamento de “Sinfonias” (datado de 1882) com uma introdução de Machado de Assis. Nomeado promotor de Justiça em São João da Barra, na Província do Rio de Janeiro. Transferido para a promotoria de São João do Príncipe.
1884 – Juiz municipal na província fluminense. Em 21 de dezembro: casa-se com Mariana de Abreu Sodré (Dona Zinha).
1887 – Publicação de “Versos e Versões”.
1889 – Nomeado secretário da Presidência da Província do Rio de Janeiro. Advento da República. Nomeado Juiz de Direito em São Gonçalo do Sapucaí, sul de Minas.
1891 – Publicação de “Aleluias”.
1892 – Nomeado diretor da Secretaria de Finanças de Ouro Preto, então capital de Minas. Ali, torna-se professor da Faculdade de Direito.
1897 – Sócio fundador da Academia Brasileira de Letras, na qual vai ocupar a cadeira nº 5, tendo como patrono Bernardo Guimarães. Nomeado segundo secretário da Legação do Brasil em Lisboa, cujo ministro é seu velho amigo Assis Brasil.
1898 – Publicação, em Lisboa, das “Poesias”, com prefácio de Dom João da Câmara. Supressão do lugar de segundo secretário da Legação. Viagem de recreio pela Europa, durante quase um ano.
1899 – Juiz em disponibilidade, volta ao Brasil. Residência em Niterói. Vice-diretor e professor do Ginásio Fluminense, em Petrópolis.
1900 – Residência no Rio. Pretor da Segunda Vara.
1909 – Juiz Criminal.
1910 – Juiz no Cível.
1911 – Viagem à Europa para tratar de saúde. 13 de setembro: morre em Paris. Sepultado no Père Lachiase.
1920 – Transladação, pela Academia Brasileira de Letras, de seus restos mortais e dos de Guimarães Passos, também morto em Paris. 28 de dezembro: suas cinzas são depositadas no cemitério S. Francisco Xavier.
1924 – 14 de dezembro: morte de Dona Mariana Sodré, viúva do poeta.  

Fonte bibliográfica: Raimundo Correia – poesia. Por Ledo Ivo. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima e Roberto Alvim Correa. Livraria Agir Editora. Rio de Janeiro, 1958. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Texto do escritor Inglês de Sousa


