quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A Poesia de “Criaturas da Noite” da banda “O Terço”

A Música Brasileira é riquíssima em termos de poesia presente em suas letras. Muitas delas são consideradas até mesmo como obras clássicas que servem inclusive para estudo e ensino da própria língua portuguesa. Apesar disso, há diversas músicas que após certo sucesso tornam-se quase esquecidas. Em se falando de “sucesso”, deve-se levar em conta variados fatores que polemizam esse termo e pode-se eventualmente encaminhar-se o debate para o conceito de “indústria cultural” na linha do pensamento de Adorno.
A indústria cultural, o consumismo, o marketing são elementos que reforçam as diferenças entre os com “muito sucesso” e os com “pouco sucesso”, sendo que o mesmo artista, ou a mesma obra, pode flutuar entre um e outro grupo. Mas aqui pretendo me referir à “memória coletiva” e à “memória cultural” e também a certa “amnésia cultural”. Assim, no transcorrer temporal da história, pode haver “lapsos” de memória cultural, de modo que uma determinada comunidade humana pode ter um tipo de “esquecimento cultural”. Há quem diga, em certo tom de ironia, que o brasileiro só tem memória do passado até 15 anos para trás... Talvez seja um pouco assim, mas na verdade esse fenômeno é próprio do ser humano individualmente e coletivamente, como um mecanismo de defesa, ou como efeito de mudança de paradigmas, entre outros fatores.
A segunda metade do século XX corresponde ao período “pós-moderno”. Esse período se caracteriza pela valorização de pragmatismo, eficiência e resultados no campo político e econômico. O campo cultural nem sempre acompanha esses outros campos de forma harmônica, mas muitas vezes em oposição; de certo modo é o que ocorreu com o movimento de contracultura dos anos 1960, que depois foi parcialmente absorvido pela estrutura formal capitalista. Nesse período entre o ano 1950 e o ano 2000, a década de 1970 é uma década um tanto “esquecida”. No que diz respeito à música brasileira, em relação a esta década, a maioria dos artistas que ficaram na memória coletiva foram os que apareceram nas duas décadas anteriores, inclusive atravessando os anos 1970 e prosseguindo pelas décadas seguintes. A partir dos anos 1980 surgiram outros artistas da música que também ficaram na memória.
Pode-se fazer certa analogia desse processo com o ocorrido em relação à Arte Gótica e ao Período Renascentista. No início do Renascimento, houve certa “perda da memória” da linguagem artística gótica, de modo que essa forma de arte passou a ser considerada sem estética, estranha, rudimentar... Somente no século XIX, com o Romantismo, ocorreu revalorização da Arte Gótica cuja obra corria risco de ser destruída ou perdida.
Voltando aos anos 1970, talvez tenhamos que revalorizar, recuperar a música produzida no Brasil nessa década, além daquela dos já anteriormente consagrados que (certamente com grande mérito) mantiveram-se criativos.
Feitos esses preâmbulos, falemos então da música “Criaturas da Noite” da banda “O Terço”. “O Terço” trabalhava com uma música que ficava entre rock progressivo, rock rural e MPB, com refinada produção.
A música “Criaturas da Noite” foi gravada no álbum de 1974 do Terço e corresponde ao nome do próprio álbum, sendo de autoria de Flávio Venturini e Luís Carlos Pereira de Sá (o Sá de Sá, Rodrix e Guarabyra).
Como quero falar da poesia, não vou me deter na música, embora ela permita uma melhor compreensão da letra. Apenas como breve menção, podemos dizer que a melodia e a harmonia têm nuances de música clássica.
A divisão a seguir dos versos não necessariamente acompanha a divisão original dos autores. Neste sentido, faço uma divisão que permita uma análise, com algum risco de parcialmente comprometer a intenção lírica.

Criaturas da Noite
(Flávio Venturini e Luís Pereira de Sá)

As criaturas da noite
Num voo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno.

Os habitantes da noite
Passam na minha varanda
São viajantes querendo chegar
Antes dos raios de sol.

Eu te espero chegar
Vendo os bichos sozinhos na noite.
Distração de quem quer esquecer
O seu próprio destino.

Me sinto triste de noite
Atrás da luz que não acho
Sou viajante querendo chegar
Antes dos raios de sol.

Podemos talvez dividir em três partes essa letra. Uma primeira parte correspondente às duas primeiras estrofes que vou chamar de “observação externa”. Uma segunda parte correspondente à terceira estrofe que vou chamar e “observação intermediária” e uma terceira parte com a quarta estrofe correspondente a uma “observação interna”.
Na primeira parte o artista observa à distância (ou seja, não se envolve) que “as criaturas da noite procuram luz”. Sendo criaturas noturnas, devem ter características lunares, a luz que procuram é uma luz lunar, uma luz das sombras, do inconsciente, em uma região em que as coisas são gestadas. Em antigas tradições o dia foi gestado na noite; no início do Universo primeiro teria vindo a noite e depois o dia. O sol é mais forte e mais brilhante, mas ele precisou da noite para que fosse gestado.
As criaturas com “voo calmo e pequeno” parecem ser insetos, como as mariposas de Adoniran Barboza que “roda em volta da lâmpida pra sisquentar”. Mas as criaturas da noite precisam de outra coisa, precisam secar o peso do sereno em suas asas. O sereno é outro símbolo noturno. O nome “sereno” evoca serenidade, calma, tal como o calmo voo das criaturas. No entanto, embora voo “calmo” as criaturas têm um excesso do “sereno” que lhes pesa sobre as asas. O sereno é o mistério invisível da noite que, quase imperceptível, se faz sentir quase como uma garoa, ou um quase orvalho. Essas criaturas também poderiam ser anjos com os mistérios noturnos pesando sobre as asas. Talvez o voo noturno não seja como o diurno, à luz do dia. O voo noturno tem mais riscos.
Na segunda estrofe o artista ainda é um observador externo, mas agora ele está mais próximo das criaturas, ele se envolve com elas até certo ponto e as recebe em sua casa. É interessante que sua reação não é de levantar-se e espantar os visitantes voadores; não os vê como intrusos. Mais de perto, ele sabe que as criaturas “são viajantes”, passageiros, sem lugar fixo, vagam, procuram, mas precisam chegar antes dos raios de sol. Eles não pertencem ao mundo solar, do plenamente visível, do consciente, do evidente. São da “pequena” energia que percorre os símbolos do inconsciente.
Na terceira estrofe passa-se para um estágio de interlocução com alguém, que parece estar ausente nesse momento, mas que é uma pessoa esperada, aguardada na noite, de modo que condiciona uma vigília. Essa vigília, ao mesmo tempo em que se entretém com os bichos da noite, implica em uma tentativa de esquecer o próprio destino. Se assim é, pode tratar-se de um destino doloroso, ou incerto, obscuro, talvez mais passível de ser esquecido na penumbra da noite, do que à plena luz do sol.
Se no fim da estrofe anterior o artista percebe querer esquecer seu destino, na quarta estrofe ele mergulha em seu próprio interior e percebe-se “triste de noite”, constatando que procura uma luz que não consegue encontrar. Talvez essa luz seja uma lanterna que guie e ilumine o caminho até o self, o seu eu mais íntimo, através das sendas obscuras do inconsciente.
No final então o artista constata que ele também é uma criatura da noite, pois ele também é um viajante querendo chegar antes dos raios de sol. Mas se ele tem uma varanda, então essa viagem é uma viagem interior. Quando vierem os raios de sol ele já quer ter chegado ao seu destino. Convém que a luz do sol, da plena consciência, já encontre o viajante “chegado”, encontrado consigo mesmo.
Mas todo o conjunto dos versos configura um momento de observação e de espera, de percepção e de insight que implica em certa incerteza e nostalgia, sugerindo um senso de busca que também se apresenta em outra letra de Sá para a música “Caçador de mim”. 

domingo, 14 de julho de 2013

Três Sonetos de Paulo Bomfim

Estes são os três primeiros Sonetos da obra de Paulo Bomfim de 1951 intitulada “Transfiguração”.