Trecho extraído de “O Coronel Sangrado” em “Cenas da Vida do Amazonas” do escritor Inglês de Sousa
(S. Paulo, 1882)
     Miguel, que viveu cinco anos na cidade de Belém com a sociedade mais culta do Pará, tinha todos os exteriores do homem civilizado, mas ainda conservava muito do antigo pescador do Paranamery. A vida da cidade conseguira modificar-lhe o caráter, e abrandar-lhe o gênio, mas não o curou radicalmente.
     O rapaz, diferentemente de outros tempos, almejava agora a paz e a tranquilidade e queria esquecer as injúrias outrora recebidas, mas isto não era mais que uma vitória ganha pela cabeça sobre o coração. Homem ilustrado hoje, ele abjurava as mesquinhas ideias de outras eras, mas, mau grado seu, o coração ainda sentia o espinho de um ressentimento vago, que Miguel não ousava confessar a si mesmo. O que dissera ao Coronel Sangrado, o que fizera ver em Óbidos era o que queria sentir, mas não era o que verdadeiramente sentia.
     Pensando que teria de encontrar-se sem falta com o seu antigo inimigo, lembrava-se das antigas inimizades, e reabria-se-lhe a ferida que a vaidade espezinhada tinha feito. Mas o rapaz prometia dentro em si colocar-se superior a isto.
     No meio deste turbilhão de ideias, uma ideia aparecia-lhe de vez em quando límpida e clara, mas amargurada e terna ao mesmo tempo.
     O moço pensava na afilhada do Tenente Ribeiro, na mulher do Alferes Moreira, na sua companheira de infância. E o seu pensamento podia resumir-se em um nome: Rita!
     Rita!
     Todo o passado desenrolava-se diante de Miguel, com as dores e as raras alegrias. O acre sofrer do amor próprio espezinhado, da vaidade amesquinhada, do orgulho ofendido, o desejo rebelde de vingança, todas as tristes recordações de um passado amargurado. As esperanças mortas, os projetos dourados desaparecidos ao menor sopro da adversidade, os desenganos todos lhe reviviam n’alma, como se tudo fosse agora!
     Por aquela que recordava agora quase a medo teria feito em outro tempo as maiores loucuras. Pelo desprezo com que ela o tratara mais do que por outra qualquer razão, abandonara a mãe, o sítio, a terra natal, e fora viver entre estranhos, do suor do seu rosto.
     E o rapaz perguntava a si mesmo se seria hoje capaz do que fizera pela filha do Tenente. Hesitava em responder.
     Durante os quatro anos passados no Pará, por mais que fizesse Miguel, não conseguiu banir da mente a ideia de Rita. Em toda parte por onde andava aquele nome lhe estava presente à lembrança. Não o esquecera nunca durante todo aquele tempo de afanoso lidar.
     E não era isto que o rapaz havia projetado.
     A ideia que o levara à capital do Pará fora uma ideia de vingança. Completamente ludibriado pelo Tenente Ribeiro, enganado nas suas mais caras afeições, Miguel julgou que aquilo era devido ao seu estado, de então, de criança ignorante, desamparada e pobre. Quando seu orgulho imenso debatia-se em convulsões tremendas pela derrota, considerada vergonhosa, encontrara um amigo que o aconselhara e dirigira. Dos vagos projetos do primeiro momento saiu então uma resolução firme e pensada. Foi por isso que Miguel fugiu para Belém no vapor “Ligeiro”.
     Projetava ganhar pelo trabalho e pela ilustração forças bastantes para realizar a vingança. Era a sua ideia dominante no meio da árdua tarefa de caixeiro.
     Mas pouco a pouco, com o viver da capital, foram-se-lhe modificando as ideias, à medida que se ia ilustrando mais o seu espírito.
     No Pará, Miguel fora empregado na casa de um excelente homem que o tratou como filho. O rapaz teve, pois, tempo de instruir-se lendo alguma coisa.
     O resultado desta instrução e da convivência com o patrão e os seus amigos, foi a resolução que o vimos tomar e que tanto desapontamento causou ao Coronel Sangrado, e em geral à gente de Óbidos. E isto porque, em vista de seu antigo proceder, não se podia esperar outra coisa.
     O rapaz tomara, muito antes de voltar a Óbidos, e logo ao projetar essa volta, a resolução de esquecer tudo o que se passara com a família Ribeiro.
     Queria esquecer as injúrias recebidas. Era isto efeito do poderoso impulso da civilização, que lhe alargara a órbita estreita das ideias. Mas, já dissemos que se a civilização lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre os seus sentimentos. 

Fonte bibliográfica: Inglês de Sousa - textos escolhidos. Por Bella Josef. Coleção Nossos Clássicos. Sob direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963. 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Dados biográficos do escritor Inglês de Sousa


1853 – 28 de dezembro. Nasce em Óbidos, província do Pará, Herculano Marcos Inglês de Sousa, filho do Desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa e de D. Henriqueta Amália de Góis Brito Inglês. Origina-se de uma das mais antigas famílias paraenses.
1864 – É matriculado no colégio de Sotero dos Reis no Maranhão, para completar os primeiros estudos iniciados no Pará.
1867 – É internado em casa de ensino secundário no Rio: Colégio Perseverança.
Consta que, nesse local, o diretor do colégio confiscou-lhe suas próprias “Obras Completas”, com um romance, “Filipe de Monfort”; um drama, “A Justiça de Deus”; um poema heroico-cômico, “Os Lopíadas”, alusivo aos paraguaios; e um caderno de poesias líricas e heroicas.
1870 – Faz os preparatórios no Recife e matricula-se na Faculdade de Direito. Passa as férias com a família. Jamais voltou à Amazônia.
1875 – No quarto ano da Faculdade, escreve “O Cacaulista”, publicado em Santos (1876).
1876 – Cursa a Faculdade de Direito de São Paulo, onde recebe o grau. Publica “Cenas da Vida do Amazonas: História de um Pescador” (São Paulo).
1877 – Publica “O Coronel Sangrado” (Santos).
1878 – Casa-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisneta de José Bonifácio. Faz jornalismo e política. Ingressa no Partido Liberal e funda o “Diário de Santos” e a “Tribuna Liberal” e com o Dr. Antônio Carlos a “Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras”. Foi secretário da Relação de São Paulo; deputado à Assembleia Provincial, elabora o projeto de criação da Escola Normal.
1881 – Funda a “Ilustração Paulista”. É nomeado presidente de Sergipe (Lei Saraiva).
1882 – É eleito presidente do Espírito Santo. Volta a Santos. Fracassa a candidatura à Assembleia Geral.
1883 – Advoga em Santos, após abandonar a política a conselho médico.
1890 – Muda-se para São Paulo, onde funda o Banco de Melhoramentos de São Paulo.
1891 – Publica “O Missionário” (escrito em 1888).
1892 – Transfere-se para o Rio de Janeiro.
1894 – É convidado para professor da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro.  
1896 – Participa da Fundação da Academia Brasileira de Letras, de cujo projeto de Estatutos foi o redator.
1898 – Publica “Títulos ao Portador no Direito Brasileiro”.
1899 – Sai publicada a 2ª edição de “O Missionário”, revista pelo autor.
1902 – É nomeado diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais.
1908 – Presidente do Instituto da Ordem dos Advogados e do 2º Congresso Jurídico Brasileiro.
1916 – Representa o Brasil no Congresso Financeiro Pan-americano em Buenos Aires no qual é escolhido Presidente da Comissão para unificação da legislação sobre letras de câmbio.
1918 – 6 de setembro: morre no Rio de Janeiro. Foi sepultado no cemitério de São João Batista com um “dos maiores acompanhamentos de que há memória”, segundo registrou “O País” no dia seguinte.