Soneto I

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha,
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Soneto II

Embora ainda pressinta em lucidez
A forma estranha deste pesadelo,
Não culpo a vida pela viuvez
Das mãos que pousam sobre o meu cabelo.
Na noite em que me abismo, bailam vultos,
Rostos antigos que não reconheço,
Fantasmas que em meu ser estão sepultos,
Vozes que já ouvi e desconheço.
Embora em pesadelo minha sorte
Oscile como um pêndulo no abismo,
Não culpo a vida pela minha morte,
Nem culpo o estranho vulto em que hoje cismo:
Em toda lucidez vive a loucura,
Rosa de sangue sobre a desventura.

Soneto III

Ponte suspensa sobre o grande abismo,
Dentro de mim caminho passo a passo;
Há luas que se agitam quando cismo
Em outras dimensões fora do espaço.
Neste caminho imerso em solidão,
Carrego apenas do que fui a ânsia
De prender junto ao peito esta intuição:
Rosa mística, ideal da minha infância.
Ponte arrojadamente construída
Sobre esse velho abismo mal desperto,
Retenho junto à morte minha vida,
Sempre suspensa num caminho incerto.
Transporto ao meu encontro, sobre os ombros,
Meu destino flutuando entre os escombros. 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Dois Sonetos de Paulo Bomfim

Do Mormaço

Este céu de mormaço que carrego
Lona cinzenta, capa de derrotas,
Habita-se do voo das gaivotas
E armaduras de sal onde me nego.

E das contradições que sou e lego
Às ondas porta-vozes de ignotas
Solidões, descaminhos que são grotas,
O cansaço do olhar de um dia cego.

Este céu de mormaço que acompanha
A sombra debruçada sobre o muro
E o meu passeio numa terra estranha

Modela em mim a solidão mais rica,
Pois nela sou a chuva do futuro,
A água que me apaga e que me explica.

Do viver

Urge viver. Minutos audaciosos
Armam cilada aos passos repetidos.
Qualquer coisa acontece nestes idos
De tempo estranho, e nós, seres porosos,

De argila e sangue,tristes e jocosos,
Com lágrimas e risos ressentidos,
Sacudimos os guisos comovidos
Como sinal de luz sobre danosos

Desertos de aquiescência e de rotina.
Urge viver. O tempo nos apela
No fim de cada rua. Em cada esquina

Há um encontro fatal, o gesto incrível
Do pintor produzindo em nossa tela,
Algo de cotidiano e de terrível.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Biografia de Paulo Bomfim

Paulo Lébeis Bomfim nasceu em São Paulo em 30 de Setembro de 1926. É descendente de bandeirantes e de fundadores de cidades.
Iniciou atividades jornalísticas em 1945, no “Correio Paulistano”. Depois foi convidado por Assis Chateaubriand para integrar o “Diário de São Paulo”, onde escreveu “Luz e Sombra” por dez anos. Redigiu “Notas Paulistas” para o “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro.
Foi Diretor de Relações Públicas da “Fundação Cásper Líbero”. Fundou a Galeria Atrium com Clóvis Graciano. Produziu “Universidade na TV” no Canal 2 de São Paulo, juntamente com Heraldo Barbuy e Oswald de Andrade Filho. No antigo Canal 4, TV Tupi, produziu “Crônica da Cidade” e “Mappin Movietone”. Na Rádio Gazeta apresentou “Hora do Livro” e “Gazeta é Notícia”.
Seu livro de estreia foi “Antônio Triste”, publicado em 1947, com prefácio de Guilherme de Almeida e ilustrações de Tarsila do Amaral. Essa obra foi premiada em 1948 pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Olavo Bilac. Fizeram parte da comissão julgadora Manuel Bandeira, Olegário Mariano e Luiz Edmundo.
Sua publicação seguinte foi “Transfiguração” (1951), depois “Relógio do Sol” (1952), onde lançou cantigas musicadas por Dinorah de Carvalho, Camargo Guarnieri, Theodoro Nogueira, Sérgio Vasconcelos, Oswaldo Lacerda e outros.
Em 1954 publicou “Cantiga de Desencontro”, “Poema do Silêncio” e “Armorial”. Cassiano Ricardo chamou esta obra de “volta proustiana ao passado paulista”, onde o autor se volta miticamente ao bandeirismo de seus ancestrais.
Em 1958 lançou “Quinze Anos de Poesia” e “Poema da Descoberta”.
Suas obras seguintes são: “Sonetos” (1959); “Colecionador de Minutos” e “Ramos de Rumos” (1961); “Antologia Poética” (1962); “Sonetos da Vida e da Morte” (1963); “Tempo Reverso” (1964); “Canções” e “Calendário” (1966); “Poemas Escolhidos” (1973), com prefácio de Nogueira Moutinho; “Praia de Sonetos” (1981), com prefácio de Almeida Salles e ilustrações de Celina Lima Verde; “Sonetos do Caminho (1983), com prefácio de Gilberto de Mello Kujawski; “Súdito da Noite” (1992), com prefácio de Ignácio da Silva Telles e capa de Dudu Santos; “50 anos de Poesia” (1997), com prefácio de Rodrigo Leal Rodrigues e “Sonetos” pela Universitária Editora de Lisboa; “Aquele menino” (2000); “O Caminheiro” (2001); A Academia Paulista de Magistrados lança “Tributo a Paulo Bomfim” (2003); “Tecido de Lembranças” (2004); “Rituais” (2005), com ilustrações de Dudu Santos; “Livro dos Sonetos” e “Janeiros de Meu São Paulo” (2006); “Navegante” e “Cancioneiro” (2007), com desenhos de Adriana Florence; “Café com Leite” (2008), com Juarez de Oliveira; “Diário do Anoitecer”  e “Antologia Lírica” (2012); “Insólita Metrópole” (2013).    
Suas obras foram traduzidas para o alemão, o francês, o inglês, o italiano e o castelhano.
Em 1963 entrou para a Academia Paulista de Letras.
Em 1981 foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores, recebendo o troféu Juca Pato.
Em 1991 recebeu o título de “Príncipe dos Poetas Brasileiros” pela Revista de Brasília.
Em seus 50 anos de Poesia (1997) recebeu o prêmio da União Brasileira de Escritores.
Em 2004 foi criado o “Prêmio Paulo Bomfim de Poesia” pelo Governo do Estado de São Paulo.
Em 2008 recebeu o Prêmio Literário “Fundação Bunge”, pelo conjunto de sua obra.
Em 2012 recebeu o Colar do Mérito Judiciário.
Em 2013 celebrou 50 anos de Academia Paulista de Letras.
É o decano da Academia Paulista de Letras.
Fontes Bibliográficas:
Site da Academia Paulista de Letras