Fonte bibliográfica: Inglês de Sousa - textos escolhidos. Por Bella Josef. Coleção Nossos Clássicos. Publicados sob a direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1963. 

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Um texto de Humberto de Campos


Trecho do livro “Memórias” (1933)

Fim de século

     Costumava-se dizer que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século XX trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes das outras.
     A minha passagem pelos jornais, como tipógrafo, quer em Parnaíba, quer no Maranhão, tinha-me dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do Tempo. Eu estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce, não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a culminância do fato de que eu ia ser testemunha.
     O mês de dezembro de 1899 decorreu, na verdade, na esfera em que eu passava a exercer a minha atividade, festivo e animado. Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir! Que nome se lhe devia dar, no nascedouro! Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da Humanidade alvoroçada. As minhas funções de obscuro empregado de uma casa destinada a satisfazer as fantasias da gula humana, contribuíam, igualmente, para acentuar no meu espírito o modo por que os homens felizes interpretavam aquele salto imaginário no rio imenso dos tempos. Desde novembro o depósito da mercearia se abarrotava de barris e de caixas, recebidas diretamente da Europa ou do Sul. Eram ameixas, fiambre, azeitonas, mortadela, tâmaras, figos, queijos holandeses, conservas francesas e do Porto, e vinhos da mesma procedência. As minhas mãos, calejadas na lavagem das garrafas no tanque da casa, tinham-se tornado roxas, e engrelhadas, ao contato do Colares e do Bordeaux. E tudo isso ia sair, nos últimos dias do ano, para a alegria dos homens abastados.
     Na véspera do Natal o movimento das vendas fora considerável. O estabelecimento enchera-se de fregueses, que saíam carregados de embrulhos, ou que deixavam as suas notas de sortimento. Formiga diligente e pobre, eu me sentia feliz, e contente, servindo as cigarras. Carregadores partiam com caixões e cestos, em que iam pacotes e garrafas. Do andar superior, onde a Emília multiplicava a atividade e os cuidados, desciam fiambres louros e tostados, com a sua gargalheira de papel recortado farfalhante, ornando o osso que fora a perna do porco. E assim fomos até a meia-noite, quando se fechou a casa para recomeçar a faina no dia seguinte às cinco e meia da manhã.
     O 31 de dezembro foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um “bar”, em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Transmontana ficava, às vezes, com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceção: ficamos a servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram.
     Através das sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu áspero ruído de ferragens, ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo.
     Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr. Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou:
     - Vamos dar balanço nas mercadorias... Comecemos pelas bebidas.
     E tomando um caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas.
     Sem um protesto ou um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortaleza de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de cognac ou de vermouth, eram contadas, e anunciadas, em voz alta.
     - Trinta e seis garrafas de cognac Macieira!
     - Trinta e seis de Macieira... – confirmava o patrão, escrevendo.
     - Vinte e duas de Colares nº 1!
     - Vinte e duas de Colares nº 1!... – repetia o Sr. Dias de Matos.  
     - Quatorze meias ditas, idem!
     - Quatorze meias ditas, idem...
     De repente, reboa, longe, o apito de uma fábrica de tecidos. Um foguete estronda. Outras fábricas acompanham a primeira. Trepado em uma escada, eu conto, nesse momento, em uma prateleira alta, que fica sobre uma porta, algumas filas de latas de azeite de oliveira:
     Um, dois, três... quatorze... vinte... trinta... trinta e oito.
     O buzinar das fábricas, o estrondar dos foguetes, a gritaria que vem das ruas, o Hino Nacional atacado ao piano em uma casa próxima, interrompem a minha conta, detendo-me o dedo sobre a tampa de uma das latas. Aquele momento é excepcional na História da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que emoções lhe reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa pelo pensamento. Ao fim, porém, de um minuto, continua a conta:
     - Trinta e nove, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois...
     E é ainda com a buzina de algumas fábricas retalhando o céu com o estilete sonoro, que anuncio, do alto da escada, para o patrão:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes!
     E ele, com a mesma fleuma, sem levantar a cabeça do papel em que escreve:
     - Quarenta e dois litros de azeite português Brandão Gomes...
     Foi assim que, humilde caixeiro do século XIX, penetrei o século XX.


Fonte bibliográfica: idem ao texto anterior.


sábado, 19 de dezembro de 2015

Dados biográficos do escritor Humberto de Campos


1886 – 25 de outubro: Nasce em Miritiba, Província do Maranhão, Humberto de Campos Veras, filho do comerciante Joaquim de Farias Veras e de Dona Ana de Campos Veras.
1893 – Em companhia da mãe, já viúva, visita São Luís. Muda-se, neste mesmo ano, para Parnaíba (Piauí).
1894 – Matricula-se na escola primária de Sinhá Raposo, em Parnaíba, transferindo-se, depois, para a escola de Dona Marocas.
1898 – Começa a trabalhar, para auxílio da mãe e da irmã menor, na loja do tio Emídio Veras.
1899 – Vai trabalhar como aprendiz de tipógrafo nas modestas oficinas de “O Comercial”, semanário de Parnaíba, sob a orientação do mestre Floriano Serpa.
1900 – 18 de maio: Parte sozinho para São Luís à procura de emprego, trabalhando como aprendiz de tipógrafo e, mais tarde, como auxiliar da “Casa Transmontana”, armazém de secos e molhados do português José Dias de Matos, “seu Zé”.
1901 – agosto: Volta a Parnaíba onde se emprega novamente na loja do tio Emídio Veras e começa a ler desesperadamente.
1903 – Muda-se para Belém do Pará, empregando-se no escritório da firma Montenegro & Cia. Viaja pelos seringais. Começa a colaboração na imprensa paraense em forma de correspondência.
1908 – É nomeado Secretário da Prefeitura de Belém, depois de ter ingressado no corpo redatorial de “A Província do Pará”.
1911 – Publica seu primeiro livro: “Poeira” (poesia).
1912 – Forçado por acontecimentos políticos, muda-se para o Rio de Janeiro, onde ingressa na imprensa.
1913 – Casa-se com Dona Catarina Vergolino, moça de Belém, por procuração.
1918 – Publica seu primeiro livro de crônicas: “Da Seara de Booz”.
1919 – Publica um livro de contos humorísticos: “Vale de Josafá”.
1920 – Toma posse na Academia Brasileira de Letras, em substituição a Emílio de Menezes.
1923 – A partir deste ano, publica um, dois e até três livros anualmente, até o ano de 1926.
1927 – É eleito Deputado Federal pelo Maranhão. Reeleito em 1929, perde o mandato em 1930, em face da Revolução.
1931 – Nomeado Inspetor Federal de Ensino e, neste mesmo ano, Diretor interino da “Casa de Rui Barbosa”.
1934 – 5 de dezembro: morre no Rio de Janeiro, na Casa de Saúde Dr. Eiras, ao submeter-se a cirurgia.

Fonte bibliográfica: Humberto de Campos – textos escolhidos. Por João Clímaco Bezerra. Coleção Nossos Clássicos. Direção de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Correa e Jorge de Sena. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1979.