www.paulobomfim.com

domingo, 12 de maio de 2013

Sobre o artigo "No Rumo das Trevas" de A.P. Quartim de Moraes


Em 29 de Abril de 2013 foi publicado um artigo de A.P. Quartim de Moraes no jornal O Estado de São Paulo, artigo esse intitulado “No Rumo das Trevas”.
Ele inicia o texto comentando sobre comercial de TV no qual um pai, “empenhado na educação do filho pequeno”, chega com três grossos livros e coloca-os sobre a cadeira. O filho senta sobre os livros para ficar na altura adequada para acessar o computador. Quartim de Moraes adverte então que quem não ficou chocado com essa história pode parar de ler seu artigo imediatamente, pois ele vai falar de “coisas fora de moda, como o livro”. Acrescenta que considera irresponsabilidade a aprovação de tal comercial pela empresa de telecomunicações.
O autor refere não ter dúvidas que esse comercial é perfeitamente compatível com a “ética empresarial” do mundo dos negócios em que “acima de qualquer valor humano predomina a implacável razão de mercado”. Diz que algumas corporações conseguem disfarçar sua obsessão por metas de faturamento sob certa “responsabilidade social” à qual destinam “alguns trocados das verbas de marketing e vendas.
Ele considera então imperdoável a irresponsabilidade de desqualificar o livro, que considera como “o maior símbolo de saber e conhecimento”. Tal desqualificação ele acha até pior do que a queima de livros por motivos políticos.
Diz que as conquistas tecnológicas das últimas décadas são valorizáveis, mas que historicamente ainda não substituem plenamente o livro. Recorda então o lançamento no fim do século XX do CD-ROM, que supostamente viria a substituir o livro. Atualmente o e-book é esse candidato, mas acrescenta: quem pode garantir que não surja amanhã um novo gadget que transforme o e-book em peça de museu?  
Assim, cita Umberto Eco que diz que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher”.
Frisa a importância do livro para o saber e para o que significa o ser humano, embora aqueles que ele chama de “fundamentalistas do mercado” considerem o supra sumo da ambição humana “ter uma casa com um carro na garagem”.
Acentua que essa visão humanística “fora de moda” só estará sepultada no dia em que acabarem com o livro. Critica o big business editorial para o qual livro bom é livro que vende bem. Desse modo, o publicitário e seu cliente daquele comercial logo atingirão seu intento. Conclui assim, com brilhante ironia, dizendo que “estaremos então penetrando as trevas depois de termos percorrido vários tons de cinza”.


sábado, 20 de abril de 2013

O exercício cognitivo do ditado

Até aproximadamente 30 a 40 anos atrás o exercício do "ditado" era uma atividade quase diária nos cursos de primeiro grau das escolas públicas. No início o criança escrevia ditados de palavras isoladas. Posteriormente passava a frases simples. Depois vinham frases associadas em um texto simples. Assim, gradativamente, a criança aprendia a seguir ditados cada vez mais complexos, sempre recebendo depois as devidas correções em seus próprios textos. 
Essa atividade do "ditado" pode parecer muito simples para alguns, ou ainda antiquada para outros, mas o fato é que se trata de um complexo e bem articulado exercício cognitivo.
Um primeiro aspecto desse exercício que podemos citar é a "atenção". A atenção é uma das funções cognitivas básicas; é essencial ao trabalho cognitivo, ao desenvolvimento cognitivo, ao processo cognitivo cotidiano. Ao ter que ficar atenta às palavras ditas pelo professor/professora a criança exercita focar sua atenção auditiva, chegando mesmo a reduzir o uso dos outros sentidos, para concentrar-se na recepção do estímulo auditivo. Além disso, trata-se da recepção de um estímulo verbal, uma ou várias palavras, concatenadas ou não; esse é um exercício de atenção específico dirigido à linguagem verbal, com suas variáveis, intonações, etc. 
Um outro aspecto do exercício do ditado é o aprendizado da linguagem verbal percebida (o exercício da linguagem verbal expressada ocorria na leitura oral e na redação). O entendimento da linguagem verbal percebida compreende uma série de nuances que se aprimoram na medida em que   aumenta a variedade de palavras e agrupamento de frases, de modo que a criança aprende a diferenciar sutilezas que implicam na complexidade de discursos e textos. 
Outro aspecto exercitado no ditado é "memória de curto prazo", também chamada "memória anterógrada". Na medida em que os textos ditados se tornam (ou se tornavam) cada vez mais extensos e complexos, mais distante ficava a "fala" do professor/professora e a "escrita" da criança, de modo que, nessa distância de tempo entre a expressão da palavra e sua recepção, exercita-se essa memória de curto prazo.
As correções repetidas dos textos, devidamente assinaladas, vão compor uma memória de longo prazo (ou anterógrada) para linguagem verbal, que permitirá à pessoa escrever corretamente.
Ora, todos esses itens são fundamentais para o entendimento de textos literários ou mesmo de textos técnicos. 
Hoje em dia no Brasil fala-se em uma grande porcentagem de pessoas com "analfabetismo funcional", ou seja, mesmo tendo frequentado escola essas pessoas não entendem textos, mesmo que sejam de média ou mesmo baixa complexidade. Uma importante causa disso é que provavelmente essas pessoas não fizeram ditados. Essas pessoas não treinaram sua cognição nos aspectos de atenção, linguagem verbal, memória de curto prazo, memória de longo prazo para linguagem verbal, de modo que não têm condições de exercer essa prática. 
Assim, deve-se ter cuidado ao propor mudanças no sistema de ensino. Nem tudo que é antigo é sem valor. Deve-se rever antigos métodos e reabilitar aquilo que ainda pode funcionar, sendo que isso pode caminhar ao lado de novos meios de ensino.
Fazendo uma analogia, mesmo que se aprimore a forma de se alimentar, ou ainda o conhecimento sobre os alimentos, ainda assim todo ser humano precisa se alimentar.
De modo similar, mesmo que se aprimore formas de aprender, algumas coisas são inerentes ao fato de sermos seres humanos. É inevitável que se tenha que memorizar palavras, coisas, objetos etc. é inevitável que se tenha que "decorar" algumas coisas. Um dia cada um teve que "decorar" seu endereço, ou outros dados essenciais a sua vida. A  capacidade de memorizar, a capacidade de usar essa memória para, por exemplo, operar uma máquina simples, ou até mesmo "dirigir" uma espaçonave, ou ainda aprender uma língua estrangeira, um dia passou por ter que "decorar" alguma coisa.
O antigo "ditado" é uma forma quase imperceptível de preparar o cérebro para "decorar" de uma maneira mais fácil coisas inerentes ao aprendizado, ou ao interesse de cada um, ou ainda de manter o cérebro mais preparado para o dia e dia e até mesmo para prevenir problemas cognitivos que podem surgir com a idade. 
Portanto, viva o ditado!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Literatura: cultura inútil ? – Parte 3


Em 29 de Dezembro de 2012, na seção “Ilustrada” do jornal “A Folha de São Paulo” foi publicado um artigo intitulado “Área Vip”.
Tal artigo refere-se a um procedimento que tem sido cada vez mais comum no Brasil há uma década, que é o aluguel de espaços privilegiados nas livrarias, aluguel esse pago por editoras, para a exposição de seus títulos. 
Ainda conforme o artigo, a disputa cada vez mais acirrada entre grandes editoras fez esse mercado sofrer reajustes muito acima da inflação.
Em reportagem da “Ilustrada” em 2006 consta que as editoras pagavam dois mil reais para exporem as obras por 15 dias. O valor hoje pode chegar a dez mil reais, ou seja, um aumento de 400% concomitante a menos de 40% da inflação no mesmo período. 
Com isso, conforme as palavras de um entrevistado na reportagem, a exposição do livro, que se devia mais ao gosto ou ao relacionamento do livreiro, passou a virar “Um negócio à parte”.
Todo esse processo está sendo chamado de “profissionalização” das livrarias. 
Isso nos leva a perguntar: será que antes disso elas não eram “profissionais”?
Dessa forma, – este é comentário nosso – leitores passam abismados entre pilhas e pilhas de exemplares do mesmo livro; passam por gôndolas, mesas e estantes com exemplares do mesmo livro... Assim, de certa forma, acaba por “constatar” que se torna “irresistível” ter que dar uma espiada no que parece ser uma obra “espetacular”... Torna-se quase “inevitável” comprar um exemplar...
Em outro texto, junto a esse da “Ilustrada” de dezembro de 2011, há comentários dos editores pequenos que se queixam de que esse modelo sufoca a diversidade e a possibilidade de divulgar suas obras diante dessa ferrenha concorrência. Há a menção de compras de editoras por outras que lembram o sucedido no filme de 1998 “You’ve got mail”, embora se trate de livrarias. Será que a permanência daquela livraria menor, tradicional, seria apenas um romantismo perdido?
Diante disso tudo, será que ainda importa a literatura em si?